O amor acontece até nos cenários mais improváveis

O amor acontece até nos cenários mais improváveis


Uma cadeia alimentar alemã decidiu criar um corredor do amor, onde os clientes se podem conhecer em tempos de pandemia. À falta de discotecas e bares, nada como um supermercado para conhecer a cara-metade ou um encontro fortuito.


Alguma vez imaginou encontrar o amor da sua vida enquanto faz compras no supermercado? Para muita gente, as superfícies comerciais podem ser o lugar menos romântico para um encontro amoroso, mas para os habitantes de Bundesrepublik, na Alemanha, a ideia não é assim tão descabida.

Com as discotecas, cafés, bares e restaurantes fechados, encontrar o amor pode parecer uma missão quase impossível. Desde que o mundo conheceu a pandemia da covid-19, os dias são divididos entre casa e supermercado e muitas pessoas já estão fartas das aplicações destinadas à busca pela cara-metade. Ao longo desta crise pandémica temos assistido a um aumento dos números, em todo o mundo, de casos de depressão e ansiedade. Este aumento deve-se principalmente ao maior isolamento e solidão.

A filial bávara da rede de supermercados alemã, Edeka, contrariou isso lançando uma iniciativa para incentivar os solteiros a fazerem as suas compras às sextas-feiras entre 18h e 20h e, assim, contribuir para o encontro amoroso no meio das prateleiras ou na secção dos congelados, em tempos de coronavírus. De acordo com o jornal britânico EN24, o supermercado oferece esse serviço há cerca de dois anos, mas só depois da pandemia é que a ideia se tornou tão atraente.

Crachá do amor A ideia é simples: ao entrar na loja os clientes interessados na iniciativa usam um crachá em forma de coração com um número indicado. Quando alguém está interessado noutra pessoa com aquele crachá pode abordá-la. Se for mais tímida, tem de anotar o número e preencher um formulário no qual há sugestões predefinidas ao longo das linhas. Depois disso, um funcionário liga para o número que foi perfurado pelas setas do cupido no sistema de endereços públicos, entrega essa mensagem à pessoa ou dá-lhe um cartão de contacto com uma mensagem deixada pelo interessado(a).

Segundo Bruno Reis, sociólogo e professor na Universidade Autónoma de Lisboa, fazendo referência à socióloga Eva Illouz, uma das principais estudiosas das questões amorosas, “as sociedades ocidentais estão marcadas por uma hipersexualização do quotidiano”.

O sociólogo acredita que assistimos a uma colonização da esfera pública pela intimidade: “A exposição do corpo e dos afetos atravessam os estilos de vida. Seja pela erotização publicitária, seja pela carga sensual das produções culturais de massas e o glamour das figuras pop, seja pelo soft porno dos reality shows ou pela democratização dos consumos pornográficos”. Posto isto, a rede de supermercados, Edeka, percebeu que esta iniciativa seria um claro posicionamento contracorrente às lógicas de isolamento impostas, tal como declara Bruno Reis, “parece ter conseguido capitalizar comercialmente esta estratégia, ao obter visibilidade mediática. A prova é a notícia que nos serve de tema para esta conversa. O valor notícia reside no facto do supermercado como território de excecionalidade, ao possibilitar a restituição do mercado sentimental, congelado pelo efeito do vírus e do(s) confinamento(o)s”.

O sociólogo afirma que registamos uma alteração nas formas de socialização amorosa onde a gestão afetiva, pessoal e intransmissível, se “alterou significativamente com a diluição da fronteira entre esfera pública e privada, efeitos decorrentes de uma cibercultura, onde registamos uma disponibilidade maior por parte dos atores sociais para novos procedimentos ‘mediados’ de procura amorosa/sexual”, acrescenta.

Com a democratização das práticas digitais e com o surgimento de “plataformas de relacionamento” e de empresas especializadas em prestar serviços de aconselhamento amoroso/matrimonial, o investigador comenta que se regista na sociologia uma tendência para a expansão das estratégias por parte dos indivíduos para se relacionarem de forma amorosa, sexual ou/e matrimonial. “De forma complementar registamos um número crescente de programas televisivos que propõem aos concorrentes solucionar a sua vida sentimental. Todos estes procedimentos de mercantilização amorosa, configuram o que eu designaria como uma terciarização dos afetos”, frisa.

Em Portugal, foram várias as notícias, há uns anos, que davam conta da denominada hora da Coca-Cola – em alusão ao anúncio do homem corpulento que bebia sempre a bebida às 17 horas e onde as mulheres ficavam a observar enquanto sonhavam com algo mais – onde os clientes de algumas grandes superfícies escolhiam fazer as suas compras entre as 17 e as 19 horas, optando por ‘girar’ na zona dos vinhos. Aí, eram frequentes as trocas de conversas, onde os pedidos de ajuda para escolher o melhor néctar mais não eram do que uma forma de estabelecer uma relação.

Portugal longe da Alemanha Contactadas as grandes superfícies que estão instaladas em Portugal, como seria de esperar, ninguém assume uma estratégia idêntica à da Edeka. A Sonae diz que, apesar de estar sempre recetiva a propostas inovadoras, que garantam a segurança de colaboradores e clientes, face à situação que atravessamos atualmente, “algo neste formato pode condicionar a segurança de clientes e colaboradores.”

Já o Lidl Portugal não comenta decisões de concorrentes noutras geografias. “O nosso foco, neste período de pandemia, continua a ser o fornecimento de bens à população, garantindo que encontram nas nossas lojas toda a higiene e segurança necessárias para tal”.

Segundo o sociólogo “a intimidade ganhou visibilidade pública e deixou de ser um processo pessoal e privado, é agora uma possibilidade em aberto e de natureza mais ampla, que não se encerra nos circuitos de sociabilidades dos indivíduos, mas encontra expansão nas possibilidades que as tecnologias, os serviços ou programas podem proporcionar como conectores afetivos”. Prova disso é que mesmo em tempos pandémicos, muitas são as formas de encontrar o amor. O importante é não desistir. Nem que seja num corredor de um supermercado.

*Texto editado por Vítor Rainho