Os voos humanitários da TAP, agendados para sexta-feira e sábado, com o objetivo de realizar o transporte de brasileiros e portugueses com as vidas suspensas entre os dois países, têm gerado muita controvérsia.
Tal ocorre porque quem não comprou bilhete na companhia aérea portuguesa é obrigado a pagar 837,90 euros para poder embarcar. Das 520 pessoas com urgência em regressar aos dois países, apenas 200 têm bilhetes da TAP.
Em grupos de WhatsApp e do Telegram, os brasileiros residentes em Portugal que pretendem viajar até ao outro lado do Atlântico partilham agruras e desabafos. Destes, 57 adquiriram passagens da Azul, 30 da TAP e 35 da LATAM.
Luana Aires de Souza, de 28 anos, é bióloga de formação, mas decidiu licenciar-se igualmente em Dança. Tendo curiosidade em experienciar o cenário cultural português, decidiu realizar um intercâmbio de seis meses.
“Considerando as dificuldades do primeiro confinamento e o aproveitamento quase zero dos estudos, que ficaram online, renovei o intercâmbio por mais seis meses sem bolsa. Consegui me manter aqui com trabalho, mas fiquei desempregada”, revela a jovem que padece de endometriose profunda, uma doença crónica que necessita de tratamento.
“Meu estoque de remédios acaba em março. Também tenho uma cirurgia para fazer no Brasil e o ano letivo para encerrar na faculdade”, continua a brasileira natural de João Pessoa, capital do estado de Paraíba.
“Não tenho como me manter e se minha condição de saúde se agravar, mal conseguirei sair daqui. O meu visto já venceu, estou sozinha e só quero ir para casa cuidar da minha saúde”, confessa a atual estudante de Ciências da Cultura na Universidade da Beira Interior, na Covilhã.
“Eu tenho um número de utente provisório. Já fui ao hospital, em outubro, devido às dores, e lá me disseram que o remédio vende sem receita aqui, mas com um custo de 60 euros por caixa. Não tenho condições de pagar”, elucida, acrescentando que está a tentar encontrar uma solução com a médica que a acompanha no seu país de origem.
“A princípio ela estava esperando eu voltar para fazer os exames, ver minha condição e assim agendar a cirurgia. Eu fiz uma laparoscopia em janeiro de 2020, logo antes de vir para cá, mas incompleta”, recorda.
Mesmo tendo passado horas entre emails e chamadas com a TAP, Luana não conseguiu obter vaga para o voo. Agora, com o visto caducado desde 8 de fevereiro e passagem comprada para 17 de fevereiro, que foi adiada para 10 de março, a jovem encontra-se sem rumo.
“O intercâmbio foi rico do ponto de vista cultural, da riqueza que é a experiência de morar fora por si só. Mas o contexto pandêmico estreitou muito as possibilidades. Então me sinto um pouco desiludida, sim”, avança, adicionando que “foi frustrante ainda mais porque o setor artístico-cultural é dos mais negligenciados e escanteados nesse momento” e que “não foi possível perceber a cena artística porque ela não estava acontecendo”.
Viveu na Covilhã entre fevereiro e julho do ano passado, quando a residência universitária fechou para aqueles que se encontravam na corda bamba entre a permanência em Portugal ou o regresso aos países de origem. Assim, seguiu-se uma estada de um mês em Tomar, e há cinco meses que Luana vive no Porto.
“Vim para cá pelo aperto financeiro e por saber que tenho ajuda de pessoas conhecidas. No fundo, não tenho como medir o que não foi, o que não conheci, o que não tive. Apesar de enxergar a deficiência da experiência, não me arrependo”, diz.
“Eu tenho dinheiro para me segurar até o início de março, depois disso não tenho. Estou morando de favor, inclusive. Só tenho o suficiente para comer”, admite.
Sair da zona de conforto Filipe Leal Reis, de 29 anos, nasceu e cresceu em Vitória, capital do estado do Espírito Santo. Em Portugal há um ano e quatro meses, vive em casa de um amigo desde o início de fevereiro, em Algés, Lisboa, tendo passado a maior parte do tempo em Alcântara, também na capital.
“Tinha trabalho num hospital, nos finais de semana fotografava eventos e estava sem aquela perspetiva de evolução. Estava tudo muito cómodo. Precisava de dar uma movimentada para sair do marasmo e evoluir enquanto ser humano”, começa por esclarecer o enfermeiro que quis aprofundar o atendimento domiciliário a idosos.
