José de Sousa foi o primeiro português – e o primeiro estreante – a vencer o Grand Slam of Darts, uma das mais prestigiadas competições de setas no mundo. O ribatejano – residente em Espanha há mais de 15 anos – é estrela ascendente num desporto dominado por britânicos. Com saudades da pesca, dos amigos e dos banhos no rio Tejo, mas tendo emigrado por todo o mundo, José chegou à profissionalização nas setas, e em dois anos disparou pelo ranking mundial de jogadores, aterrando no 15.º posto. Tem pela frente um novo desafio: a Premier League, da modalidade, no Reino Unido, a arrancar em abril deste ano.
Em que momento pegou pela primeira vez a sério nos dardos?
Vai fazer 27 anos que peguei pela primeira vez. Começou como uma brincadeira com amigos, nem sabia que existiam setas. Um dia disseram “porque é que não vens na sexta-feira connosco? Vamos a um sítio onde as pessoas vão para dançar, e há um sítio que tem uma máquina de setas”. Não tinha nem ideia do que era. Entretanto, gostei e comecei a ir frequentemente para jogar. No início era mau, mas fui melhorando. Fui crescendo, fui gostando mais, fui vendo outros jogar, e aqui estou.
Naquele momento, pensou alguma vez que poderia ser profissional?
Naquela altura era um sonho poder jogar onde estou hoje em dia, mas foram precisos 24 anos para poder chegar aqui. Não foi nada fácil porque não havia ajudas, mas há 3 anos consegui ajuda para poder conquistar o cartão de jogador profissional. Comecei a jogar no circuito profissional, mas não comecei a ganhar no início. Depois tive a sorte de encontrar um representante. A partir daí, os problemas deixaram de existir no que respeita a procurar hotéis, viagens, e assim. Este senhor trata de tudo por mim. Qualquer coisa que necessite, e que ele puder, resolve, e assim estou muito contente.
Quem o inspirou na altura a continuar a jogar?
Comecei a ver jogos de setas na televisão. Já tinha visto o Phil Taylor, e o Raymond van Barneveld, e principalmente graças a ele é que comecei a jogar e me mantive no ativo. Nem em Portugal, nem em Espanha, se fazem grandes coisas a nível deste desporto, mas creio que agora já as coisas estão muito melhor do que há 20 anos. Há muito poucas oportunidades de levar um jogador português ou espanhol a um torneio internacional, por exemplo, pelo que quem tem uma oportunidade dessas, como eu a tive, tem é de agarrar-se a ela.
Em que momento se dá o clique para passar a ser profissional?
Faz agora três anos. Todos os anos se faz o Open-Pro Mundial, em Ávila. O último ano em que joguei nessa competição, ganhei o lugar no Campeonato do Mundo. Joguei de seguida a Qualifying School, para ganhar o cartão, e a partir daí já não parei. Foi então que comecei a pensar que valia a pena dedicar-me inteiramente a isto. Depois de assinar com o representante, deixei o trabalho de carpinteiro porque, enfim, tinha de escolher entre esse trabalho ou as setas. Estávamos já a falar de coisas sérias, e eu levo as setas como um emprego também. Falei com o meu patrão na altura, ele percebeu completamente, e continuamos bons amigos. Foi nessa altura que passei a dedicar-me totalmente às setas, não a 100%, mas a 200%.
Foi difícil encontrar apoio para tornar-se profissional?
Sim, porque não é fácil conseguir um representante. Ao princípio foi difícil, porque vinha de jogar só nas máquinas, e é sempre difícil gastar dinheiro e não ter benefícios, mas depois quando um jogador começa a ganhar rondas e cada vez mais é melhor, vê-se de outra maneira. O ânimo é diferente, e quando se assina com um representante, todos esses problemas já se solucionam com o contrato.
Na Azambuja, e depois em Vale de Cavalos, os dardos já faziam parte da sua vida?
Não, nem de perto. Quando comecei a jogar às setas já tinha 20 anos. Na infância, como tínhamos uma quinta, divertíamo-nos com os colegas da escola a brincar aos índios e aos cowboys. Hoje em dia os miúdos não sabem o que isso é [risos]. Jogava aos jogos normais, às escondidas, por exemplo. Desporto só na escola. Fazia todo o tipo de desporto, sem nenhum problema, mas nunca pratiquei nenhum assim a nível competitivo. De pequeno, gostava era de desfrutar dos amigos e nas brincadeiras normais de então. E quando nos cansávamos, como vivia ao pé do Tejo, pegávamos nos calções de banho e íamos ao rio e tomávamos banho. Foram os melhores tempos da minha vida.
