Alguns terão reparado que uma taça de fruta consegue ser mais instrutiva, e exalar uma sensualidade bem mais comovente do que tantas dessas imagens, tão explícitas, que a toda a hora se nos forçam, nos cercam em toda a parte. Seja em anúncios que chegam a dar conta da fachada de alguns prédios, em outdoors, cartazes espalhados pela cidade, seja nos ecrãs e nos telemóveis, ou pela forma um tanto patética como, nas redes sociais ou nas apps de engate, a maioria adopta poses de um catálogo libertino que não passa, afinal, de outra miragem própria de um tempo elusivo. Mas em gestos simples, antigos, como o de alguém sentado a descascar alguma peça de fruta, com uma navalha de madeira grossa, desperta-se uma sensação mais forte, sentindo-a ceder de dentro para fora: o sumo primeiro fresco, logo colando os dedos, e na boca os gomos rebentando entre os dentes. Cada fruta tem o seu segredo, diz-nos D.H. Lawrence, e talvez seja isso o que os corpos estão a perder. Um segredo próprio, uma forma particular de confissão. Daquela taça que tantos pintaram e sublimaram exaltando os detalhes, fazendo-se tremer de um fulgor sugestivo e simbólico, emerge uma imagem que quase troça de um ambiente cultural hipersexualizado mas que, de acordo com as estatísticas, cada vez menos tem um conhecimento carnal daquilo que fala. Assim, a taça da fruta tocada, boa para as vespas, quase a apodrecer, mas maravilhosamente perfumada, consegue ser bem mais provocante que a imagem da modelo ou actriz que, logo depois de nos atrair, parece definhar no seu próprio brilho, nessa catástrofe de um ideal multiplicado por tantos espelhos.
Há algo na simples taça de fruta, ou no postal de uma mulher a afogar os lençóis numa água floral de alfazema, cujo cheiro é de uma subtileza que persiste, desdobrando-se ao longo da noite, algo como um sentido de escala, um antigo rigor nessas coisas que não são abertamente sexuais, mas que, numa profusão de sugestões e semelhanças, atraem a imaginação, definindo degraus melhor medidos para que esta os suba sem grande esforço. Afinal, quando falamos de amor ou de alguma variação da experiência sensual, estamos confinados aos elementos estéticos e às representações que conseguimos dominar. E o sexo até pode estar em toda a parte, mas não há nada pior do que cunhar uma unidade monetária comum para algo que respeita à intimidade de cada um. Numa altura em que os constrangimentos provocados pela pandemia cobram já um alto preço no que toca à intimidade e às relações sexuais, é também uma boa altura para reflectir de forma mais ampla sobre os indicadores de uma retirada, de um desinteresse pelo sexo, pelo conjunto de pesquisas e estatísticas que apontam para uma diminuição da libido, especialmente entre as gerações mais novas. Quando se diz que o futuro já não é hoje como era antigamente, percebemos que a própria raça pode perder o seu encanto, a pulsão multiplicadora, o desejo de cobrir a superfície de um planeta em tempos tão estranho e sedutor, mas que hoje tem muita dificuldade para guardar algum recanto virgem. A expansão da humanidade significou também a dissolução dos seus laços. O amor surge-nos cada vez mais alheado da sua contraparte, aquela tensão animadora que a morte lhe traz, e com isso todo o som e a fúria começam a parecer-se com actos de histeria bastante patéticos, e as representações românticas causam-nos um certo embaraço. Sem a morte, o amor, nas suas representações e motivos, torna-se apenas outra excrescência ornamental. Como nos diz o romancista checo Ivan Klíma, citado por Zygmunt Bauman em “Amor Líquido”, poucas coisas se parecem tanto com a morte como o amor realizado. “Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta a repetição, não permite recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se ‘por si mesmo’ — e consegue. Cada um deles nasce, ou renasce, no próprio momento em que surge, sempre a partir do nada, da escuridão do não-ser sem passado nem futuro; começa sempre do princípio, desnudando o carácter supérfluo das tramas passadas e a futilidade dos enredos futuros.”