“Estava trabalhando numa empresa e tinha passagem para dia 9 de fevereiro. Foi adiada para dia 13 e, depois, para dia 15. Posteriormente, para o dia 2 de março e, agora, para o dia 9. Eu já tinha dado um prazo na empresa onde trabalhava e tinha dito que ia trabalhar até x dia”, conta o profissional de saúde, que compreende a decisão da empresa.
“Como trabalham com elementos contados, contrataram uma pessoa a mais e agora faço só acompanhamentos pontuais, fiquei sem alguns turnos”, constata.
“Eu comprei bilhete da Azul. E, agora, a TAP veio com a questão do voo humanitário que, afinal, é comercial. A passagem sem mala é 837 euros. Eu já tinha ido por rota alternativa se tivesse esse dinheiro”, assume o brasileiro, que se tinha autoconsciencializado de que regressaria ao Brasil e trabalharia na empresa que o acolhera anteriormente.
“Tenho o dinheiro muito contado. Entreguei o apartamento onde vivia e vim para casa de um amigo meu por 12 dias. Mas esses dias se tornaram em 20. E agora vão ser quantos? Eu só quero saber quanto tempo ficaremos presos aqui”, questiona o enfermeiro, para quem as restrições impostas aos voos com origem ou destino no Brasil e no Reino Unido ”não fazem sentido”.
“Queremos ir embora, não estamos fazendo passeio. Se fizermos escalas conseguimos chegar ao Brasil, mas o vírus prolifera mais”, declara. “Eu sou muito acelerado, a minha cabeça está sempre pensando em milhões de coisas. Portanto, vêm as crises de ansiedade, é prejudicial para mim, fico nesta aflição. Acabo ficando dentro de casa, na mão do Governo”, lamenta.
“Eu não me arrependo porque amadureci muito. Talvez me arrependa de não ter voltado um pouquinho antes. Fora isso, faria tudo de novo”, reconhece Filipe. “Se eu pudesse falar com alguém do Governo pediria, por favor, que liberassem a gente para irmos para casa. Toda a gente tem planejamentos de vida e isto é uma covardia que estão fazendo”, conclui.
“Não tive auxílio do governo português” Vinicius Araújo, de 24 anos, trabalhava na empresa Norleituras, prestando serviços através de recibos verdes. Realizando a leitura de contadores de eletricidade, sabia que “não tinha quaisquer garantias”, mas não deixou de se empenhar.
“Por estar no primeiro ano de isenção da Segurança Social, não tive auxílio do Governo português”, explica o rapaz natural de Brasília, de 24 anos, que chegou ao país a 7 de fevereiro do ano passado e ficou desempregado cerca de 11 meses depois, a 20 de janeiro deste ano.
“Nesse mês, como eu recebi, consegui pagar o arrendamento e comprar algumas coisas para casa. Também recebi doações da junta de freguesia, em Torres Vedras”, conta o jovem, que se conseguiu “orientar” nas primeiras semanas de desemprego. Todavia, não sabe que rumo teria dado à sua vida se não tivesse obtido a oportunidade de embarcar no voo do próximo sábado. “Teria de renegociar o arrendamento e isso dependeria do senhorio”, diz.
“O meu bilhete estava comprado para o dia 7 de março pela TAP e não tive de pagar nada. Exigiu muita luta”, aclara. “Há pessoas que conseguiram alterar o voo e outras não. Todos recebemos o email sobre a disponibilidade deste voo, mas parece que não existiram critérios”, revela, atirando que “a TAP é do Governo e vai fazer um voo com finalidade comercial”.
“Se o objetivo fosse solucionar a questão dos imigrantes, não o faria. Toda a gente tem bilhetes pagos, ninguém pede viagens de graça. Estão a aproveitar-se da situação para lucrar”, reclama, afirmando que existem pessoas que não têm dinheiro suficiente para fazerem sequer um teste à covid-19.
“Marquei o meu teste por 60 euros, mas tive de pedir o valor a familiares que estão no Brasil. Há pessoas que já gastaram dinheiro com três testes e nunca conseguiram embarcar”, remata.
A exploração laboral Ana Carolina Tomé Cava e Hugo Gilioli Martins, de 33 e 30 anos, respetivamente, estão em Portugal há um ano e sete meses, com manifestação de interesse aceite pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) desde o ano passado.
“No dia 19 de dezembro, a mãe dele veio a falecer e desde então estamos tentando retornar para o Brasil. Nossa intenção nunca foi voltar mas, infelizmente, nem tudo corre conforme nossos planos”, começa por narrar Ana Carolina, que tinha passagem comprada, juntamente com o companheiro, para o dia 6 de fevereiro, que foi remarcada para dia 20 e, mais recentemente, para 8 de março.
