James Levine. Dominou o mundo da música clássica e foi destronado por um escândalo sexual

James Levine. Dominou o mundo da música clássica e foi destronado por um escândalo sexual


Depois de uma brilhante carreira que fez dele uma das figuras mais reverenciadas da música clássica, acabou os seus dias entre o rol dos figurões abatidos pelo movimento #MeToo.


O reinado de James Levine enquanto titular da orquestra da Metropolitan Opera de Nova Iorque estendeu-se por mais de quatro décadas, e depois da morte de Leonard Bernstein, em 1990, tornou-se o mais célebre dos maestros norte-americanos, mas a sua fulgurante carreira findou com um escândalo sexual no final de 2017. Esta quarta-feira, o atraso com que foi dada a notícia da sua morte, no passado dia 9 de março, sinaliza a amargura com que Levine encarava a forma desonrosa como foi empurrado para a margem, enxotado pela administração daquela Ópera cujo prestígio mundial foi, em grande medida, um resultado da sua devoção exemplar. Levine morreu aos 77 anos, em Palm Springs, na Califórnia, e a razão da sua morte não foi tornada pública pelo seu médico, Len Horovitz.

 Antes de o escândalo ter vindo a lume, era difícil cindir onde começava a adulação por Levine e a magnificência do Met, que se tornou a principal instituição das artes performativas nos EUA, tendo ele sido fundamental na expansão do seu repertório bem como na construção de uma orquestra que estava entre as mais destacadas em todo o mundo. Mas nos últimos anos, a partir de 2004, Levine passou a dirigir também as formações de Boston e Munique, sendo celebrado por ter revitalizado estas orquestras, dando força à música contemporânea e encomendando sumptuosas composições de autores vivos. Esteve ainda ligado à Filarmónica de Berlim, de Viena e à Orquestra Sinfónica de Chicago, sendo diretor musical do festival de Ravinia por mais de 20 anos.

A sua estreia como maestro no Met deu-se em 1971, e até ao seu afastamento, nos 137 anos daquela instituição, ninguém dirigiu tantas vezes a orquestra, num total de 2552 atuações, tendo aprimorado desde o repertório à orquestra e aos cantores fosse como director musical ou artístico entre 1976 e 2016, quando já não tinha como esconder os tremores causados pela doença de Parkinson. Tendo abandonado a direção da Ópera, tornou-se seu diretor emérito e prosseguiu à frente do programa de jovens artistas até ser suspenso a 3 de dezembro de 2017, um dia após ter dirigido o Requiem de Verdi naquela que acabou por ser a sua despedida dos palcos, depois de terem sido publicadas nos jornais New York Post e New York Times as alegações feitas por quatro homens acusando-o de abusos sexuais que remontavam à década de 1960.

Levine acabou por ser despedido em março seguinte, e embora tenha ainda visto agendada uma série de atuações que marcariam o seu regresso aos palcos, dirigindo Ein Deutsches Requiem de Brahms no passado mês de janeiro, em Florença, o concerto acabaria cancelado devido à pandemia do coronavírus. Após terem sido tornadas públicas as alegações de abusos sexuais, o Met contratou o antigo procurador-geral norte-americano Robert J. Cleary, da empresa Proskauer Rose, para encabeçar uma investigação independente que, no decorrer do inquérito, terá ouvido os testemunhos de mais de 70 pessoas. No fim, a equipa determinou que se tinham “apurado provas credíveis de que Levine tinha cometido atos de abusos sexuais e assédio antes e depois do período em que esteve ligado ao Met”.

A investigação foi perentória não apenas ao apontar para um comportamento que persistiu ao longo de décadas mas que teve como vítimas “artistas vulneráveis nas fases iniciais da sua carreira, e sobre os quais Levine tinha autoridade”. Tendo por base essas acusações, o Met concluiu que seria inapropriado e mesmo até impossível manter a ligação com o maestro. Na sequência do despedimento, Levine recorreu aos tribunais, pedindo uma indemnização de 5,8 milhões de dólares por quebra de contrato e por difamação. A juíza do supremo de Nova Iorque, Andrea Masley, rejeitou todas as acusações de difamação exceto uma, e o caso viria a ser resolvido num acordo no verão de 2019, com a Ópera de Nova Iorque e a sua seguradora a pagarem ao maestro 3,5 milhões de dólares.