A própria inteligência joga um papel importante na perda de entusiasmo face ao futuro. Os estudos apontam que, desde a II Guerra Mundial, o coeficiente intelectual não parava de crescer a cada nova geração, isto até ao ano 1976, altura em que esta métrica não apenas estagnou mas entrou num acentuado declínio. Assim, as pessoas que deixaram a adolescência na década de 1990 foram os primeiros a dar sinais de já não excederem, do ponto de vista intelectual, as capacidades dos seus pais. Segundo investigadores do Ragnar Frisch Center for Economic Research, e um estudo que publicaram na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, tem havido um declínio de cerca de 7 pontos por cada geração desde aquele ano, e os motivos desta deterioração podem estar ligados a alterações na forma como é feito o ensino das disciplinas de matemática e dos diferentes idiomas, como também ao abandono progressivo da leitura de livros como forma de passar o tempo, preferindo a televisão e as novas alternativas tecnológicas. À medida que os novos periféricos estabeleceram um regime da atenção em que se suspendem os processos de espera, e a partir do momento em que o mundo celebrou as potencialidades da conexão instantânea, é como se um cancro tivesse atingido as células do tempo, começando a devorar-nos aos poucos, por não nos permitir essa dilatação de um ritmo que nos habitue a preencher momentos de vazio e espera. Enquanto isso, cada vez mais distraídos, o tempo aparece-nos num efeito de lisura, sem cortes, perdendo até a textura, afirmando-se um presente perpétuo que deixa difícil perceber o que pertence já ao passado e o que restará ao futuro. Haverá mais calamidades, mais mortes, mais desespero – é isso o que diz o homem do tempo. Neste tempo que já não muda, que apenas consome e se agiganta na sua obesidade, não temos noção nem das semanas, nem dos meses ou dos anos. Tudo o que diz respeito à duração se tornou uma abstracção espinhosa. Hoje as datas vão a par com contagens sinistras. E nestes dias, sobreviver significa preservar-se, muitas vezes furtando-se à própria vida e aos riscos que a aliciam. Mas já antes da pandemia havia entre nós essa suspeita de que o mundo à nossa volta parecia estar a dissolver-se, deixando espalhados por aí coágulos de tempo sem relação entre si. E se as suspeitas se acumulavam quanto a um crime difuso, em que é muito difícil discernir exactamente quem são as suas vítimas, qual é exactamente o motivo, e que espécie de arma se voltou contra nós, falar do desejo é uma boa forma de perceber essa parte em nós que em vez de ler os sinais, pressente-os.
Um dos estudos mais significativos feitos sobre este tema foi publicado recentemente nas páginas da revista Journal of Sexual Medicine com o título Declining Sexual Activity and Desire in Men – Findings from Representative German Surveys, 2005 e 2016. Através de uma série de inquéritos junto de homens entre os 18 e os 93 anos, o estudo concluiu que a proporção de homens sexualmente activos caiu de 81% para 73% em 2016, e que a ausência de desejo sexual subiu de 8% para 13% nestes anos. Os investigares notaram ainda que a actividade sexual e o desejo decrescem especialmente entre os jovens e os homens de meia-idade, sendo um factor determinante para isto o facto de ser baixo o percentual de homens a viverem relações estáveis. Um outro estudo abrangente, realizado por três investigadores junto da população norte-americana, e que foi publicado na revista Archives of Sexual Behavior, indicou que os adultos mantinham relações sexuais seis vezes menos em 2014 do que o faziam na década de 1990. Segundo os dados apurados, entre 1989 e o início do novo século, em geral, os americanos faziam sexo entre 60 e 65 vezes por ano, mas de 2002 em diante houve factores que determinaram uma perda generalizada do apetite sexual. E ainda que este fenómeno seja identificado em todos os grupos, aquele que mais impacto teve no abaixamento dos números foram os cônjuges. Se os casais tendem a ter vidas mais activas do ponto de vista sexual do que os solteiros, essa diferença está a perder-se, e se, em 1989, os casais fizeram em média sexo 67 vezes, em 2014 apenas o fizeram 56 vezes. A pesquisa identifica uma série de transformações culturais como factores que contribuíram para este declínio nos últimos anos, incluindo a abundância de opções de lazer e formas de distracção ligadas aos hábitos de consumo tecnológico, incluindo as redes sociais, os vídeo-jogos e as plataformas de streaming. É uma forma de acosso, um assédio ao qual um número cada vez maior de pessoas tem dificuldade em resistir pelo cansaço que acumulam, pela facilidade de se diluir, ou ligar os nervos a essa corrente que aplaca a solidão, suaviza o tempo, gera um transe ao qual todos parecem estar ligadas. São formas cada vez mais populares de respiração assistida, de uma imaginação em regime de colmeia, em que importa menos as competências pessoais de cada um e mais a rede à qual está ligado.
