“Tivemos de vender as ovelhas, não conseguíamos cuidar delas”

“Tivemos de vender as ovelhas, não conseguíamos cuidar delas”


A terceira vaga da pandemia não poupou o interior. Aguiar da Beira, no distrito da Guarda, foi o concelho com maior percentagem da população infetada, com 600 casos em mês e meio e quase 50 mortes. Agora há 30 casos ativos. O pior já passou, mas as marcas ficam. No lugar da Quinta da Estrada,…


Alcino está à porta de casa. Parecia ter ouvido alguém bater. Ao lado tem a oficina e casa de pneus, de portas abertas mas parada, como quase tudo na vila, e não passa mesmo ninguém. Desde que veio a pandemia deixou de ir ao café, que bebe agora em casa, mas compra o jornal todos os dias para estar a par. E emociona-se quando se pergunta pelo vírus que em janeiro colocou o concelho entre os municípios no topo da lista, a certa altura com mais de 6 mil casos por 100 mil habitantes. “Lá estava Aguiar da Beira. Não tínhamos tido quase nada e foi assim. O povo não se convence”, diz.

A apontar para o horizonte traça o caminho do vírus entre o que “tinha de ser” e os descuidos de alguns: no final do ano já andava nos lares, depois continuou e também lhe bateu à porta, o filho ficou de quarentena. Ele não apanhou. “As pessoas não têm cuidado. Houve aí uma freguesia em que andaram nas janeiras, ficaram todos em casa”, descreve.

O pior já passou e agora é “andar para a frente”, e isso mostram também os dados publicados regularmente pela autarquia. Desde 1 de janeiro somaram-se 609 casos e 46 mortes, o que, num concelho com a população estimada em 5400 habitantes, significa 12% dos habitantes infetados em mês e meio, quando até ao final de 2020 se contabilizavam 191 casos acumulados, a maioria já no mês de dezembro. Segundo a informação disponibilizada regularmente pela DGS, foi mesmo o concelho com maior percentagem de população infetada nesta terceira vaga que, ao contrário da primeira, não poupou o interior. Estimando o número de casos a partir das incidências divulgadas pela DGS, em segundo lugar surge Castelo de Vide, com 10% da população em janeiro, e depois Penedono e Cuba, perto dos 10%.

No centro da vila de Aguiar da Beira, Elvira Paquete tem uma ervanária e confirma que foi muita gente, sobretudo nos lares, mas também fora. Na esquina da rua há o centro de análises e “chegou a haver fila”, recorda. Quanto às explicações, não acredita que tenham sido mais descuidados que outros. “As pessoas até têm tido cuidado. Eu passei o Natal sozinha e, pelo menos da minha parte, ninguém veio cá. Não tivemos Ano Novo, e Páscoa, certamente, também já não vamos ter”, diz. E agora que a situação está mais calma, sublinha que, no meio da tempestade, a população soube ajudar-se e essa é uma vantagem de um meio pequeno. “Até a carteira levou algumas vezes medicamentos ou chás a quem precisava”, conta. Pela internet foi-se dando ânimo aos infetados e a ajuda que era preciso.

António Silva, de 76 anos, natural de Aguiar da Beira e residente na vila, enche os garrafões com a água da fonte, imune à chuva que insiste em trazer de volta o tempo cerrado de inverno depois de um fim de semana de sol e temperaturas mais amenas. Olhando bem para o que se passou, tem uma convicção: “Há coisas inexplicáveis”. Nesta família, o neto de quatro anos foi o único com teste positivo, depois de uma professora ter acusado o vírus. “Nem o irmão apanhou, nem os pais, nem nós. É mesmo assim. Por mais incrível que pareça, houve casas em que o filho teve e os pais não tiveram. Isto depende do organismo da pessoa, estou convencido”, sublinha.

No Ultramar, também já tinha tido sorte, recorda. Em Angola fez vacina da febre amarela e ainda apanhou paludismo, mas ficou bem. O frio que fazia à noite, apesar de estar em África, ainda foi o que custou mais a passar e quando voltou à terra, em 1967, não foi bicho nenhum mas, mais uma vez, o frio e o choque de temperaturas que o deixaram de cama. “Veio um nevão que deixou aqui a neve com um metro de altura. Nunca mais houve nada assim”.

Encher os garrafões com a água da fonte é uma tarefa que ajuda a preencher os dias, confinados a casa, ele e a mulher. Fartos? “Ainda nos vamos suportando”, sorri. Esta semana era dia de ir a Viseu para consultas, mais um dia diferente. “Já foram adiadas duas vezes, uma vez porque eles pediram, outra porque nós não quisemos ir. Há muita gente que não vai ao médico com medo, isso é verdade, mas, de resto, aqui vemos que há uma grande cooperação entre as pessoas e vamos passando os dias”.

