Pablo Hásel foi condenado em Espanha por “glorificação” do terrorismo e por ofensa à monarquia/ao rei emérito Juan Carlos. Não escreverei aqui sobre o caso em si, não só porque não o conheço o suficiente, mas também porque não é isso que me motiva. Deixarei também de lado a questão da “glorificação” do terrorismo. O tema que trago prende-se com a questão da liberdade de expressão em confronto com a honra e o bom nome, mais exatamente com dois pontos trazidos pela discussão pública que se gerou (e que não são novidade, nem um exclusivo deste caso, aparecendo com cada vez mais frequência, e não apenas no espaço público, também por vezes no discurso e na prática jurídicos).
Primeiro, para muitos parece que a liberdade de expressão – valor essencial de um Estado de Direito Liberal e Democrático, não haja dúvidas sobre isso – justificaria tudo e mais alguma coisa. Tudo o que se diz ou escreve ou de alguma forma se expressa teria aconchego nesse valor, e portanto quem for condenado, como Pablo Hásel foi, é um “mártir da liberdade de expressão” ou alguém que “se quer silenciar”.
Ora – independentemente de saber se o rapper foi bem ou mal condenado – esta ideia de uma liberdade de expressão que consente tudo e que não tem limites é errada. E não é, perdoem-me, uma questão de opinião (embora seja também a minha opinião, já agora). É uma questão de Constituição e de Lei, e de Convenções Internacionais, e também de bom senso e de elementar possibilidade de convivência social. Não há valores nem direitos absolutos. Nem sequer a vida, quanto mais a liberdade de expressão (por muito importante que seja – e é). Tudo tem limites, e há sempre que salvaguardar o confronto de um valor com outro, de um direito com outro, tentando não sacrificar totalmente um à custa do outro.
Por isso se fala, na teoria do Direito, em concordância prática, ou seja, numa tentativa de equilibrar valores ou direitos em colisão, segundo juízos de ponderação, de necessidade, de essencialidade, de proporcionalidade, de prova, de razoabilidade, de boa fé, et cetera.
Não significa isto que na maior parte dos casos concretos a liberdade de expressão não se imponha, depois da análise ponderada de cada situação e dos elementos relevantes, mas significa, isso sim, que não se pode partir logo para a discussão e para a análise de cada situação com o credo na boca sobre a ausência de limites à liberdade de expressão ou sobre o carácter “sagrado” desta. Liberdade é uma coisa, libertinagem é outra, e isso vale para todas as vertentes da liberdade, porque quando alguma coisa não tem limites, incluindo “esta ou aquela liberdade”, é verdadeiramente a
Liberdade que está em jogo. Pela razão elementar de que a liberdade, como aliás qualquer direito, não é um monólogo, mas um diálogo, e só faz sentido na relação com os outros. Donde, obviamente, há limites – e há mais ou menos, consoante os casos, mas há.
Segundo, para além de uma certa tendência que vou notando aqui e ali para absolutizar a liberdade de expressão, como se nada mais houvesse e ela fosse dona e senhora de tudo, noto, cada vez mais, uma discussão sobre estas questões que é refém de um maniqueísmo perverso (passe a redundância) que divide o mundo em “vítimas boas” e “vítimas más”.
Ou seja, não só há uma tendência para hipervalorizar a liberdade de expressão, à custa de outros direitos também essenciais (como a integridade pessoal), como também a sensibilidade para com os direitos dos visados (pela imputação que se expressa) é maior ou menor (ou nenhuma) consoante eles estejam, na vox populi, na “mó de cima” ou na “mó de baixo”. E quanto mais em baixo, mais se lhe pode carregar, nesta deturpada visão das coisas. Ora, não é assim, não pode ser.
Por muitas razões, e à cabeça delas a que Miguel Torga, lamentando, frisou no seu conto Regeneração (in Pedras Lavradas): “… nunca nenhum de nós pensou sequer que o homem, só porque o é, merece à sua volta um metro cúbico de respeito integral”
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