A névoa profunda que naquela madrugada cobria os destroços da Ponte Hintze Ribeiro, acabada de colapsar no meio de um enorme temporal e duma conjunção extrema de ocorrências, que os múltiplos relatórios e inquéritos posteriores delinearam até à exaustão, ainda hoje está bem presente na minha memória.
Era na altura, em março de 2001, secretário de Estado adjunto do Ministro da Administração Interna e tinha a tutela delegada da Proteção e Socorro. O ano tinha vindo a registar níveis de pluviosidade muito acima da média. Antes do fatídico dia 4 já muitos rios tinham galgado as margens, casas sido arrasadas pelo deslizamento de terras ou de pedras e culturas e estruturas destruídas pela força das águas nos leitos de cheia.
Este texto, escrito 20 anos depois, é uma homenagem singela à memória dos que morreram, às famílias que perderam os seus entes queridos, à resiliência e abnegação de todos os que depois ajudaram a encontrar e enterrar os mortos que foi possível resgatar, a honrar a recordação daqueles que os rios e o mar guardaram para si, a reerguer as comunidades feridas e a restaurar a esperança no futuro nas terras da encruzilhada, onde os rios se juntam, os distritos confinam e as províncias se bordejam.
Não pretendo voltar aos factos, às causas e às consequências. O país aprendeu muito com o que aconteceu e não devia ter acontecido. Alguns rostos do Poder Local, dos Bombeiros, da Proteção Civil, da Marinha, da Segurança Social, da Saúde e da Justiça que então emergiram, ainda hoje são referências nacionais pelo trabalho feito e sobretudo pelos ajustamentos que depois se fizeram para que uma tragédia similar não volte a acontecer. O Presidente da República e o primeiro-ministro acompanharam a situação desde o primeiro momento. Num gesto de reconhecida elevação, o então ministro de Estado e do Equipamento Social, Jorge Coelho, assumiu a responsabilidade política pelo sucedido e apresentou a sua demissão.
Na tarde de dia 4, domingo, estava em Évora quando recebi o primeiro telefonema informando-me da queda da ponte. Informei quem tinha que informar e garanti que os meios disponíveis seriam imediatamente enviados para o terreno. Quando recebi a informação que pelo menos um carro com passageiros tinha sido engolido, decidi partir para o local. Ao longo do caminho, o adensar da catástrofe com a confirmação do envolvimento de mais uma viatura ligeira e de um autocarro de passageiros que regressava de uma excursão às amendoeiras em flor, determinou-me a ir para onde a catástrofe tinha feito mais dor e dirigi-me a Castelo de Paiva.
Foi junto à ponte que vi nascer a manhã do dia seguinte, já depois de ter visitado algumas famílias desesperadas, levando uma palavra de solidariedade. Havia uma enorme angústia no ar e começavam a crescer as acusações cruzadas de responsabilidade. Foi preciso traçar um plano para que todos fossem convocados para a resposta e não se envolvessem numa discussão daquilo que só a sangue frio poderia ser dirimido.
Hoje, 20 anos depois, guardo em mim muito do que vivi em Castelo de Paiva como se fosse hoje. Fiz amigos, sofri, aprendi, cresci. Que Entre-os-Rios nunca mais se repita onde quer que seja.