Pontes. Luiz I e Maria Pia, as pontes metálicas de Eiffel e Seyrig

Pontes. Luiz I e Maria Pia, as pontes metálicas de Eiffel e Seyrig


As pontes de Luiz I e Maria Pia são locais ex-líbris das cidades do Porto e Vila Nova de Gaia, carregadas de histórias sobre a região, e sobre as discussões entre Gustave Eiffel e Théophile Seyrig.


Falar das pontes que ligam Vila Nova de Gaia ao Porto é falar, sem maneira de contornar o assunto, das pontes Luiz I e Maria Pia. Sim, são estes os nomes oficiais das pontes, defende ao i o historiador portuense Helder Pacheco. “Não há nenhuma Ponte D. Luís I”, começa por esclarecer, podendo causar alguma confusão a quem desconhece a história da cidade do Porto, e desta ponte em particular.

Acontece que, no dia em que se inaugurou a travessia que viria substituir a até então utilizada ponte Pênsil, a 31 de outubro de 1886, esperava-se a presença do Rei D. Luís I, que viria a dar o nome à ponte. Sua Majestade, no entanto, decidiu atender a outros assuntos, não marcando presença na cerimónia que daria como aberta a ponte batizada com o seu mesmo nome. Como tal, e insatisfeita com a atitude do Rei, a população portuense decidiu castigar o seu desrespeito, retirando o título “Dom” ao nome da ponte, que passou a chamar-se, oficialmente, Luiz I. 

A mesma ponte – que na altura bateu o recorde de maior arco metálico do mundo – é obra de Théophile Seyrig, pupilo de Gustave Eiffel, e a história das pontes metálicas do Porto é a história da rivalidade entre estes dois projetistas. Se viajarmos a este da ponte Luiz I, encontramos uma estrutura gémea, batizada de ponte Maria Pia. Inaugurada em 1877, esta estrutura metálica foi assinada por Gustave Eiffel, e serviu a ligação ferroviária entre Gaia e a estação de Campanhã, no Porto, até à segunda metade do século XX.

Ainda assim, e num daqueles clássicos momentos históricos que ficam à interpretação dos historiadores, há quem defenda que foi mesmo Théophile Seyrig a fazer grande parte do trabalho que culminou na construção da ponte Maria Pia, acabando os louros por ser creditados a Gustave Eiffel. Ou pelo menos assim defende Helder Pacheco, com o livro Ponte Maria Pia – A obra-prima de Seyrig, de José Manuel Cordeiro e António Vasconcelos, e publicado pela Ordem dos Engenheiros, em mãos. “O projeto é do Seyrig, e foi ele que inventou o arco”, começa por explicar o historiador. “Eiffel era apontado como o inventor da ponte, e é verdade que foi a sua empresa que a construiu, mas o arco e o projeto é do Seyrig”, conclui.

Aliás, esta mesma rivalidade repetiu-se no momento do concurso público para a construção da ponte Luiz I. Entre as várias empresas que propuseram projetos para esta nova travessia, estavam a G. Eiffel et Cie., de Gustave Eiffel, e a Société Willebroek, de Théophile Seyrig. Maestro e pupilo concorriam pela conceção da obra, que acabaria cedida ao alemão, graças à original solução com dois tabuleiros, estando o inferior pendurado ao superior, ao contrário do projeto de Eiffel, que previa um único local de passagem.

Com mais de 100 anos de história, as pontes Luiz I e Maria Pia têm várias estórias para contar. Ao i, Helder Pacheco faz questão de relembrar a forma como a construção da ponte metálica, que uniu, no tabuleiro superior, o centro de Vila Nova de Gaia à baixa da cidade do Porto, mudou por completo o fluxo de pessoas e mercadorias de uma margem para a outra, e de como com a transição da principal faixa de travessia para a cota alta, foi a Avenida da República, do lado de Gaia, e a baixa do Porto (que, não se confunda, está no alto da cidade, relativamente à zona ribeirinha) que ganharam nova vida, trasladando-se praticamente todo o comércio e atividade para as zonas altas da cidade, deixando as margens do rio Douro desprovidas da importância que outrora tinham. “Não é por acaso que a Câmara de Gaia, que estava à cota baixa, passa para a Av. da República, no alto da cidade. Há uma mudança do ponto de vista urbanístico e social dos dois lados impulsionada pela construção da ponte”, explica o historiador.

