Desfibrilhadores automáticos. “Parece que salvar vidas não é para todos”

Desfibrilhadores automáticos. “Parece que salvar vidas não é para todos”


Com uma cultura de emergência médica pouco enraizada na sociedade, apenas 3% dos portugueses que têm paragens cardiorrespiratórias em ambiente extra-hospitalar sobrevivem.


Em Portugal, a taxa de sobrevivência a uma paragem cardiorrespiratória (PCR) em ambiente extra-hospitalar é de apenas 3%, um número relativamente baixo comparando com outros países da Europa, como a Holanda e a Noruega, em que ultrapassa os 20%. O porquê é relativamente fácil de explicar: o país tem ainda uma fraca cultura de emergência médica enraizada na sociedade, o que significa que, quando alguém assiste a uma PCR, por exemplo, é normal que não saiba o que deve fazer. Isto torna-se um problema grave quando a probabilidade de sobrevivência de alguém que sofra uma PCR desce 7% a 10% a cada minuto. As fibrilhações ventriculares causadas pela PCR só conseguem ser revertidas com um desfibrilhador. Se uma ambulância equipada com a máquina chegar ao pé da vítima cinco minutos depois do início da PCR, encontrá-la-á com menos de 50% de probabilidade de sobreviver.

 

Apenas mediante formação

De acordo com o decreto-lei de 2012 (a primeira alteração ao Decreto-lei nº188/2009) é obrigatório que alguns estabelecimentos de comércio (dependendo da área), aeroportos e portos comerciais, estações de transportes com fluxo médio diário superior a 10 mil passageiros e recintos desportivos, de lazer e de recreio com lotação superior a 5000 pessoas estejam equipados com desfibrilhadores automáticos externos (DAE) – “um equipamento utilizado na paragem cardiorrespiratória (PCR) e que tem como função aplicar uma carga elétrica no tórax”, como o descreve o site do Serviço Nacional de Saúde. No entanto, apenas quem tem formação em Suporte Básico de Vida (SBV) e DAE pode proceder à sua utilização. Para uns, a obrigatoriedade faz todo o sentido, para outros deve ser discutida.

Vítor Matos, presidente da Sociedade Portuguesa de Emergência Pré-Hospitalar (SPEPH), considera que a utilização de equipamentos de desfibrilhação automáticos não é tão complicada quanto isso. “São fáceis de funcionar, intuitivos e com desenhos simples para qualquer um perceber como fazer”, diz ao i.

No decreto-lei nº 188/2009 é referido que “ao contrário do que acontece noutros países, nos quais existe uma verdadeira cultura de emergência médica enraizada na sociedade, em Portugal ainda não estão reunidos os pressupostos para a adopção de um sistema que permita a utilização relativamente livre de desfibrilhadores automáticos externos pela população em geral”. O presidente da SPEPH assume que a legislação “irrita profundamente” a organização – “parece que há portugueses de primeira, segunda e terceira categoria”, desabafa. E vai mais longe: sente que a lei está formulada como se os portugueses fossem “equídeos” e que “parece que somos um país só de doutores e engenheiros e que só estes têm capacidade, mas não é bem assim”.

“Faz parte da cidadania prestar auxílio ao outro”, afirma Vítor Matos. Ideia que acredita ser contrariada pela legislação mencionada: “Mais uma vez, parece que salvar vidas não é para todos no imediato, ao contrário de outros países, em que o comum cidadão pode usar [o DAE]”.

Marco Costa, especialista em acesso público à desfibrilhação, julga no entanto que a formação é necessária, não só para boa utilização do equipamento como também para que a pessoa presente se sinta capaz de tomar a iniciativa: “Está estudado, e há provas disso, que, se uma pessoa não tiver formação na área, nunca vai utilizar um desfibrilhador por sua própria iniciativa, visto que não se vai sentir à vontade”.

Passados quase dez anos após a primeira publicação em Diário da República referente ao processo de desfibrilhação automática, em 2018 o Grupo de Trabalho Requalificação do Programa Nacional de Desfibrilhação Automática Externa publica um despacho que diz acreditar que estavam finalmente “reunidas as condições de segurança para que, em situações particulares, o manuseio do desfibrilhador automático externo (DAE)” pudesse ser feito “por cidadãos não treinados, sempre que possível por indicação telefónica dada pelo médico do CODU, ou estruturas equivalentes nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, em tempo útil e em benefício da vítima”. Desta forma, mediante a existência de um DAE no local, torna-se possível salvar a vida de alguém, mesmo não tendo formação. Gabriel Boavida, fundador do Movimento Salvar Mais Vidas e irmão do ator José Boavida, falecido em 2016 devido a uma paragem cardiorrespiratória, acredita que este despacho faz todo o sentido. Defende também que a aprendizagem das Técnicas de Suporte Básico de Vida deve começar ainda na escola, visto que “é um direito de todos ser reanimado e um dever saber reanimar”.

