Catarina Frois. Um novo retrato das prisões portuguesas

Catarina Frois. Um novo retrato das prisões portuguesas


Em “Prisões”, um dos mais recentes ensaios da colecção “Retratos”, da FFMS, o retrato do mundo prisional português surge desenhado com uma grande variedade de padrões – “nunca encontrei a prisão, mas sim prisões” (p.19), observa a investigadora que, entre 2013 e 2016, estudou vários estabelecimentos prisionais portugueses.


1.No Estabelecimento Prisional do Linhó, grande parte da população presa é oriunda de bairros periféricos da Grande Lisboa, de famílias de condições financeiras precárias e com níveis de escolaridade até ao sexto ano. Aproximadamente 70% dessa população é filha de emigrantes dos PALOP, em particular de Cabo Verde. Abandonam a escola cedo, têm o grupo de amigos por principal companhia, os pais trabalham nas limpezas e na construção civil, ou dedicam-se a práticas ilegais como o tráfico de droga. Uma grande parte das pessoas presas em Portugal e no mundo são pobres. E, no entanto – factor, este, a pobreza, condicionador impossível de obnubilar -, ignorar, do mesmo modo, uma possibilidade outra de acção seria recusar qualquer grau de liberdade presente na pessoa, lançar um completo anátema sobre um amplo conjunto de pessoas (que se encontram em idêntica situação económico-social) e descuidar a complexidade de que se reveste a prática de um crime: “o grosso dos pobres não está preso e a pobreza não determina a delinquência” (nas palavras de um técnico de tratamento penitenciário, ouvido por Catarina Frois, Professora do Departamento de Antropologia do ISCTE, em “Prisões”, um dos mais recentes ensaios da colecção “Retratos”, da FFMS).

2.Mais do que escrito no singular, o retrato do mundo prisional português surge desenhado com uma grande variedade de padrões – “nunca encontrei a prisão, mas sim prisões” (p.19), observa a investigadora que, entre 2013 e 2016, estudou vários estabelecimentos prisionais portugueses.  Se, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, o testemunho de um dos reclusos é amplamente constrangedor e denuncia condições inaceitáveis e indignas para com o humano detido – “A ala dos entrados é um degredo. (…) Estive 12 dias numa cela com uma cama de cimento encharcada de humidade, com três dedos de água no chão. Não havia luz, fechados 23 horas por dia. Eu acho que estivemos 12 dias calados, a olhar uns para os outros, porque não tínhamos vontade de falar. Era Inverno, os vidros estavam todos partidos, um frio de rachar e tudo encharcado. (…) Toda a gente tem uma garrafa de água que serra ao meio, e aquilo serve para comer a sopa, para beber água, para tudo. Todos passam por isso. Ao início, isto é mesmo traumatizante. Vinte e três horas fechados, uma hora para irmos tomar banho, um duche comum, todo borrado, e o pátio, que são quatro muros. A casa de banho é dentro da cela, que é um rectângulo, a retrete e um lavatório, tudo aberto. Uma pessoa nunca ia pensar em sentar-se [na retrete], mas mesmo que quisesse não dava, porque estava toda partida. O que é que o pessoal faz quando está nessas celas? Pomos sacos com areia na retrete, à noite, para as ratazanas não chatearem. Isto é verídico!”(pp.45-46) -, se, no Estabelecimento Prisional de Leiria, igualmente escutamos uma voz amargurada – “eu partilho a cela com duas pessoas, a senhora imagine o que é uma cela para um ser ocupada por três, com lavatório e sanita, nem espaço há para estarmos de pé. Havia ali um ucraniano que deu umas facadas à mulher e apanhou sete anos. Estava-me sempre a oferecer para ir a Cabo Verde ganhar algum dinheiro, negócios. Ele diz: rouba-se uma senhora com um bom Mercedes. Ela fica sem a mala e sem o carro. O carro desaparece logo nessa noite, para peças. É assim. Eu já não aguentava aquilo. Tiraram-no de lá, mas só que nessa noite meteram lá outro, aquele homem que matou a mulher e a filha à facada. Eu estou ali a dormir e ao lado está um indivíduo daqueles, que está ali a ler e não se mexe. Estar ali com um gajo daqueles? O que mais me custa é levar com o crime das outras pessoas”(pp.82-83) -, na Prisão da Carregueira é possível ouvir reclusos que sublinham a criteriosa escolha, pelos responsáveis daquela cadeia, de quem com eles partilha a cela: pessoas “com hábitos de higiene, hábitos de leitura ou gosto televisivo idêntico, respeito pelas necessidades dos outros” e até um tempo de condenação aproximado (p.54); “sou respeitado, respeitam os meus períodos de estudo, quando estou a estudar a televisão está baixa ou sem som”(p.55). Mas a Carregueira é tida como a prisão VIP portuguesa – embora, paradoxalmente, a fama, entre os reclusos, de que se trata da cadeia onde se condenados por «pedofilia» e «violação», faça com que qualquer vinculação à mesma procure ser apagada da história pessoal –, além de, no mesmo Estabelecimento Prisional, se encontrarem celas sem as menores condições ao lado de outras com um conforto bem diverso para “pessoas com educação e com posses”: “apercebi-me assim de que também as prisões pareciam ser para ricos e para pobres, como diz a expressão  popular sobre a justiça”(Catarina Frois, pp.110-111).