Falou-me no futebol. Era fã de algum clube?
Naquela altura, não tinha esse interesse por ser de algum clube. Já a partir dos 13 anos, comecei a gostar do Sporting, mas não gosto de discutir futebol. Gosto de ver, mas as discussões muitas vezes não terminam no caminho certo. Nas setas é diferente, dou-me bem com todos os jogadores, e sou uma pessoa muito respeitada e respeito também todo o mundo.
Porque viveu na Azambuja, Vale de Cavalos e Chamusca ainda em criança?
Quando somos pequenos, os pais é que mandam, e dependendo das condições é que se decide onde temos de viver. No meu caso, aos cinco anos, os meus pais arranjaram trabalho numa quinta na Chamusca, então mudámo-nos para lá. Aos nove, morreu o meu pai, e aos dez fui para Vale de Cavalos com a minha mãe e com o meu irmão, e depois ali fiquei até ter emigrado para a Alemanha.
Em que momento decide emigrar para a Alemanha, e porquê?
Emigrei para a Alemanha em 1994. Em Portugal as coisas não estavam a correr tão bem, e tive a oportunidade de trabalhar lá. Passava-se muito frio e muitas dificuldades no trabalho, porque era duro e ao ar livre, mas compensava bastante. Depois da Alemanha fui para Itália, e dali para a França, onde estive pouco tempo, até que encontrei um lugar fixo em Tarragona. Aí vivi cerca de 14 anos, e depois mudei-me para Madrid.
O que deixou para trás em Portugal nessa altura?
A família e os amigos, porque o resto são bens materiais, e coisas que não se sente assim tanta falta. Por exemplo, eu gostava de ir pescar, e tive de vender o material porque não o ia usar, então era parvo ainda tê-lo. Tive pena, mas tenho mais saudades de pescar do que do material, claro. A família é algo que deixamos para trás e temos saudades por passar tanto tempo no estrangeiro, bem como os amigos. Uma pessoa lembra-se das festas e das discotecas e ficamos com saudades dos amigos, mas somente isso é que deixa saudade, os bens materiais não.
Mantém ligações a Portugal, ou a sua vida é agora completamente fora do país?
Sempre que posso, vou uma semana a Portugal, mas não tenho muito tempo. Com o meu calendário, é difícil vir a Portugal, a não ser que seja por setas, o que não acontece ainda. Aí teria todo o tempo para ir [risos]. Mas, normalmente, vou entre duas ou três vezes a Portugal, ou por coisas que tenho de ir necessariamente para resolver, ou simplesmente para passar uns dias, ver amigos, e relaxar.
Como reagiu a família a esta nova profissão na sua vida?
A minha mãe nem tinha bem noção do que fazia. Os meus irmãos sim, sabiam e sabem bem ao que me dedico. Hoje em dia, já a minha mãe sabe perfeitamente qual é o significado das setas na nossa família, e tanto ela como os meus irmãos estão sempre a apoiar e a ver pela televisão. Ela no início ainda dizia, “Setas, o que é isso? Vai mas é trabalhar”, mas já percebeu que isso é mesmo o meu trabalho, e apoia-me sempre.
Vive em Espanha, apesar de a maioria dos torneios da modalidade se jogarem no Reino Unido… porque não terras de sua Majestade?
É fácil. Tudo o que devo aos dardos é graças a Espanha. Aqui (Reino Unido) venho apenas trabalhar. Vivo em Espanha e venho trabalhar aqui porque a vida não é tão cara como aqui. Ao Reino Unido não venho a tempo inteiro, só por semanas ou por um mês. Não me compensaria viver em Inglaterra só para isto, porque seria muito mais caro. No que respeita hoje em dia à documentação para viajar, testes, e outros trâmites, é verdade que não gastaria dinheiro, mas no que respeita ao aluguer e à comida no Reino Unido, seria muito mais caro.
Sobre a novela com Kiko Hernández, como reagiu quando descobriu a polémica em torno do seu patrocinador, que se viu envolvido num esquema de tráfico de droga?