Inovação implica destruição A construção da ponte Luiz I, no entanto, não veio sem polémica, e Helder Pacheco tem um dedo a apontar à sua construção. “A ponte Luiz I teve uma má inserção do lado do Porto”, com acessos, aos olhos da atual exigência de trânsito, bastante limitados, começa por explicar o historiador. “Abriram a Avenida da Ponte, que foi uma obra criminosa porque destruiu grande parte do bairro da Sé”, acusa ainda. A causa?

Pretendia-se “facilitar o trânsito entre a estação de São Bento e a ponte, que, afinal, hoje já não tem sentido, porque a ponte deixou de ter trânsito”, lamenta, ilustrando uma das típicas consequências das obras que perduram ao longo dos séculos: se nos finais do século XIX, a ponte era mais que suficiente para a carga de passageiros e materiais que exigia, hoje em dia, torna-se numa dor de cabeça precisar de fazer esta travessia, pelo menos através da ponte de baixo, defende Helder Pacheco. Por cima, o metro foi “mais sensível”, garante o professor, mas torna inútil, pelo menos aos olhos da sociedade atual, a demolição de parte do histórico bairro da Sé.

Ponte de eleição para suicídios Helder Pacheco recorda também um lado mais sombrio da história da ponte Luiz I: os suicídios. Uma pandemia que hoje em dia deixou de marcar a realidade da ponte, mas que, em tempos, “podia chegar a ser um por semana”. “A partir do momento em que se inaugura a ponte, os suicídios passam a fazer-se lá. No Porto não se usava muito nem a pistola, nem o enforcamento, preferiam mesmo atirar-se da ponte. Deu origem a espetáculos um tanto macabros, porque alguns caíam em terra. Houve casos em que batiam no arco antes de chegar ao rio”, explica o professor, ele próprio que, segundo recorda, esteve também envolvido numa situação de resgate de um suicida no rio Douro.

A realidade era tal, que o intitulado Duque da Ribeira, figura icónica daquela cidade, e em específico da zona ribeirinha, afirmava ter recolhido das águas do Douro, na sua vida (morreu aos 94 anos) mais de 700 cadáveres, chegando mesmo a construir ferramentas especiais para a atividade. Conta Helder Pacheco que a habilidade do barqueiro era tal, que os próprios bombeiros portuenses recorriam ao seu conhecimento para conseguir encontrar os corpos de quem decidia pôr fim à sua vida a partir da ponte Luiz I.

Não há Porto sem Luiz I As pontes metálicas do Porto e de Gaia são as principais protagonistas dos postais turísticos das duas cidades. Em especial, a ponte Luiz I, cujo tabuleiro inferior dá acesso à zona ribeirinha das duas cidades, atualmente um dos principais pontos turísticos da região, visitado por milhões de turistas todos os anos. Já o tabuleiro de cima, que durante décadas serviu o trânsito rodoviário, e, desde o início do milénio, ficou dedicado unicamente à passagem da linha Amarela do Metro do Porto, junta o Jardim do Morro, local de visita incontornável do lado de Vila Nova de Gaia, à zona da Sé do Porto, também ela um atrativo local de visita dos turistas chegados à Estação de São Bento, que dista uns poucos metros. Não dá para falar da ponte Luiz I sem mencionar os mergulhadores da Ribeira do Porto.

Uma velha tradição – imortalizada por Manoel de Oliveira no seu filme Aniki Bobó – que se mantém viva e rejuvenescida com a crescente afluência de turistas à região nos últimos anos. Quem passar pela Ribeira, tanto do lado do Porto como de Gaia, vai-se cruzar com os jovens locais que, a partir da ponte de baixo, fazem impressionantes saltos para o rio Douro. Uma prática pouco recomendada pela Autoridade Marítima, mas que atrai todos os dias – pelo menos em tempos não-pandémicos – centenas de espetadores, que se divertem a ver os jovens portuenses a fazer peripécias, mergulhando nas frias águas do rio Douro, e, claro, passando um chapéu no fim de cada salto, aproveitando a generosidade de quem é visitante na cidade.

Maria Pia em perigo Também a ponte ferroviária de Maria Pia – desativada no ano de 1991 – conta com as suas interessantes fábulas, recorda Helder Pacheco, que faz questão de relembrar uma interessante realidade, já nas últimas décadas do seu funcionamento. “As pessoas, muitas vezes com medo que a ponte caísse, preferiam sair do comboio em Gaia e cruzar o rio noutro meio de transporte”, começa por revelar o professor, que recorda ainda o “mito urbano”, como o mesmo o define, que dizia que, se se fosse pescar para a zona por baixo da ponte Maria Pia, era possível ver alguns pregos e partes da ponte que caiam para o rio. Uma realidade que o mesmo, no entanto, garante nunca ter vivido, mas que era tema de conversa frequente.