Passa um ano, mas Rui Sarmento e Castro, diretor do serviço de infecciologia do Hospital de Santo António, recorda com exatidão os passos do primeiro doente com diagnóstico de covid-19 confirmado no país. Foi no seu hospital, onde até então não tinha havido casos suspeitos, embora em Portugal no final de fevereiro já tivessem sido despistados 70 possíveis infetados. “Sabíamos que o vírus andava por aí, mas não tinha havido ainda suspeitos”, diz.
Tudo mudou a 1 de março, o dia em que se confirmou que o vírus estava em Portugal, só que na altura as orientações implicavam que se fizesse um segundo teste como contraprova. O doente “zero”, que hoje se sabe que também não foi o primeiro a trazer o vírus para o país e não terá infetado mais ninguém, era um médico de 60 anos, chegado dois dias antes de umas férias no norte de Itália. “Chegou bem de Itália na sexta-feira. No dia seguinte começou a ter alguns sintomas: sentia-se muito cansado, dores musculares, um pouco nauseado. Tinha uma temperatura ainda baixa, 37,5, mas sendo médico e tendo estado em Itália ficou um pouco desconfiado. No dia 1, que foi um domingo, as coisas agravaram-se. Ficou com mais dores, mais incomodado e procurou-nos porque tinha trabalho aqui há uns anos largos.”
Eram 10h da manhã quando dava entrada na urgência do Santo António, onde foi identificado como caso suspeito e enviado para o serviço de doenças infecciosas. Ficou isolado um quarto de pressão negativa, uma das muitas barreiras que se usaram nos hospitais que passaram a separar as zonas limpas das sujas. Pediram-se as análises habituais e a zaragatoa. Eram cerca das 18h, e conversamos com Rui Sarmento e Castro com o relógio quase a bater as mesmas horas um ano depois, quando chegou o resultado “fortemente positivo”. Parecia confirmado, mas o procedimento então era enviar a amostra para o INSA. A confirmação chegou pelas 6h da manhã do dia seguinte. No espaço de uma hora também no São João se confirmou o primeiro doente e pelas 9h da manhã a ministra da Saúde fazia o anúncio ao país ao lado da diretora-geral da saúde, a primeira de muitas. Nas horas seguintes chegaria o primeiro doente ao Curry Cabral, confirmado no dia seguinte. E depois não pararam: a 15 de março havia 245 casos confirmados no país. Cinco dias depois, a 20 de março, passou-se a barreira dos mil casos.
Hoje são 800 mil, quase metade nos últimos dois meses. Ao olhar para trás, Rui Sarmento e Castro recorda os dias em que o hospital se confrontou pela primeira vez com uma enchente de doentes, numa primeira vaga que afetou de forma incomparável o Norte. O estado de emergência seria decretado a 18 de março mas na altura o vírus estava a espalhar-se silenciosamente há mais de um mês. Um estudo retrospetivo do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, que estuda diversidade genética dos SARS-CoV-2 que circulam em Portugal, revelou na semana passada que os primeiros infetados terão chegado a Portugal na última semana de janeiro, com as primeiras introduções do vírus a intensificarem-se na última semana de fevereiro. Até ao final de março estima-se que terão entrado pelo menos 277 pessoas infetadas com SARS-CoV-2, vindas de 36 países, que deram origem a cadeias de transmissão. Itália era o foco nesses primeiros tempos mas cerca de três quartos das pessoas infetadas vieram do Reino Unido (34%), Espanha, França, Itália e Suíça.
Segundo o INSA aliás, Itália não foi o país que contribuiu com mais introduções. E mesmo da China, que alimentou os receios durante os primeiros meses de 2020, Portugal só confirmaria um caso importado ao longo da primeira vaga, números que a DGS deixou de divulgar depois do verão. Rui Sarmento e Castro acredita que a “hesitação” ao início no maior controlo das fronteira, na testagem de quem vinha de fora e também no uso de máscaras foram as falhas nos primeiros tempos, que permitiram ao vírus começar a espalhar-se. Em Portugal como outros países, já não seria contido. “Achámos que era tudo muito simples”, resume o médico.
Quanto à maratona que se iniciou nos hospitais, recorda que para os primeiros doentes foi também um embate maior, porque a regra começou ser manter todos os doentes internados durante 14 dias, independentemente de precisarem de estar hospitalizados pela sua situação clínica. “O primeiro doente ao 11º, 12º dia já não nos aturava e acabou por ir para casa. Se o tivéssemos apanhado um mês depois já não o internávamos. Mas hoje já enviou uma mensagem a agradecer a toda a equipa a forma como foi tratado. Depressa os doentes começaram a ser acompanhados em casa, inicialmente pelos hospitais. Na primeira vaga seguimos 2000 doentes em casa.”, diz o médico. As entradas, saídas e mensagens semelhantes tornar-se-iam comuns. “Por volta de dia 23 a nossa enfermaria com 35 camas na infecciologia já estava cheia.
Abrimos outra com 40 camas, encheu em dois dias. Por volta de 25, 26 de março abrimos uma terceira enfermaria e que encheu também em dois dias, para ver o que significou o crescimento exponencial. Ainda antes do fim de março já tínhamos cem doentes internados”, ilustra. E depois, iniciado o confinamento, a torneira parou. “São as estratégias que os nossos antepassados usavam na Idade Média mas que funcionaram, com todas as repercussões que lamentavelmente têm. Mas mesmo agora, julgo que sem confinamento não teríamos conseguido travar o crescimento de casos que estávamos.”
