Teria sido imprudente e uma tarefa bastante espinhosa tentar fazer uma antologia da poesia de Louise Glück, porque mesmo os poemas em tom menor, esses que menos ferem, orientam a atenção, afinam a percepção para essas intenções e sinais que depois se nos revelam de forma mais intensa. Aqui, “as notas repetem-se. Pairam vagamente,/ em antecipação do silêncio./ O ouvido habitua-se a elas./ O olho habitua-se às ausências.” Felizmente, após a atribuição do Nobel da Literatura de 2020, a edição portuguesa apressou-se a emendar a mão, depois desta obra ter sido completamente ignorada até aqui, e coube à Relógio d’Água fazer valer o título da maior colecção de poesia no nosso país (maior em termos quantitativos, entenda-se), e arrematar os direitos para a tradução de quatro títulos da autora (“Averno”, “A Íris Selvagem”, “Uma Vida de Aldeia” e “Noite Virtuosa e Fiel”), publicados quase de uma assentada.
O mais notável dos quatro livros até agora publicados – e há notícia de que pelo menos outros três se seguirão até ao final do ano, sendo o objectivo a publicação integral da obra –, é “Averno”, traduzido por Inês Dias, e foi curioso notar que a crítica por cá tratou obras tão distintas entre si numa espécie de pack promocional, como se os leitores ficassem servidos por igual, como se as experiências de leitura que estes proporcionam pudessem ser amalgamadas, o que revela, afinal, a tendência entre nós para reduzir tudo a índices, a aspectos gerais, incidências, num exame que prefere inventariar a ler e desdobrar o sentido dos versos.
Raras vezes se tem lido uma poesia com tamanha implicação reflexiva, com esta capacidade de influir na mais densa trama deste profundo abatimento contemporâneo, em que a vida, já sem utopia, se torna irrespirável, e em que, para evitar a petrificação, o mundo vai sentindo a falta de um delírio novo, mesmo que prefira trazê-lo no bolso, nesses trocos para fantasias medíocres, nesta ingenuidade de quem apenas se entrega a divagações sem grande fulgor sobre o futuro, reconhecendo afinal que nos encontramos todos num ponto morto. Mas Louise Glück diverge, e, com o seu idealismo muitas vezes amargo, a sua obra é bastante avessa à sensibilidade caduca de uma época que, à medida que se entrega à velocidade, aos estímulos e às pobres sinapses geradas por uma deglutição quase forçada, vai perdendo a capacidade de se mover em terrenos mais árduos. Cai-se assim num brusco nivelamento, em que a maioria dos leitores não só se tornaram incapazes de apreciar as nuances como até as perseguem com um ódio feroz. Aquilo que nos oferecem a maioria das colectâneas de versos hoje publicadas são anotações que balançam entre o tom melancólico e uma ironia impante, coçando um vazio à margem de um quotidiano sem grande moral, em que os humores e o próprio hálito parecem entretecer as suas impressões como um vício um tanto torpe, para distrair-se nesse estilo pretensamente realista, que acaba, no entanto, por se trair, e resultar empolado e artificial, tornando-se assim o último asilo histórico da personalidade.
Numa novela cuja acção se desenrola em Lisboa, “A História Seguinte”, o poeta holandês Cees Noteboom, acusava essa figura bastante mole do poeta de quem se pode hoje esperar de dois em dois ou de três em três anos “uma colectânea minúscula das notícias da morna província da sua alma, versos desdentados, comboios de palavras à deriva no branco das páginas”. O narrador desta prosa vive de observações bastante cínicas, e que servem apenas para afiar o tom deste “míope lendário, compilador de guias turísticos, mas apóstolo intransigente dos poetas latinos”, que acorda um dia com a sensação de já não existir e se entrega a uma meditação encantadora, mesmo se embalada na misantropia, confessando-nos “a que amores defuntos o conduziu o seu gosto moderado pelas línguas mortas”. Um ex-professor, o protagonista, Herman Mussert, é alguém que exalta “o caos dos sentimentos constrangido pela ordem da composição", e que diz da sua estante tratar-se da sua única árvore genealógica e desmascara esse registo de empáfia dos versejadores que não leram nada, e fazem disso até um motivo de orgulho, e diz-nos que “escrever quando tudo já foi escrito é para os presunçosos, os cegos, aqueles que não sentem o sabor da sua própria mortalidade”.
