Les Soixante-quinze feuillets é o título de um conjunto de inéditos, antecedentes de Em Busca do Tempo Perdido, que viriam a ser reelaborados e cosidos na trama da tão particular e especiosa odisseia de Proust. Esquecidos durante cinco décadas, serão agora dados à estampa com o selo da Galimard, que diz que os leitores terão por fim acesso ao “Graal Proustiano”. Os textos terão sido redigidos em 1908, na altura em que o escritor começou a desenhar a arquitetura do seu romance que acabaria por se compor em sete faces, e que foi publicado entre 1913 e 1927.
Metido na cama, este escritor “maníaco e voluptuosamente enfermo”, adoptou o hábito de escrever em tiras de papel numa letra quase ilegível, defendido do mundo exterior por filtros. Assim o recordava Jean Cocteau numa conversa radiofónica: “Léon Daudet tinha-me levado àquele quarto do bulevar Haussmann onde ele vivia deitado numa nuvem de pó antiasmático. As janelas nunca eram abertas. A poeira cobria os móveis como uma pele de esquilo-da-rússia. Proust escrevia na cama, com luvas, rodeado de placas de cortiça. Estava numa guarita de placas de cortiça. A barba e a franja de madeixas negras faziam-no parecido com o Carnot morto do Museu Grévin ou com um qualquer capitão Nemo de Jules Verne. A sua obra acumulava-se à esquerda, na mesa de cabeceira, como uma pilha de cadernos escolares ilegíveis. Tão mal decifrava a sua letra, que se perdia de riso quando estava a lê-la. Ria a Bandeiras despregadas […]. Toda a vida do autor lá estava como uma máscara de veludo negro. Dir-se-ia que a solidão levava-o a entregar-se, e ao mesmo tempos a esconder-se”.
As 75 folhas que se julgava estarem perdidas e que motivaram ao longo de décadas uma busca por parte de académicos, tendo ganho um prestígio lendário como um dos mais ansiados tesouros literários pelas pistas que poderia fornecer a um exame arqueológico de uma das grandes obras primas do século XX, estavam afinal no acervo confiado pela sobrinha de Proust ao editor Bernard de Fallois, que morreu em 2018. Ao longo da sua vida, De Fallois dirigiu a publicação póstuma de várias obras de Proust, entre elas Jean Santeuil, o primeiro romance que começou ainda na infância, em 1890, quando foi acometido de um resfriamento, desenvolvendo uma asma nervosa, alérgica, para a qual a medicina da época não encontrou remédio, condenando-o a episódios de sufocação quase mortais.
A primeira vez que se soube da existência destes inéditos foi em 1954, num prefácio que De Fallois escreveu para o livro de ensaios até então inédito Contre Sainte-Beauve. O editor descrevia as 75 folhas como um “precioso guia” para se compreender a surpreendente arquitectura literária de Em Busca do Tempo Perdido, dizendo tratar-se de um “diário de bordo da sua criação” que incluía seis dos episódios que Proust mais tarde iria aprimorar e incluir naquele romance. Uma das poucas revelações que De Fallois antecipava era que o protagonista Charles Swann não aprecia ainda nesses trabalhos preparatórios, estando então o personagem dividido por uma série de outras figuras menores.
A Gallimard vem agora dizer que se trata de um texto que pode ser lido como uma obra isolada, e a este respeito vale a pena recordar que Aníbal Fernandes, exímio tradutor do que de mais espantoso se ergueu na literatura de língua francesa nas últimas décadas largas e até séculos, acredita que muitos leitores perdem algumas das melhores páginas jamais escritas por se verem confrontados com uma obra de uma vastidão que, por si só, desencoraja. Se nos últimos meses não faltou quem sugerisse que a pandemia e o confinamento a que fomos forçados foi uma das melhores oportunidades para nos lançarmos nesta empreitada, no prefácio a uma breve seleção de textos autónomos onde encontrou as grandes linhas de força da personalidade deste escritor, Fernandes diz-nos que “coleccionadas, as mais célebres páginas de Proust fariam um livro tão cómodo como brilhante; saberiam poupar o leitor ao que pode ser a impaciência de percorrer uma torrente de duas mil páginas; fariam desfilar os seus morceaux de bravure, as madalenas molhadas em chá de tília, Françoise planta rústica e simbiose dos seus patrões, a sonata de Vinteuil, o escabroso encontro entre Jupien e Charlus, a Ópera em glauca transparência de aquário de monstros marinhos, a morte de Bergotte…”.
Após quase meio século de investigações, e de discussão acerca da sua existência, os manuscritos foram descobertos nos arquivos de Fallois. Entre os documentos apresentados por Suzy Mante-Proust em 1949, sobrinha de Marcel e filha de Robert Proust, figuravam igualmente Le mystérieux correspondant et autres nouvelles inédites, também de Proust e publicada pouco depois da morte de Fallois. O livro foi reunido por Nathalie Mauriac e conta com um prefácio do biógrafo de Proust, Jean-Yves Tadié.
Este ano assinala-se os 150.º aniversário de Proust, estando prevista, para o outono de 2022, uma grande exposição na Biblioteca Nacional de França, para marcar o centenário da sua morte.