Um vírus traiçoeiro, uma doença nova A covid-19 foi-se descobrindo, pelo que se lia e pelo que se via nos hospitais. Para os infecciologistas mesmo os mais velhos, não se contam assim tantas doenças novas na carreira. A sida no início dos 80 causada pelo VIH é o marco. Depois, nos anos mais recentes, a ameaça do SARS em 2002, primo deste coronavírus que se espalhou na Ásia e nunca se confirmou em Portugal. Depois o MERS, ainda mais letal, e que também não chegou cá.
A pandemia da gripe A em 2009 trouxe um novo vírus influenza mas depois dos primeiros casos em maio, que na altura também implicaram isolar doentes, enfrentou-se já com um antivírus conhecido e vacina no primeiro inverno, o que não aconteceu com o SARS-CoV-2. E antes desta crise, houve a preparação para responder a uma possível chegada do ébola, descontrolado em 2014 na África ocidental, mas o vírus também não veio. Rui Sarmento e Castro é taxativo: “Em 40 anos, nunca tinha vivido nada assim. Houve muita aprendizagem e conseguimos manter muitos doentes, mesmo sem tratamento específico”. E nesta última vaga, em que se bateram recordes de internamentos por covíd-19, o médico sublinha que ao contrário da primeira internaram-se doentes graves, que precisavam mesmo. “Se fosse há século anos este vírus teria causado 100 milhões de mortes no mundo”, afirma.
O oxigénio facilmente acessível, pelo menos nos países desenvolvidos, os corticoides que ajudaram a debelar a inflamação, foram algumas das armas enquanto medicamentos como a hidrocloroquina, o remdesivir ou a dexametasona iam dando alguns sinais de funcionar, mas sem demonstração cabal. Na última linha, os cuidados intensivos, continua o médico. E o que surpreende ao fim destes meses? “É um vírus traiçoeiro. Os doentes são diferentes dos outros. Podem estar muito bem e depois ficar com uma dispneia que os coloca em estado grave. A descompensação é súbita, não é habitual. E nós ficamos a olhar para o doente, a pensar como aconteceu. Vimo-lo de manhã, estava bem a fazer oxigénio e a tarde estamos a correr para o leito dele para o ajudar a sobreviver”.
Como aconteceu e por que aconteceu. Contam-se agora mais de 16 mil mortes em Portugal, quase 10 mil este ano. Dois terços das vítimas têm mais de 80 anos de idade e num estudo feito pela Escola Nacional de Saúde Pública, com dados até ao final de 2020, mostrou que a idade avançada era também o fator mais preditivo de morte. Dos 16 mil doentes hospitalizados até então, que agora já foram mais de 20 mil, 20% morreram, sendo que acima dos 90 anos, metade. “Tivemos doentes, muitos deles idosos de lares, que nos chegaram já a morrer”, diz Rui Sarmento e Castro, sublinhando no entanto que os casos graves em pessoas mais jovens, sem doença prévia, continuam a ser das grandes incógnitas. Bem como fatores de risco ainda pouco esclarecido como obesidade, o que se notou de forma particular nesta segunda vaga e que defende merecer atenção.
Fernando Maltez, diretor do serviço de infecciologia do Hospital Curry Cabral, que há um ano estava também a confirmar o diagnóstico do primeiro doente, nota o mesmo: um ano depois, a história natural da doença ainda não é totalmente conhecida nem se percebe quem fica com que sequelas, porquê e por quanto tempo. “No início não imaginávamos que a doença fosse tão grave. Os relatos que chegavam da China era de que se assemelhava muito a gripe, afetava mais os idosos, e não é bem assim. É uma doença que entra no nosso organismo porque o vírus tem capacidade de se ligar a recetores, e esses recetores estão no aparelho respiratório, no aparelho gastrointestinal, estão no testículo, estão em vários lados. O vírus da gripe causa essencialmente quadros respiratórios e esta é uma doença multi-órgão.” Para Fernando Maltez, outro aspeto “perturbador” da pandemia é a transmissão assintomática, que permite que o vírus avance sem se notar. E ficar sem controlo quando se baixa a guarda.
E um ano depois, com os serviços agora mais aliviados depois de janeiro ter sido o pior mês da pandemia no país, ambos os médicos pedem cautela no desconfinamento. Hoje é consensual que o SARS-CoV-2 continuará a circular e se tornará endémico como outros coronavírus que infetam humanos, mas enquanto houver muitas pessoas que ainda não contactaram com o vírus nem estão vacinadas o risco de aumento exponencial de casos mantém-se. E desemboca na capacidade dos hospitais, que para acomodar 900 doentes críticos com covid-19 pararam de novo cirurgias. “Os impactos económicos do confinamento são lamentáveis, mas se não tivermos cuidado teremos outra vaga em pouco tempo.
Sabemos que temos 800 mil pessoas que tomaram pelo menos a primeira dose da vacina. Temos outras 800 mil que se infetaram. Sem contar que houve casos que não conhecemos, o que sabemos com maior certeza é que 16% da população estará imune e isso não chega para a imunidade de grupo. Se não formos cautelosos corremos o risco de estragar o verão ou o outono. Não podemos deitar fora o sacríficio feito”, diz. Também Fernando Maltez considera que ainda é cedo para desconfinar e pede cuidado. “Quais serão as consequências das novas variantes que emergem quase diariamente, qual será a eficácia da vacina? Temos de pensar que ainda estamos um pouco no desconhecido e desconfinar de uma forma cautelosa para que não voltemos ao que se viveu depois do Natal.”