“Desde final de janeiro, eu e meu marido estamos sem trabalho, pois tive que cancelar meu contrato de trabalho para poder ir para o Brasil e já tinha que ter entregue a chave do apartamento onde moramos”, confidencia a mulher, natural de Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais.
“Tirando todo esse contratempo, ainda tem o que eu vejo como o pior da história: meu marido está sem receber salário desde outubro, mas não é por não ter trabalhado”, expressa, adiantando que Hugo desempenhou funções até ao final de janeiro, tendo sido enganado por três pessoas que dizem ser empresários.
“Ele tenta receber por todo o tempo que trabalhou, isso é muito frustrante. Meu marido é de risco, transplantado renal, e nem por isso deixou de acordar todos os dias às 4h30 da madrugada para trabalhar. Esse trabalho escravo tem de ser denunciado”, pede, frisando que tal não aconteceu apenas com o homem, mas também com outros imigrantes que denunciam as suas histórias no grupo ‘Caloteiros em Portugal’, no Facebook.
“Porque Portugal passa o pano para este tipo de comportamento? Conheço pessoas que tiveram que vender roupas, sapatos e computador para comprar um pacote de arroz ou algo para comer”, revolta-se, argumentando que não tem dinheiro para ir ao supermercado e não entende o motivo pelo qual tem de permanecer em território nacional.
O voo de sábado já se encontra esgotado. Ouvido na Assembleia da República, na terça-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros admitiu que o Governo não coloca de parte a realização de mais voos humanitários.
“À hora em que falo, o voo marcado para o próximo sábado já esgotou os pedidos de apoio que a rede consular recebeu. Se verificarmos a necessidade de mais voos, fá-los-emos”, disse Augusto Santos Silva. É de recordar que o ministro dos Negócios Estrangeiros enalteceu a colaboração entre os dois Governos.
“Foi meu marido que pintou a Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus, do Ministério dos Negócios Estrangeiros”, desenvolve Ana Carolina. “Foi uma das três obras em que ele trabalhou. Claro que outras pessoas também passaram por lá, mas tem a mão dele em cada parte do edifício”, finaliza.
“Provavelmente vou ter de fazer uma dívida” “A embaixada do Brasil em Lisboa e os consulados gerais em Lisboa, Porto e Faro informam que os Governos do Brasil e Portugal, por meio dos respetivos ministérios das Relações Exteriores, negociaram a realização de um voo comercial extraordinário da empresa aérea TAP entre Lisboa e Guarulhos”, lê-se no comunicado do consulado-geral do Brasil em Lisboa, veiculado no final da semana passada. Sabe-se que o voo parte de Portugal na sexta-feira com um máximo de 298 lugares e deve regressar de São Paulo no dia seguinte.
Eliene Nunes vive em Portugal há 17 anos e trabalha na Continental, fábrica de peças para automóveis alemã. Residente em Setúbal, viajou até Goiânia, a 150 km de Brasília, no dia 23 de dezembro para dar assistência à mãe, que se encontra doente.
“Como eu já tenho nacionalidade, estou a tentar conseguir regressar porque tenho de trabalhar”, explica a mulher de 43 anos, que não vê o marido há dois meses. “A minha agente de viagens disse que está a tentar falar com a LATAM para ver se conseguimos o reembolso ou voar até França ou Holanda. Provavelmente vou ter de comprar outra passagem, fazer uma dívida”, diz com desânimo.
“Já mandei vários emails para o consulado e para a embaixada e apenas me respondem que estão a fazer negociação com o repatriamento. Como é que alguém vai ter mais de 800 euros? É um abuso”, assevera. “A gente vem com uma quantia de dinheiro, a pensar que vai ficar x tempo. Eu tenho dívidas aqui e em Portugal. Falei na empresa e vão me pagar pelo menos o salário-base para ir pagando as coisas”, justifica.
“Tenho visto pessoas desesperadas. Eu sou só uma, mas há famílias grandes. Como é que desembolsam 4 mil ou 5 mil euros num só dia? Nada se resolve e a culpa é sempre da covid-19. Os países têm de entrar em acordo”, apela Eliene, que tem sobrevivido por estar em casa da mãe, propriedade da mesma.
“Gastei todo o dinheiro com remédios para ela e comida. Vim com a intenção de regressar no final de janeiro e não aconteceu”, manifesta a imigrante. “A minha mãe tem a reforma e o meu marido manda dinheiro para mim, é assim que me vou aguentando”, termina.