David Spiegelhalter, especialista em estatísticas da Universidade de Cambridge, compilou uma série de dados de pesquisas realizadas no Reino Unido, e corroborou a tese de que as novas gerações têm cada vez menos tempo para a intimidade, e que também na Grande Ilha os casais entre os 16 e os 64 anos que faziam sexo cinco vezes por mês em 1990, uma década depois já só faziam quatro vezes por mês, e em 2010 apenas três. Ora, seguindo esta tendência, Spiegelhalter conseguiu atrair cabeçalhos ao profetizar que, tendo em conta que a frequência desceu 40% nos últimos vinte anos, em 2030 é possível chegar-se a um ponto em que os casais não tenham qualquer relação sexual. De acordo com Fracisca Solero, sexóloga, ginecologista, directora do Instituto Clínico de Sexologia de Barcelona, do Instituto Ibero-Americano de Sexologia e presidente da Federação Espanhola de Sociedades de Sexologia, a falta de desejo é hoje a principal queixa das mulheres, e, no que toca aos homens, se a ejaculação precoce continua a ser o principal factor que os faz procurar ajuda, o segundo motivo é também a perda da libido. Em declarações ao El País, Solero diz que as pessoas têm cada vez menos fantasias. “Talvez porque já não precisam tê-las num mundo hipersexualizado, onde as imagens pornográficas mais extremas estão disponíveis a partir de uma simples conexão à Internet. Tivemos tamanha overdose de estímulos visuais que já nos tornámos insensíveis a eles, e procuramos constantemente outros novos. Quando falamos de desejo sexual há sempre três ingredientes: o impulso físico, a motivação e o ingrediente cultural. Dentro do primeiro influem muitos factores como a idade, as hormonas, a saúde; mas também o estado de espírito e a disposição de querer desejar. A motivação procede de experiências prévias e da qualidade das nossas relações sexuais anteriores, e o factor cultural é tremendamente relevante. A sociedade, a cultura, também constroem a nossa sexualidade.”
A partir do momento em que o tempo nos surge combalido, atacado por um cancro que o leva a largar uma pele depois de outra, sem conseguir reunir-se, fixar-se, alcançar alguma ordem, tanto o amor como a morte dão por si estranhos à vida, pois são eventos que, como nos diz Bauman não têm história própria. “São eventos que ocorrem no tempo humano — eventos distintos, não ligados (muito menos de modo causal) a eventos ‘similares’, a não ser na visão de instituições ávidas por identificar (por inventar) retrospectivamente essas conexões e compreender o incompreensível.” Assim, sem um tempo humano que acerte a hora dos eventos que estruturam uma música da vida, que fazem com que os instrumentistas saibam a sua posição, quando entram e quando devem sair, tudo se sobrepõe, e o que se ouve é um ruído ensurdecedor. “Assim, não se pode aprender a amar, tal como não se pode aprender a morrer. E não se pode aprender a arte ilusória — inexistente, embora ardentemente desejada — de evitar as suas garras e ficar fora do seu caminho. Chegado o momento, o amor e a morte atacarão — mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá. Quando acontecer, vai apanhá-lo desprevenido.”
