"Houve uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, toda a burguesia do teletrabalho, todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas, o que também me inclui a mim. Esta crise poupou muito as pessoas que trabalham neste setor e são as pessoas com mais escolaridade. Podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise.” Uma ideia, ou mais a expressão, gerou uma onda de bullying contra Susana Peralta, economista que em entrevista ao i fala sobre a crise pela frente: o dinheiro não vai nascer das árvores e é preciso pensar formas mais justas de “dividir o mal pelas aldeias”.
Parece evidente e a discussão é necessária, seja rever prioridades, taxar maiores rendimentos ou capital, como depois defendeu. Nos cuidados críticos, um dos princípios postos por escrito pelos médicos nos últimos meses foi que seria preciso evitar uma situação em que o primeiro a chegar é servido. Não é isso que se faz quando se reservam milhões presentes e futuros para a TAP, que já não será igual, para a vanguarda do hidrogénio?
Por que não taxar mais quem lucrou mais em tempo de pandemia, exigir mais a quem paga poucos impostos em Portugal e manteve portas abertas ou negócios eletrónicos montados sobre estafetas nas ruas?
Passada a emergência – e no imediato o perigo, à espreita, é pensar que já passou – o país terá fossos maiores para ultrapassar. Às desigualdades crónicas, que continuam a ir da infância à velhice e a significar dois milhões de pobres num país de dez milhões e “excelente qualidade de vida”, juntam-se o desalento de quem já tinha pago a crise de 2011 e estava ou esperava ainda a recompor-se. “Burguesia” incluída.
Tentei encontrar, sem conseguir, a origem desse velho ditado de dividir o mal pelas aldeias. Um pouco utópico, porque quando se pensa que se calhar é melhor distribuir o mal já ele está mais numas aldeias do que noutras e há umas que se blindam impecavelmente. Mas temos de conseguir distribuir melhor o bem à partida. E isso exige priorizar mas também pode começar por reconhecê-lo – e aqui volto a Peralta e à expressão de que tantos não gostaram. Custa assim tanto reconhecer o bem de quem tem trabalho, rendimento, força anímica e consegue comprar o que lhe apetece para jantar ao fim de um “dia de loucos” quando alguém que pode estar perto de nós, num prédio igual ao nosso, a vestir a mesma roupa que nós, se vê hoje com apenas um pacote de arroz para a família? Esse confronto, que tive há uns dias num projeto de ajuda alimentar lançado por uma amiga, abala-nos.
Reconhecer que se é privilegiado e se pode contribuir e exigir mais justiça nas aldeias mesmo que a nossa também esteja em estado de sítio não retira esforço ou mérito. Ou podemos ficar apenas indignados com uma expressão que não reflete tudo o que estamos a passar. Alguma reflete?