A minha relação com o Kiko sempre foi boa. Ele pode ter tido a vida que tinha muito atrás do que pensávamos que era. Ele tinha 16 equipas, muita gente a jogar no seu bar, sempre foi uma pessoa excelente, tratou bem toda a gente. Como jogava no seu bar, pagava-me certos gastos nos campeonatos. Foi ele que me começou a ajudar a ir ao Reino Unido. Claro que o bar era lucrativo, e à parte ele vendia carros de alta gama, e eu pensei que era a isso que se dedicava. Quando rebentou a bomba e soubemos a sério ao que se dedicava na sua vida privada, foi uma surpresa para todos.
Esta polémica afetou a sua carreira desportiva?
Não manchou em nada. Toda a minha relação com ele foi nos dardos. Nunca me tinha passado pela cabeça ao que se dedicava. Continuei a jogar normalmente, não me desconcentrou, e não fui com a cabeça a pensar que o meu amigo se dedicava a isso. Eu venho sempre ao Reino Unido para trabalhar, e, se tenho algum problema, fica em casa.
É esse o segredo para as vitórias?
O pensamento é sempre o mesmo. Quando perco, o melhor que posso fazer é esquecer e pensar no seguinte. Isto é o mesmo. Se tenho algum problema, deixo-o em casa, ou se posso resolver aqui, através de uma chamada ou isso, melhor.
Depois de conseguir o cartão de jogador profissional, foi chegando mais perto das vitórias. O que impulsionou esta rápida subida na sua carreira desde 2019?
Duas coisas. A primeira foi que, no primeiro ano de jogar o circuito da PDC, um dos meus patrocinadores fez-me umas setas novas, e isso ajudou-me a definir melhor o meu tiro à hora de jogar. E a outra foi ter a cabeça descansada quase sempre só a pensar nos dardos. Não é o mesmo ir jogar e pensar no hotel, táxi, viagens, e outros elementos. São muitas coisas, e no final isso passa fatura. Graças a Deus esse problema já não o tenho, e isso para um jogador é muito importante.
Falemos da vitória no Grand Slam… como se sentiu ao conquistar este título, ainda por cima sendo o primeiro português a consegui-lo?
Como português é sempre um grande orgulho, não somente por ter vencido o Grand Slam, mas é sempre um orgulho poder levar o país ao peito, e afinal de contas Espanha também, já que tenho o coração partido em dois [risos]. Depois, foi uma emoção muito grande porque não estava nada à espera de poder ganhar o campeonato, porque é de muito prestígio em Inglaterra e em todo o mundo.
Há quem diga que o PDC é um circuito pequeno, e acabam sempre por jogar os mesmos uns contra os outros, é verdade?
É um circuito pequeno, sim. Somente jogam os 128 melhores jogadores do mundo, depois, às vezes, há campeonatos em que temos de nos qualificar, e é natural que os que estão mais em cima acabem por enfrentar-se mais vezes, porque jogam mais campeonatos com menos jogadores.
A vitória frente a Wade foi a “desforra” da final de 2019 – que perdeu por 8-5 com ele no Players Championship 18?
Quando joguei a final, nem me passou isso pela cabeça. Fui a pensar naquele jogo, não pensei que fosse uma desforra. Joguei bem no campeonato todo, e foi uma grande alegria vencer, especialmente ao Wade, que é o terceiro jogador mais condecorado da PDC.
Como conseguiu bater esses jogadores mais experientes, tendo surgido há relativamente pouco tempo nestas ligas?
É o esforço de muitas horas de treino. Isto é uma coisa que é difícil de descrever. Para mim, foi uma grande alegria poder jogar com estes jogadores. Dei um salto muito rápido, em só um ano e tal subi ao top 16 do mundo. Venho de um país que para eles nem sequer é conhecido pelo jogo de setas e agora, graças a Deus, com os meus triunfos, já Portugal começa a ser mais uma bandeira no panorama no mundo dos dardos.
Em outubro, já tinha vencido o European Darts Grand Prix contra Michael van Gerwen, que na altura era o n.º1 mundial. Foi um impulso para vencer o Grand Slam, um mês depois?