 

Ambulâncias mal equipadas

“Não sei se sabe, mas nem todas as ambulâncias têm desfibrilhadores”, começa por esclarecer ao i o vice-presidente da SPEPH, Carlos Silva. Importa no entanto saber que existem em Portugal vários tipos de ambulâncias em Portugal.

Segundo a SPEPH, há 44 Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação (VMER) com a marca INEM, sediadas em hospitais, prontas para socorro “medicalizado”, sendo que são um meio de Suporte Avançado de Vida (SAV) e têm não DAE mas desfibrilhadores manuais, como aqueles que encontraríamos num hospital.

Além dessas, há as ambulâncias de socorro (AS), que são tripuladas pelos Corpos de Bombeiros e pela Cruz Vermelha. O objetivo destas viaturas é deslocar os doentes o mais rapidamente possível para a unidade de saúde adequada, dando-lhes um cuidado de emergência médica pré-hospitalar. Das 465 corporações de bombeiros que existem em Portugal, 367 têm ambulâncias de socorro com protocolo com INEM. Em média, cada corpo de bombeiros tem duas ambulâncias, no entanto “há muitos que detêm muitas mais”, explica a SPEPH. Estamos portanto a falar de um total de, no mínimo, 1297 ambulâncias de socorro, sem contar com as da Cruz Vermelha Portuguesa. Deste universo total apenas 971 possuem DAE.

Por fim, existem 56 Ambulâncias de Emergência Médica (AEM), operadas diretamente pelo INEM, cujo objetivo é chegar o mais rápido possível à vitima e estabilizá-la e transportá-la ao hospital e 41 Ambulâncias de Suporte Imediato de Vida (SIV), cuja missão é oferecer cuidados de saúde diferenciados, nomeadamente manobras de reanimação. Tanto as AEM como as SIV estão equipadas com DAE. Além deste veículos existem ainda helicópteros e motociclos de emergência médica sendo que os primeiros estão equipados com SAV e os segundos com DAE.

É então possível ligar ao 112 perante um caso de paragem cardiorrespiratória e a viatura de socorro não ter desfibrilhador? Sim, é possível. No entanto, é aqui que se tornam essenciais os conhecimentos básicos de cuidados de saúde. Caso o cidadão (quer seja a vítima ou apenas alguém que esteja ao pé) consiga identificar a sua sintomatologia e referi-la ao operador dos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), é provável que a viatura enviada ao local possa dar resposta às necessidades do paciente.

Estava lá e não funcionava Apesar de a lei obrigar, desde 2012, a que certos espaços públicos estejam equipados com desfibrilhadores automáticos, a situação não é assim tão simples. Não basta o dispositivo lá estar, ele tem de ser licenciado pelo INEM. Segundo relatos que chegaram ao i por pessoas que estavam presentes aquando da paragem cardiorrespiratória do jogador de andebol Alfredo Quintana, o Estádio do Dragão estava equipado com um DAE, mas o aparelho não funcionou corretamente nem estava licenciado. Segundo uma fonte do INEM ao jornal Público, o estádio da Invicta não tem qualquer programa DAE, estando a incorrer numa multa que pode ir até aos 44.500 euros. Como se sabe, o atleta foi auxiliado por uma equipa médica 10 minutos depois da paragem cardiorrespiratória, vindo a morrer dias mais tarde, a 26 de Fevereiro, no Hospital de São João.

 

Mais licenciamentos

Em 2020, o INEM licenciou 494 novos programas de DAE, abrangendo 509 aparelhos e formando 3337 novos operacionais. Atualmente existem 2681 equipamentos colocados em espaços públicos e 25 244 operacionais formados para os utilizar (não contando com os presentes nos veículos de socorro). No ano passado foram acionados no âmbito do Projeto Nacional de DAE mais de 8800 equipamentos, sendo que em 711 dessas utilizações foi recomendado pelo equipamento pelo menos um choque. Na esmagadora maioria dos casos (cerca de oito mil), a não recomendação de qualquer choque pode significar que o socorro chegou demasiado tarde.