Espaço. Podemos fazer da Lua uma estação de serviço?

Espaço. Podemos fazer da Lua uma estação de serviço?


Com todos os olhos virados para Marte, os cientistas ainda se debatem se não devemos voltar primeiro à Lua, mesmo aqui ao lado, para testar novas tecnologias.


O robô Perserverance, da NASA, já percorre o solo marciano. O Tianwen-1, da China, vai juntar-se-lhe em maio, enquanto o satélite Hope, dos Emirados Árabes Unidos, observa a partir da órbita do planeta. A eventual chegada de humanos a Marte, talvez até a sua colonização, parece cada vez mais próxima, mas isso só aqueceu o debate. Deverá a Lua, mesmo aqui ao lado, servir como estação de serviço rumo ao planeta vermelho?

É uma questão com que as várias agências espaciais se debatem há décadas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a administração de George W. Bush queria apostar na Lua, a de Barack Obama não, a posição do executivo de Donald Trump oscilou, e ainda não se conhece o que pensa Joe Biden sobre o assunto. Contudo, os apoiantes de uma viagem direta para Marte – que incluem Elon Musk, da Space X, e claramente estão na mó de cima, dada a quantidade de missões que se dirige ao planeta vermelho – argumentam que o satélite natural da Terra é um péssimo terreno de treino para Marte, e tem muito menos potencial de ser colonizado.

Para começar, na Lua não há atmosfera. Logo, os “sete minutos de terror” que enfrentou a Perserverance, que teve de ser protegida por escudos de calor, cuja superfície chegou aos 1300 ºC, não são uma preocupação. Já na Lua a falta de gravidade é um fator, bem como a temperatura. No satélite da Terra, devido à falta de atmosfera para reter calor ou filtrar a radiação solar, a variação térmica é extrema – a Lua demora o equivalente a 27 dias terrestres a rodar sobre si mesma, durante a noite a temperatura pode chegar aos 173 ºC negativos e subir até aos 127 ºC durante o dia, segundo dados da NASA. Marte é mais frio que a Terra, sim, mas a temperatura é bastante tolerável na região do equador, onde aterrou a Perserverance – no verão, é equivalente a um dia de primavera em climas temperados.

Outra questão é a água, um dos fatores essenciais para um eventual assentamento humano. De facto, foram encontrados sinais de água tanto na Lua como em Marte. Contudo, no planeta vermelho, esta está muito mais distribuída, talvez até à superfície, e facilmente acessível. No satélite da Terra, a água está congelada, tão dura como granito, debaixo das profundezas dos polos, cuja superfície chega aos 247ºC negativos – está entre os locais mais gelados do sistema solar, equiparado à superfície de Plutão, o planeta anão na cauda do sistema solar.

A própria poeira lunar é um obstáculo à exploração. Composta por partículas finas, com arestas afiadas, quase impossíveis de esfregar de um fato ou de equipamento, tem potencial para rasgar pulmões. Em contrapartida, o solo de Marte deverá ser terroso. “Se tivéssemos recolhido amostras lunares antes de enviar Neil Armstrong e Buzz Aldrin para a superfície, estou convencido que teria demorado décadas a enviar pessoas à Lua”, notou John Grunsfeld, um astronauta reformado da NASA, à Atlantic. “A comunidade médica teria pegado nas amostras, observava-as no microscópio e dizia: ‘Oh, meu Deus, são estilhaços de vidro a uma escala mícron. Os astronautas vão inalá-las, entrar em hemorragia e morrer na Lua’”.

“A primeira colónia humana noutro mundo” Até Buzz Aldrin passou as últimas décadas a defender que se dê prioridade a Marte, tornando o planeta “a primeira colónia humana noutro mundo”, como escreveu na CNN, em 2009. “Agora, é tempo de nós vivermos e trabalharmos em Marte, primeiro nas suas luas e depois na sua superfície”, apelou o astronauta, acrescentando: “Explorar e colonizar Marte pode trazer-nos novo conhecimento científico sobre as alterações, sobre como processos à escala planetária podem tornar um planeta quente e húmido numa paisagem nua”.

A verdade é que o interesse científico em Marte é muito superior ao da Lua. Pensa-se que o nosso satélite, na prática, não seja mais que um grande bocado da Terra que se soltou há muito, muito tempo – Marte é toda uma nova realidade geológica desconhecida, com o bónus de se suspeitar de que possa conter vida, ou vestígios dela.

Apesar dos contras, há quem defenda que não faltam motivos para regressar à Lua. “É importante salientar que, até agora, os humanos mal ultrapassaram a órbita terrestre baixa. Os efeitos da radiação espacial no corpo humano ainda são bastante desconhecidos, o campo magnético da terra protege-nos dela”, lembrou Manuel Wilhelm, responsável pelas relações industrais e projetos na área de Transporte Espacial e Exploração na Agência Espacial Portuguesa, ao i – já Marte perdeu o seu campo magnético há quase 4 mil milhões de anos, teme-se que os astronautas que ousem explorar o planeta vermelho enfrentem consequências como o aumento do risco de cancro.

«A Lua servirá para conhecer mais sobre o ambiente do espaço profundo, e para aperfeiçoar a utilização de recursos in situ», considera o cientista – ou seja, o uso recursos existentes noutros corpos celestes para poupar carga, seja produzindo hidrogénio como combustível ou oxigénio para respirar.

Talvez então se torne possível o sonho de uma colónia em Marte a partir de 2050, como prometeu Elon Musk, com os Emirados Árabes Unidos a falar de construir uma cidade com 600 mil habitantes no planeta até 2117. Contudo, até se chegar a esse ponto em que a realidade colide com a fição científica, “a Lua é o ponto focal da exploração espacial nos anos vindouros”, assegura Wilhelm.