3.Nas prisões, e entre outros, trabalham funcionários administrativos que fazem ponte com o tribunal; técnicos de reinserção; juízes de penas; corpo docente; prestadores de cuidados de saúde. Se cada um destes actores tem uma interpretação própria do que é a prisão, todavia há “unanimidade no diagnóstico do falhanço da função reabilitadora da privação de liberdade em meio carcerário” (p.20). 

4.Ao longo dos anos, a mesma função, na prisão, é interpretada de modo diverso. Atente-se no caso dos guardas prisionais. Um guarda prisional, com 33 anos de serviço, explica que há 20 anos a relação dos guardas com os reclusos tendia a ser mais distante, já que o guarda abria e fechava portas, sendo “mais parecido com um carcereiro” (p.76). E, em uma outra declaração recolhida neste retrato, um outro membro deste corpo profissional, chefe no E.P. do Linhó, aduz: “essa história de os guardas baterem nos presos pertence ao passado. Acha mesmo que bater traz algum resultado? Porrada foi o que eles levaram a vida toda, a começar por casa, pelo pai, pela mãe. Eles precisam é de mudança, não é de porrada”(p.40). Os guardas entendem ser, para além das funções adstritas à manutenção da ordem e da segurança na prisão, “um amigo, um conselheiro, um confidente” dos reclusos: “eu não estou aqui para os julgar, o crime que cometeram não me interessa. Quem os julgou foi a sociedade, foi o juiz, para mim são todos iguais, são apenas pessoas. Se eu fosse a ver pelos crimes, então o meu trabalho tornava-se impossível”, observa um terceiro guarda, do E.P. de Leiria.