Hoje, o que da poesia se espera não é mais do que um bálsamo para resistir ao desencanto, uma justificação para a persistência lesiva do mundo para lá daquele ponto onde nos vimos obrigados a abandonar as nossas esperanças e ilusões. Ainda há quem se vire para as coisas da arte “como se o artista tivesse/ o dever de criar/ esperança”, anota Glück, mas logo interjecta: “mas a partir de quê? de quê?” Como escreveu Javier Marías, “o mal das desgraças muito grandes, das que nos partem ao meio e que parece que não vamos poder suportar, é que quem as padece acredita, ou quase exige que com elas o mundo acabe, e contudo o mundo não faz caso e continua, e ainda por cima é exigente com quem sofreu a desgraça, isto é, não lhe permite sair como quem abandona um teatro, a não ser que o desgraçado se mate”.
Esta poeta norte-americana fala-nos da sua “alma/ despedaçada pelo esforço/ de tentar pertencer à terra”, e deixa claro que não tem ilusões de que o mundo se vá compadecer com o seu sofrimento: “Quando o desejo de expiação/ é crónico, feroz, não escolhes/ a forma como vives. Não vives;/ não tens o direito de morrer.// Vagueias entre a terra e a morte/ que acabam por se revelar/ estranhamente parecidas.” Nestes poemas há lugar para a obscuridade, para os momentos em que nos sentimos destroços e restos rejeitados do mundo, e damos por nós surpreendidos pela “existência de uma melodia compondo a vida de um indivíduo numa unidade iluminada por um sentido” (Claudio Magris). Esta é uma poesia que através da nuance recoloca a ênfase na educação sentimental, dirigida menos a quem busca aquele registo apoteótico e de sobrexcitação lírica, do que a quem cozinha calmamente o próprio coração, temperando-o contra a vulgaridade da época. Tal como no poema de Stephen Crane, quando nos deparamos com esta poeta, “que de cócoras na terra/ tinha o seu próprio coração/ nas mãos, e comia…”, adivinhamos que, se lhe perguntássemos se é bom, também ela responderia: “É amargo, mas gosto/ porque é amargo/ e porque é o meu coração.” E quanto a este tempo, a este cerco que, como um vírus, corrompe tudo, dele a poeta diz sucintamente: “Este é o presente, uma alegoria do desperdício”.
Glück fala-nos de um “tempo de espera, de acção suspensa”… “O tempo era sentido/ mais como ritual do que como narrativa./ O que se repetia ganhava peso.” Os mitos estão lá, há sempre um aceno à capacidade de duração das nossas conquistas, mas, tal como o mar, cujo som é “já só memória”, dessa força permanente o que fica é um contraste, à medida que o mundo vai “perdendo a cor, como um negativo; a luz atravessava-o/ de um lado ao outro”. Noutro momento, a poeta adianta que “o sol frio/ permanecia como uma curiosidade, uma lembrança, com o tempo a correr atrás dele”. A escrita permite ir “transformando o pensamento em prece”, antes ou depois desse grito que saído de nós não deixa de nos surpreender, ao ponto de a voz nos acalmar. Pelo meio, há essas indagações que sinalizam o terror de se “estar sozinho, onde ninguém te ouve” – “Será possível desperdiçar a própria vida?” – com a sensação de que “em breve o espírito desistirá –/ e não há cadeira no mundo que te possa valer”. “Apanhas o comboio, desapareces./ Escreves o nome numa janela, desapareces.// Há lugares assim em todo o lado,/ em que entras como rapariga/ e de que nunca mais regressas.”
