9 de Março de 1955. Não brinquem com o lagarto da Penha de França!!!

9 de Março de 1955. Não brinquem com o lagarto da Penha de França!!!


A Câmara de Lisboa decidiu alterar drasticamente aquela face da capital. Da homenagem a Diogo Cão, que aí nascera e vivera, à construção daquele que era tido pelo miradouro mais bonito da cidade.


A gente bem sabe que o povo se preocupa com estas coisas. E o lagarto existiu mesmo, tanto assim que se conservou, embalsamado, na igreja da Penha de França até 1739. Bicho imponente, rezam as crónicas. Nos dias que correm está lá outro, desenhado na curva que dá para a Travessa do Poço dos Mouros. A lenda, essa, perde-se na noite dos tempos. Um peregrino estava por aquelas bandas e deixou-se adormecer à sombra de uma oliveira numa tarde de canícula. Era romeiro e, como todos sabemos, não há romeiro que não tenha em si, à mistura com o jeito para as artes, um toque de preguiça que só lhe fica bem. Dormia o fulano por entre o tojo quando, seráfica, silenciosa, uma cobra se aproximou tirando-lhe as medidas ao tamanho daquilo que iria ser, certamente, uma lenta digestão. Ou indigestão, vá lá saber-se… No meio deste drama prestes a desenrolar-se sem que o peregrino desse por ela, um lagarto gigante surgiu na altura certa e a cobra de comensal passou a refeição. Desde logo a historieta foi passando de boca em boca e ninguém teve dúvidas que a intervenção fora divina, não de Deus em si, que tinha mais do que fazer do que se preocupar com romeiros calaceiros, mas da Nossa Senhora da Penha de França em cujo louvor uma pequena ermida ali foi erguida.

Passaram-se anos e anos sobre o episódio e eis que os moradores do bairro da Penha de França começam a preocupar-se com as ideias dos arquitetos lisboetas. No início de março de 1955, um projeto revolucionário estava pronto e o bairro não mais voltaria a ser o que foi. E há sempre vozes recalcitrantes que se erguem pelo meio das demais. “Não irritem o lagarto!”, bradavam alguns mais medrosos. Afinal o bicho tinha estado são sossegado com a pança cheia da cobra que deglutiu, para quê ir mexer com o passado e alterar a ordem natural que as coisas haviam tomado? Falou-se muito sobre o assunto. Mas quem manda manda e quem não manda ou obedece ou cala-se muito bem caladinho, resmoneando por dentro e lançando pragas aos que estão instalados no poder. Foi assim que aconteceu.

 

Projeto

A Penha de França não era apenas conhecida pelo diabo do lagarto. Na casa de esquina, lá bem no alto da Calçada do Poço dos Mouros e com entrada pela Travessa do Calado nascera e vivera o grande Diogo Cão, o primeiro navegador a subir o rio Congo. Nesse ano muito discutido de 1955, a vida levava-se fagueira por entre habitantes e mestres de ofício, uma mercearia, uma casa de vinhos, um sapateiro, um marceneiro e vários inquilinos nas mansardas. Para eles a vida haveria de dar uma volta. Uma grande volta.

A casa de Diogo Cão foi comprada pela Câmara Municipal de Lisboa, primeiro por 400 contos, finalmente, depois de o proprietário muito choramingar, por mais 200. Nasceria aí, em honra do marinheiro ilustre, um museu dedicado aos navegadores, mas alguém se esqueceu disso entretanto. Diogo Cão merecia mais. E assim, o município tratou de adquirir igualmente o velho Palácio dos_Travaços, cujos terrenos dão para a Travessa do Calado, para se instalar uma praceta naturalmente batizada com o nome de Praceta Diogo Cão com a estátua do homem orgulhosamente no centro.

Muitas ideias se foram misturando nos entretantos. Cada um tinha algo para acrescentar a esta zona de Lisboa, de história tão antiga mas que seria alterada drasticamente. Por isso, as vozes do contra não se calavam. Não fosse o povo bairrista tão arreigado aos seus pertences e tão conservador no que respeita a obras de fundo como esta.

A Câmara de_Lisboa levava o assunto muito a sério e desatou a comprar todos os terrenos limítrofes que poderiam servir para alterar aquela face da capital. O sr. Alberto Galego, por exemplo, ficou fulo da vida. Andava há anos à espera que lhe atribuíssem licença para fazer obras no Palácio dos Travaços, que era de sua pertença, e a ouvir nãos atrás de nãos, e de repente ficava sem obras e sem palácio. Obrigou Lisboa a meter as mãos nos bolsos, se não não saía de casa, mas lá vieram as ameaças de expropriação e 600 contos não era montante para se deitar pela janela. Lá se foi o palácio, derrubado à força do camartelo, abrindo espaço ao largo que ainda hoje existe mas quase não se vê, tão apertado ficou na curva.

Nas traseiras da igreja, abriu-se um dos maiores miradouros de Lisboa, ainda que muito pouco frequentado, talvez aqui e ali pelos alunos do liceu instalado ali à beirinha, do lado da frente. “É o miradouro mais bonito da capital”, gabava-se um dos ideólogos da obra. “O panorama de dali se desfruta é admirável pois a vista abrange a outra banda, com o monumento ao Cristo Rei, a Basílica da_Estrela e os dois arranha-céus das Amoreiras, o alto do Parque Eduardo_VII, a serra, o parque florestal e o forte de Monsanto, o Hospital de Santa Maria, o aeroporto, os caminhos de ferro de Santa Apolónia e o caudal do Tejo”.

A força da maquinaria entrou pela Penha de França com uma barulheira capaz de acordar o lagarto que digeria pacificamente a cobra. Pequenas casas desapareceram mas, infelizmente, os prédio que surgiram no seu lugar, ao sabor do tempo, não têm nada de agradável. Não é sítio onde algum romeiro preguiçoso resolvesse bater uma sesta… Nem sossego há.