Estão sempre a acontecer coisas, há drama por todo o lado, mas nada parece lançar a sua sombra, produzir consequências. Tudo fica sem sabor. Como descreve Henry Miller em “Trópico de Câncer”, por mais que nos aflija esta comichão, por mais que a cocemos, ao ponto de fazer sangue, não se consegue afastá-la. “Onde quer que vá, as pessoas só sabem armar confusão com as suas vidas. Cada um tem a sua tragédia privada. E agora já está no sangue – a desventura, o tédio, o luto, o suicídio. A atmosfera está saturada pelo desastre, a frustração, a futilidade. Coças e coças – até não te restar mais pele intocada.” Mas é neste ponto que Miller, em vez de se mostrar abatido com esta perspectiva, diz que para ele este ambiente de degradação era instigante, uma rebaldaria apaixonante. “Em vez de ficar desencorajado, ou deprimido, eu aprecio as coisas assim. Eu suplico por mais e mais desastres, maiores calamidades, fracassos grandiosos. Quero que o mundo inteiro perca o eixo, quero que todos se cocem até à morte.”
Outro aspecto que o artigo do El País toca, prende-se com um desejo que apenas conhece a aparência do desejo. Uma espécie de romantismo que é mais fiel a uma intimidade vista de fora, uma “extimidade”, para usar a expressão do psiquiatra e psicanalista Serge Tisseron. Assim, o desejo surge mais como outra representação social, outro simulacro, uma forma de expor a intimidade em público, seguindo a lógica do exibicionismo típico da sociedade em rede. No entender de Bauman, “o advento da sociedade-confessionário marcou o triunfo definitivo daquela invenção esquisitamente moderna que é a privacidade – mas também marcou o início dos vertiginosos tombos desde o apogeu da sua glória. Triunfo que se revelou ser uma vitória de Pirro, naturalmente, visto que a privacidade invadiu, conquistou e colonizou a esfera pública, mas ao preço de perder o seu direito ao segredo, seu traço distintivo e privilégio mais caro e defendido da forma mais ciumenta. (…) Ao que parece, já não nos traz alegria o ter segredos, a menos que se trate daquele género de segredos capazes de exaltarem o nosso ego, atraindo a atenção de seguidores e que excitam a imaginação infantil dos apresentadores de talk-shows televisivos, das primeiras páginas dos tabloides e das capas das revistas cor-de-rosa.”
Com o título “Somos a geração que não quer relações”, o artigo do El País remete-nos para um texto da escritora Krysti Wilkinson publicado há uns anos no Huffington Post, que assinala esta pretensão de um desejo que apenas quer o lado exterior das relações, que apenas está empenhado numa representação harmoniosa, mas que prescinde daquilo para o qual essa remete, para a intimidade, para as bases de um relacionamento que exige um pacto e uma constante transferência entre dois. “Queremos uma segunda chávena de café para aparecer nas fotos que publicamos no Instagram nas manhãs de domingo, outro par de sapatos nas nossas fotos artísticas em que mostramos os pés. Queremos pôr no Facebook que temos uma relação para que toda a gente possa aprovar com um gosto, e assinar o livro do casal, recomendando-o, queremos uma publicação digna do hashtag #casalideal. (…) Queremos a fachada de uma relação, mas não queremos o esforço que implica tê-la. Queremos dar as mãos, mas não ter queremos manter contacto visual; queremos manter esse registo de flirt mas não ir ao ponto de ter conversas muito sérias; queremos promesas, mas não um compromisso real; queremos celebrar aniversários, mas não ter de aguentar os 365 dias que isso implica. Queremos um felizes para sempre, mas não que nos exija um esforço de estar aqui e agora. (…) Queremos um amor digno de levantar a taça do campeonato, mas não um que nos obrigue a ir todos os dias aos treinos.”