 No fim, a ligação de Levine ao Met durou 47 anos, tendo ocupado diversas posições de liderança artística. “Nenhum artista nos 137 anos de história do Met teve um impacto tão profundo como James Levine”, reconheceu Peter Gelb, o administrador geral daquela instituição. “Ele elevou o padrão do Met a nível musical a alturas que antes apenas tínhamos sonhado atingir”.

 

o que um grande maestro deve ser Filho de um músico e de uma atriz, James Levine começou os seus estudos musicais pelo piano e continuou a tocá-lo, mesmo quando era já um maestro consagrado. Chegou à Metropolitan Opera com 28 anos, e dirigiu pela primeira vez a orquestra em Junho de 1971. Dois anos mais tarde tornou-se maestro principal e, em 1976, assumiu a direcção musical. A sua figura não recortava propriamente um contorno inspirador de lendas. Com pouco mais de um metro e setenta, a cara redonda, o cabelo num desconchavo em que os caracóis foram cedendo até formarem uma nuvem desfalcada, além dos óculos, ficou barrigudo, e assim, como lembra o New York Times, estava bem longe da imagem de cativante maestro, com aquela agitação de quem faz descer raios e os afina, ritma, decompõe melodiosamente. Mas se lhe faltava, também na forma de conduzir, esse perfil distintivo, como nota o principal crítico de música clássica do Times, Anthony Tommasini, as suas apresentações desenvolviam uma educação, sabia criar uma envolvência, uma história, em atuações que eram “lúcidas, ritmicamente incisivas sem serem obstinadas, e estruturadas de forma convincente, dando ainda às linhas melódicas espaço para respirarem”. Mais do que isso, acrescenta Tommasini, Levine “valorizava a naturalidade, sem que nada soasse forçado, fosse uma explosão tempestuosa de uma ópera de Wagner ou uma passagem reflexiva de uma sinfonia de Mahler”.

O crítico do Times recorda que o pai do maestro sempre tentou que este se cuidasse mais, que perdesse algum peso, que usasse o cabelo mais curto e trocasse os óculos por lentes de contacto, mas Levine fazia da sua pobre figura uma estratégia, para que a surpresa fosse maior. “Eu disse sempre que iria erguer-me de tal modo em oposição ao grande perfil que se espera de um maestro que terei a enorme satisfação de saber que se consigo o que quer que seja é por estar comprometido com a música, e não porque as senhoras no primeiro balcão suspiram e têm um fanico depois de concentrarem os seus olhares em mim”, disse Levine num artigo em que foi capa da Time em 1983. E Tommasini vinca que, de facto, muito para lá da sua aparência, a atitude de Levine ajudou a expandir a perceção do público em relação àquilo que um grande maestro deve e pode ser, tendo-se tornado uma presença regular no imaginário popular através das tantas transmissões “Live From the Met” na televisão pública e indo ao ponto de aparecer ao lado do rato Mickey no filme Fantasia, de 2000, tornando-se um dos músicos clássicos mais conhecidos em todo o mundo.

Ainda antes do escândalo sexual arrasar o seu prestígio, foram os problemas de saúde que pareciam mover-lhe perseguição depois de ter alcançado uma posição única, tendo construído uma orquestra inigualável em toda a história do Met. Na última década, as crises sucederam-se uma após outra, incluindo um tumor cancerígeno num rim, uma hérnia discal e uma cirurgia para reparar o ombro depois de uma queda no palco do Symphony Hall em Boston, em 2006. Estes problemas forçaram-no a estar ausente por períodos de semanas e até meses, e acabariam por obrigá-lo a deixar o seu posto em Boston, em 2011. Dez anos antes tinha começado a dirigir sentado, e quando os tremores no seu braço esquerdo e numa perna se tornaram perceptíveis, em 2004, admitiu que a doença de Parkinson já o afetava desde há uma década.