Magistralmente paradoxal, a duas mãos, com a inconfundível voz de George Steiner, ressoa a clássico o renovado grito O Silêncio dos Livros, acrescido da resposta Esse Vício ainda impune, de Michel Crépu.
O exercício de Steiner procura desconstruir o livro e o autor; explica, expõe, desnuda o escritor e o exercício de autoridade que este reclama para si sempre que escreve (só pelo facto de escrever) – “no texto escrito (…) está presente um grau máximo de autoridade (…) O simples facto de escrever, de lançar mão de uma transmissão escrita, significa reivindicar para si o estatuto do discurso magistral, do canónico” -, chegando, inclusive, neste perscrutar do literato e da (objetiva, pelo menos, conquanto não completamente assumida/consciente) reivindicação, o Professor e leitor por antonomásia, o crítico ilustríssimo, a um excerto ensimesmado, confessional, tortuoso porque explicitamente torturado por um labirinto aparentemente sem porta de saída, em que (se) coloca o problema (em voz alta) de até que ponto a (sua) migração, apaixonada e fervorosa, para a literatura e a ficção (e como evitá-la, seja por vocação, seja por ofício? Ou, porque não ainda, com uma afeição transformada em vício?) – um personagem de Shakespeare pode, para si, ser mais real que o António da Rua Direita – o tornar, potencialmente, menos sensível ao aroma, mais do que isso, ao sofrimento, do mundo, em suma, a radical questão de saber se as Humanidades humanizam – “enquanto professor, alguém para quem a literatura, a filosofia, a música ou as artes são a verdadeira substância da vida, como poderei eu exprimir a necessidade que sinto de uma lucidez moral, consciente das necessidades humanas e da injustiça que torna possível uma cultura a tal ponto elevada? As torres que nos isolam são mais sólidas do que o marfim. Não sei de resposta satisfatória para este problema”. O intelectual e suas inquietações. A cultura como necessidade indispensável, mas como clarividência, não como paralisia psicológica (ou fuga mundi), um perigo imanente a esta figura na descrição aqui proposta, face aos males do mundo. A interrogação da Alemanha nazi sufragada por Heidegger ou o fechar de olhos sartreano às atrocidades comunistas, são sinaléticas impressivas dos cuidados redobrados a tomar (também/essencialmente) pelos homens da cultura.
Ângulo diverso, perspetiva particularmente curiosa e interessante: herdeiros de Atenas e Jerusalém, recebemos o maior legado intelectual e ético das figuras de Sócrates e Jesus Cristo. Nenhum deles escreveu, nenhum foi autor, nenhum foi publicado. Antes da escrita, muito antes, a oralidade. A transmissão que cria tradição. A comunidade que se funda na memória. A música, provavelmente, como verdadeira linguagem universal. A eficácia retórica, em Sócrates, advinda de diálogos formulados, ritmados, compassados por passeatas com arranques súbitos e paragens abruptas e onde o estilo, a forma, mais enfática, por exemplo, era, por sinal, também, conteúdo; a conclusão de diferentes questões, formuladas sapientemente, requeria artificiosa oralidade, onde os gestos, os acenos, as exclamações eram tudo menos inócuos. Em Jesus, as “parábolas concisas”, rigorosamente à conquista das mentes, facilmente apre(e)ndidas, passadas de igual forma (oralmente). “Um saber de cor (…) é também um saber do coração”. Os livros permitem comentários sobre comentários, rodeiam e evitam a resposta imediata que a honestidade da oralidade impõe. Os livros são, ainda, repositórios de saberes e conhecimentos que estimulam a preguiça – não é preciso decorar, porque o repertório da imensidão do que curamos saber está ali, na biblioteca, mesmo à mão – e o vazio criado pela nova educação torna ausentes quaisquer referências. E, no entanto, “podemos afirmar que tudo o que não aprendemos e não sabemos de cor (…) é aquilo de que verdadeiramente não gostámos”.
Denunciados ou examinados os perigos dos livros, há, cá está o paradoxo, que resgatá-los. Sim, porque há quem lhes queira mal. Os livros podem desaparecer. E isso é toda uma tragédia. Mas quem poderia acabar com os livros? Os fundamentalistas – a quem apenas o livro eleito, na versão autorizada, importa e há, mesmo, livros que convém perseguir, proibir, queimar – e os censores – políticos, religiosos, etc. Os românticos e radicais bucólicos, para os quais apenas a experiência é verde, face ao cinzentismo dos livros (aqui é dado o exemplo de Goethe; Crepú observa, porém, que Goethe nunca foi/seria lenhador…), os radicais que querem criar ex novo precisando para isso de páginas em branco, para que nenhuma obra os ofusque, atormente, limite, constranja, ou embarace…Há, finalmente, essas hordas infantis que enchem as prateleiras de discos e cassetes piratas e desprezam, segundo Crépu odeiam mesmo, o livro. O ar do tempo, a educação e a família do tempo, fomentam essa ignorância – diagnóstico comum a duas mãos. A tecnologia invadiu as casas, estantes povoadas de literatura em quartos adolescentes só em filmes nostálgicos e, para mais, ameaça derradeira ainda que nada insignificante, qualquer careta publica um livro enxameando os escaparates com milhares de novos títulos anuais, mediocridade “que constitui talvez a maior ameaça a pesar sobre o livro e sobre a sobrevivência das livrarias de qualidade que precisam de espaço suficiente para armazenar as obras e poderem dar respostas aos interesses e necessidades de todos, inclusivamente das minorias”.
Que o vício do livro se mantenha, e o silêncio irrompa, necessário, a uma leitura, a qualquer leitura “competente e responsável” (Steiner), e que não tenhamos medo do tempo, de o usufruir concentrados e não enredados, ansiosos, no seu interior, mesmo quando conscientes que ele está crescentemente acelerado, eis um testemunho, a duas mãos, que, compreendendo as palavras/saberes/memórias perdidos nos/com os livros, percebem bem, igualmente, como o ruído inclemente do tempo que passa, coloca os livros em súplica pelo silêncio.