5.Apesar de estatal, a prisão difere das outras instituições públicas, na medida em que não é aberta ao público, o que contribui para se tornar um lugar “mistificado”(p.16) e dado a clichês quanto ao modo como o criminoso ou o guarda prisional, por exemplo, são retratados, inculcando uma invisibilidade que torna, aliás, mais difícil de justificar, politicamente, recursos para aquela – desde a necessidade de novas instalações (em 1970. Portugal possuía 112 Estabelecimentos Prisionais, normalmente pequenos para albergarem 50 a 100 pessoas, em um universo de 6000 reclusos; no início da década de 2000, tínhamos 49 prisões para uma média de 12 a 14 mil detidos – com claro risco de colapso, pp.24-25) até aos “recursos humanos”: existem, hoje, cerca de 4000 guardas prisionais em todo o país – alguns dos quais de baixa -, quando necessários seriam 5200 (pp.90-91). Enquanto as condições materiais e os reforços de cidadania se com a adesão à Comunidade Económica Europeia, em 1986, retrocediam, com a sobrelotação das prisões, os direitos dos reclusos (p.27). Com a sobrelotação, deixa de ser possível a separação entre reclusos preventivos e reclusos condenados, ou entre reclusos em situação excepcionalmente vulnerável e a população comum. Uma cama passa a beliche; este, passa a estrutura tripla. Ora, como com clareza afirmou Celso Manata, Diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em 2016, numa audição no Parlamento, “o Estado tem o direito de privar de liberdade, mas não tem o direito de privar de dignidade” (p.26). 

6.Ao longo de todo o Retrato/Ensaio da Professora Catarina Frois, sobre as prisões portuguesas – sendo que Portugal foi o segundo país europeu a abolir a pena de morte, em 1867; em Tires situa-se a mais antiga cadeia feminina do país e em Monsanto a única prisão de alta segurança -, há uma indagação, diríamos ontológica, acerca da cadeia. Que agora já não age, como outrora, sobre o corpo – as torturas e os suplícios corporais de outros tempos foram superados -, mas visa a alma: o pensamento, a vontade, as disposições.  Transformação de hábitos e práticas para um regresso à sociedade com comportamento diverso. A autora, crítica do excesso de prisão preventiva – e sendo que os presos preventivos, normalmente, não têm acesso a trabalho nem a frequentar a escola -, de uma não maior consideração de alternativas à prisão no momento da condenação, dos tempos, completos, de cumprimento das penas em casos que entende demasiados, faz notar, com um conjunto de testemunhos, as dificuldades que aqueles que não obtiveram na infância ou juventude apoio societal e/ou estatal para superar os seus dramas e as suas fragilidades, venham a obter nas prisões o impulso transformador bastante. Até porque, não raro, mesmo quando alguns instrumentos novos são adquiridos nos estabelecimentos prisionais, o regresso, da pessoa, cumprida a pena, aos mesmos espaços e contextos, abandonados a estes, é susceptível de potenciar a volta a um passado de má memória. E que reinserção numa sociedade da qual se esteve alheado muitos anos? Não se fazendo tábua rasa de quem encontrou na prisão um lugar de acolhimento que melhorou o estádio em que se encontrava – e também esse sinal é deixado neste livro em discurso direto -, Catarina Frois não esconde o ceticismo sobre a prisão e, em especial, a sua capacidade de reabilitar o indivíduo, sempre parecendo ecoar, ao longo do ensaio, as palavras que seguem na esteira de Foucault e de Erving Goffman: “a prisão não dissuade a criminalidade, não serve de exemplo para o infractor, não reabilita nem regenera o sujeito encarcerado. Servirá, sobretudo, para que se tranquilize a sociedade, e para demonstrar que a justiça está atenta e cumpre o seu dever, assegurando que quem transgride é responsabilizado e punido”(p.16). 
O radical (de raiz) questionamento da prisão, ela mesma, implicará, inevitavelmente, que à sua impugnação corresponda a apresentação de alternativa(s) válida(s) – porventura, para lá daquelas já hoje existentes e de aplicação prevista, como trabalho comunitário, pulseira eletrónica, etc. – e o esforço/comprometimento de as legitimar socialmente (esforço esse, por certo, de que o interesse e o trabalho que no-las retratam, como a presente obra, fazem parte); as mudanças no funcionamento – incluindo as suas estruturas físicas e a presença humana nelas – de concretas prisões, não implicando um salto quântico tão pronunciado, reclamam, apenas e já, o não fechar olhos a tão claras disfunções que os ‘Retratos’, da FFMS, têm tido o mérito de no-las evidenciar.