Já tinha ganho ao Michael antes, mas desta vez foi mesmo uma final, e ainda por cima de um Eurotour. Isso compensa sempre, mas as coisas aqui nas setas mudam diariamente. Hoje estamos a jogar bem, e no dia a seguir queremos jogar igual e não somos capazes. Desde logo, essa vitória foi uma boa motivação para trabalhar e continuar nesta linha de vitória.
Acabou o ano no 15.º lugar do ‘ranking’ da PDC, o que significa atingir este patamar para si, tomando em conta que em 2019 estava no lugar 161?
Esperava entrar nos 32, mas nunca nos primeiros 16. É mesmo muito difícil entrar nesse patamar. Foi uma grande surpresa para mim e uma grande alegria, porque ao fim e ao cabo é um prémio ao trabalho que levamos durante o ano e todas aquelas horas de treino.
E sobre a Premier League… o que espera desta nova aventura na sua carreira?
É uma competição mais. É verdade que entram os 10 melhores jogadores. Tenho dois ou três companheiros de equipa a jogar na Premier League. Desde logo, já era algo que pensava que não ia alcançar, e este ano consegui, e é uma felicidade enorme poder lá jogar e poder competir por um prémio que é desejado por todos.
Acha que os outros atletas, que se encontram na liga há mais tempo, o verão como um “underdog”?
Eles já sabem que tipo de jogador sou quando me ponho à frente da diana [alvo das setas]. É bom porque temos mais facilidades em jogar com alguns jogadores e, outras vezes, é mau, porque com o nome só não se ganha, temos de lutar por isso. Ainda assim, fico muito contente que os jogadores, quando jogam comigo, olhem já com um certo respeito, porque já não sou um jogador que acaba de chegar à PDC, mas sim um jogador que, apesar de ter chegado só há dois anos, tem feito coisas boas.
Como se sente ser o único nas grandes ligas que prefere bacalhau a fish and chips?
Primeiro, gosto muito de bacalhau [risos]. Depois, agora já tenho um nome a pesar no mundo das setas, e sou visto com bons olhos por toda a gente. Ainda assim, sinto-me em casa, eles não me diferenciam como o novato que aí vem, nem pensam, “Não sei o que é que ele vem aqui fazer”, ou algo parecido. Não olham com medo, mas sim com respeito, porque é como tem de ser, afinal de contas.
Sobre esta modalidade em Portugal, porque lhe parece que a moda não “colou”?
É fácil. Em Portugal, nas setas, se for perguntar ou pedir ajuda a alguém para fazer um torneio, dizem, “Setas, o que é isso? Isso não é desporto”. Essa é a mentalidade que tem muita gente. O ano passado eu comecei a mudar um bocado a mentalidade. Quando venci o Grand Slam e saí nas notícias, acho que as pessoas começaram a mudar. E os jogadores também. Há muitos que, se antes treinavam meia hora por dia, pois agora treinam uma hora por dia, e isso vai fazer com que o nível aumente e haja melhores jogadores.
Quando venceu o Grand Slam, recebeu também uma chamada do Presidente da República?
É a segunda pessoa que me faz essa pergunta [risos]. Não recebi nenhuma chamada. Se chegasse a ligar-me, era sinal que fiz ruído, e isso seria ainda melhor para o desporto.
Está nos planos algum regresso a Portugal, ou Espanha fala mais alto?
Não, nem por isso. O problema é que, de momento, comprei uma casa em Espanha, como faço a minha vida nesse país, tenho mais facilidade. Por isso, Portugal, de momento, só para fazer férias.
Acha que em Portugal há condições – ou poderá haver – para se organizar algum torneio mais notório no futuro próximo?
Sim. O único problema é que temos de conhecer as pessoas certas no momento certo, e isso leva muito trabalho que não se vê. Portugal já chegou ao Campeonato Mundial, mas para se levar mais um português, isso tem de ter um trabalho muito grande por trás, e esse trabalho não se vê.
O que falta no país para aumentar a prática deste desporto?
Há pessoas interessadas, e a partir do ano passado, em que Portugal entrou no Campeonato do Mundo de pares, já será mais fácil poder organizar alguma competição para esse evento. É tudo uma questão de começar. Quero é agradecer aos jogadores portugueses que estiveram na Qualifying School (torneio para conseguir o cartão de jogador profissional na PDC), e desejar que todos os que puderem participar, e que possam ter o cartão, que o façam, e que saibam que, naquilo que puder ajudar, dou todo o apoio.