À porta da farmácia, António Elias, de 72 anos, está também numa das voltas que ajudam a passar o tempo. Aponta do lado da rua o café onde se juntava aos amigos, fechado. Viúvo e sem família perto, custa mais, mas “o que importa é ter saúde”. E já teve a sua dose: há 21 anos, faz agora, um AVC deixou-o meio ano numa cadeira de rodas. “Andava na estrada a guiar um camião e ainda consegui encostar, foi a minha sorte”, lembra. “De cabeça fiquei bem, o braço nunca mais voltou ao mesmo. Mas dá para guiar, sempre com cuidado”.

Que saiba, não se cruzou com o vírus em Aguiar da Beira e tem estado onde se pede: por casa. Mas a espera por melhores dias vai-se tornando longa._“O que faço? Não faço nada. Uma pessoa já está farta de ver a televisão, já nem sabe o que há de ver”. Desce a rua um nonagenário. Apesar da chuva, vai pagar uma conta à câmara, que uma pessoa pode ter pouco mas ser honrada, justifica. “O que é preciso é ter saúde”, atira. Também àquela porta o vírus não bateu.

As ruas estão vazias e há poucos sítios abertos: o minimercado, a farmácia, a ervanária. “O problema sentiu-se mais nos lares e mais fora da vila”, diz António Silva. Das memórias de outros tempos, lembra que sempre se disse que já na pneumónica, em 1918, alguns lugares de Aguiar tinham sido mais fustigados. “Ali na Quinta da Estrada dizia-se que em alguns sítios foram famílias inteiras, as casas ficaram vazias. Foi na altura até que se fez um cemitério novo”.

Não se avista ninguém pelo caminho e, lá chegados, muitas casas, mesmo arranjadas, estão fechadas. A caminhar de máscara e guarda-chuva vem Fátima, de saída da casa dos pais. De ouvir falar do vírus de há 100 anos não se recorda Alice, de 82, à janela a despedir-se da filha. A história de que se lembra é de uma febre de piolhos que obrigou a população a desfazer-se da roupa de cama. Mas este vírus meteu-os em sentido e é o reencontro entre mãe e filha depois de quase um mês de isolamento. Fátima e o marido ficaram infetados e passaram mal. E agora estão com a vida meio em suspenso. “Tínhamos animais, mas não conseguimos cuidar deles. O meu marido ainda lá foi abrir-lhes a porta, mas não tinha força. Não havia ninguém para cuidar delas, acabámos por vender as 14 ovelhas a metade do preço. E agora que estamos melhor já não temos animais”.

Restou o cão que segue a dona, ainda assim feliz por os pais não terem sido infetados num lugar onde a covid-19 bateu à porta de quase todas as casas – as que têm gente, que muitas são de quem está emigrado, diz Fátima. “Somos aí uns 50 e foi a maioria”. Semana após semana iluminou-se a igreja para o último adeus a alguém da terra. “Agora nem vem o padre nem nada”, atira Alice da janela. Esta semana morreram quatro pessoas da aldeia, contam.

Como se infetaram, ninguém sabe ao certo. Há uma suspeita:_“Fui com o meu pai ao centro de saúde, a Aguiar, e passados uns quatro dias comecei a ficar cheia de dores no corpo, ali por volta de 20 de janeiro. Mas ele não teve nada, que era o nosso maior receio. Eu peguei ao meu marido”. No telemóvel mostra a fotografia da língua inflamada, com feridas. “Fiquei assim, nem conseguia comer nem nada e ainda agora sinto o sabor. Nunca tinha tido nada assim”.

O contacto com o centro de saúde foi permanente e fez a medicação que lhe mandaram, sem nunca precisar de ir ao hospital. Mas a vida, que não era folgada, andou para trás com a venda dos animais. E agora é esperar para ver como se desenrola. “Melhores dias hão de vir”, assente, não sem antes mostrar pena de não se poder fazer como antigamente e irmos beber um cafezinho lá a casa.

Quando voltará esse “como dantes”, ninguém sabe. À porta da oficina, Alcino sente as coisas mal paradas: além do filho, trabalha na casa um funcionário e o que faturaram não chega para os salários. “Se isto continua assim, também digo… Não estou para andar a gastar o que ganhei toda a vida”. Mas apesar de o sentir na pele, espera que o confinamento se mantenha mais algum tempo: “Vai melhorar certamente, isto se não abrirem isto depressa. Havia de estar assim até ao fim do mês de março”.

Artigo corrigido: Por lapso, foi referido que Aguiar da Beira pertencia ao distrito de Viseu.