Em grande medida este livro é o trabalho de regresso à vida de alguém que se tomou por um condenado. Documenta a dolorosa digestão de um trauma, de alguém que faz os possíveis por reaver a carne, por sobreviver ao fantasma, a esse golpe que nos lança para o exterior da vida e de nós mesmos, uma dessas desgraças que nos partem ao meio. (“Deixaste de estar aqui no mundo./ Estás num lugar diferente, um lugar onde a vida humana não tem sentido.// Não és uma criatura num corpo./ Existes como as estrelas existem, participando na sua quietude, na sua imensidão.”) Assim, o poema “Lago na Cratera” funciona como um eixo de “Averno”, livro que por nos parecer mais complexo, o mais exemplar desse golpe de rins, desse talento para respirar vida nova numa existência que parecia estar a ser usada apenas “para sustentar uma ficção”, mais exige que nos detenhamos nele. “Houve uma guerra entre o bem e o mal./ Decidimos que o corpo era o bem.// Isso fez da morte o mal./ E virou a alma/ inteiramente contra a morte.// Como um soldado raso desejoso/ de servir um poderoso guerreiro, a alma/ desejou aliar-se ao corpo.// Virou-se contra as trevas,/ contra as formas de morte/ que reconhecia.// De onde provém a voz/ que diz: e se a guerra/ for o mal? Que diz:// e se foi o corpo que nos fez isto,/ nos deixou com medo do amor?”
Aquilo que estes poemas fazem, o que alcançam de uns para os outros, é uma clareza diversa, um registo tenso, uma interioridade imensa, próxima do monólogo interior, tremendo da observação e sensação das coisas. Glück aprofunda um juízo inquieto, como quem encarasse o mundo recuperando de uma doença devastadora. Com essa sensibilidade dilacerante em que, mais do que a consciência, parece ser o corpo que reage a elementos que, normalmente, nos são indiferentes, mas que registam agora o sofrimento numa outra escala, como as réplicas de um sismo que já todos esqueceram. “Um vento levantou-se e amainou, arrasando a mente;/ deixou na sua esteira uma singular lucidez”, lê-se em “Averno”.
Nuns versos do livro “A Íris Selvagem”, a poeta diz-nos que “ninguém louva/ tanto como eu, com desejo/ mais dolorosamente controlado”. A alma é uma vergonha onde cabe uma vida inteira, vai-se confundindo com uma crónica de fracassos e desilusões, não se sabendo exactamente ao que ficou presa, que acto ou que palavras entre todas secretamente a envenenam, que ofensa mudou o sentido das coisas.
Nesta obra, damo-nos conta de como, para lá de um certo ponto, a consciência pode tornar-se algo de terrível, não deixando mais nada ao silêncio. Para lá desse ponto, mesmo a inexpressão do mundo olha friamente para nós. A presença que aqui se constrói, ouve encostando o rosto nos lugares mais frios, ouve esse coração desfeito, essa sombra que restou de uma época mais apropriada à nossa sensibilidade. Pior do que a sensação de se chegar tarde, será a de a vida ter deixado de funcionar para nós. (“Dizem/ que há uma falha na alma humana,/ que esta não foi pensada para pertencer/ inteiramente à vida.”) Estando vivos, só a morte parece ainda conter um verdadeiro mistério, e, assim, não podemos senão mover-nos do lado de fora, acompanhar o seu movimento a partir das margens. Depois há um momento em que nem para nós mesmos somos reais. “O meu corpo arrefeceu como os campos despidos;/ agora só existe a minha mente, desconfiada e atenta,/ com a impressão de ser testada.” Noutro momento, Glück escreve: “Que fará então a alma para se consolar?/ Digo-me que talvez não precise/ desses prazeres;/ talvez lhe baste não existir,/ por mais difícil que seja imaginá-lo.”
Mas é quando o corpo não parece ser mais do que uma meditação tardia, lançando a sua sombra invulnerável sobre a terra, que algo parece acolhê-lo. É aí, quando “o que em nós está ferido pede asilo às mais pequenas coisas do chão, e recebe” (Christian Bobin), que a natureza nos mostra a sua face consoladora. “Após o primeiro Inverno, o campo despontou outra vez./ Mas já não havia sulcos ordenados./ O cheiro do trigo persistia, uma espécie de aroma distraído,/ mesclado com várias ervas daninhas para as quais/ ainda não se encontrou uso humano (…) Afinal a natureza não é como nós;/ não tem um armazém de memórias./ O campo não fica com medo de fósforos,/ nem de raparigas. Esquece/ até os próprios sulcos. É destruído, é queimado,/ e um ano depois está vivo outra vez/ como se nada de invulgar tivesse acontecido.”
Num momento anterior deste livro circular, oracular, Glück anotará: “O que outros encontravam na arte,/ encontrava eu na natureza. O que outros encontravam/ no amor humano, encontrava eu na natureza.”