UberEats, Glovo e outros que tais


Estamos perante um serviço cujo mérito e benefício se reconhece, mas do qual pouco sabemos e que parece englobar práticas não consentâneas com os valores e princípios da nossa sociedade.


A quem circular nas nossas cidades às horas das refeições, e também fora delas, não pode passar despercebida a concentração de motas, bicicletas, trotinetes, de vários modelos e formas de energia, que se concentram em vários pontos da cidade, perto de restaurantes, faça chuva, vento ou sol.

São os trabalhadores conhecidos por gig workers, basicamente, profissionais liberais com atividade impulsionada por plataformas digitais. De acordo com uma pesquisa do Joint Research Centre (JRC), da União Europeia, Portugal é dos países com mais pessoas nesta atividade, e já a crescer a dois dígitos. A pandemia veio intensificar esta atividade de forma exponencial.

Até aqui, tudo parece ser apenas mais um serviço inovador, de transporte de refeições e não só. Dir-se-ia que estamos perante um serviço de economia partilhada. Mas será mesmo isso?

Numa avaliação breve a estes serviços identifica-se rapidamente a necessidade de aprofundar a análise e adquirir mais conhecimento desta atividade em três domínios: na logística, na economia e no social.

No último ano, o impacte da pandemia neste setor alterou pontos de entrega, e mesmo rotas, não estando disponíveis dados sobre elementos de produtividade como, por exemplo, fatores de carga para cada condutor, número médio de entregas, voltas em vazio, tempo de espera improdutiva, destinos mais frequentes, contributo destes serviços para o congestionamento do tráfego, etc. As aplicações que dominam a relação entre clientes consumidores e prestadores de serviço detêm essa informação, mas não têm obrigação de a partilhar com as autoridades.

Temos, assim, uma atividade em amplo crescimento e em mudança sobre a qual pouca ou nenhuma informação está disponível para que possa ser integrada no sistema de logística urbana onde opera. No entanto, é indiscutível que esta atividade tem um impacte direto na sustentabilidade da cidade, apesar de ser tratada como se fosse externa ao sistema de logística.

Ficam assim no ar algumas questões importantes como, por exemplo: onde devem ser localizados os pontos de carga e descarga, que até agora são inexistentes e fazem com que estes profissionais se acumulem às portas dos restaurantes, pois também não podem entrar; quais as regras de segurança que estes profissionais devem seguir para os vários veículos que usam; por onde podem e devem circular (é frequente vê-los circular nos passeios, ameaçando a segurança dos peões). Não menos importante, as operações profissionais são executadas com veículos privados e com condutores sem licenças profissionais e, não raras vezes reportado, por imigrantes com situação ainda não legalizada para o exercício da profissão em Portugal. Surge então a dúvida: quem são os responsáveis por estas operações, que garantias existem?

No domínio da economia, a informação é ainda mais escassa, mas muito diversificada nos diferentes países onde estes operadores globais (UberEats, Glovo, Deliveroo e outros) operam, e também em Portugal, onde estes operadores reconhecem ter condições favoráveis de implementação, que levaram a Uber a estabelecer um centro de excelência, que inclui a UberEats, em Portugal, com mais de 200 colaboradores.

Mas há questões a analisar como, por exemplo, os efeitos da concentração de mercado de grandes players internacionais a partilharem o mercado local, com vantagem competitiva quer do lado da oferta de serviços (para os restaurantes e demais fornecedores) quer do lado da procura (os clientes consumidores). Até agora, a decisão tem sido de não interferência mas, na verdade, não foi avaliado o mérito de tal opção.

Não obstante a retórica associada à economia partilhada e à gestão colaborativa das plataformas, a chamada economia gig está, na prática, na fronteira entre o subemprego e o emprego precário, sendo este um fator crítico. As características do serviço, comandado e definido por uma hierarquia superior ao colaborador que o executa, ainda que as ordens de execução da tarefa sejam transmitidas através de canal digital e baseadas num algoritmo, configuram o que na nossa legislação laboral se define como trabalhador por conta de outrem, não sendo essa a condição de envolvimento dos vários condutores-entregadores de encomendas que está a ser praticada no nosso país.

A relação laboral que efetivamente se pratica, sem garantias sociais, sem direitos de estabilidade económica e sem prevenção do risco pelo eventual desconhecimento do que transportam, e ainda com um pagamento contestado, tem vindo a ser referida em vários contextos como uma economia de exploração. Esta questão não é exclusiva de Portugal, bem pelo contrário, é transversal a todos os países onde esta atividade se desenvolve. Aliás, em Espanha, o Supremo Tribunal já determinou que as plataformas digitais não são apenas um intermediário, uma vez que estabelecem a especificação do serviço e as condições em que o mesmo se presta.

Estamos, assim, perante um serviço cujo mérito e benefício se reconhece e que prolifera por todas as nossas cidades, mas do qual pouco sabemos e que parece englobar práticas não consentâneas com os valores e princípios da nossa sociedade. Não é certamente esta a definição de economia partilhada que queremos ter mas, para já, somos pelo menos corresponsáveis pelo que existe.

 

Professora e investigadora em transportes
Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico


UberEats, Glovo e outros que tais


Estamos perante um serviço cujo mérito e benefício se reconhece, mas do qual pouco sabemos e que parece englobar práticas não consentâneas com os valores e princípios da nossa sociedade.


A quem circular nas nossas cidades às horas das refeições, e também fora delas, não pode passar despercebida a concentração de motas, bicicletas, trotinetes, de vários modelos e formas de energia, que se concentram em vários pontos da cidade, perto de restaurantes, faça chuva, vento ou sol.

São os trabalhadores conhecidos por gig workers, basicamente, profissionais liberais com atividade impulsionada por plataformas digitais. De acordo com uma pesquisa do Joint Research Centre (JRC), da União Europeia, Portugal é dos países com mais pessoas nesta atividade, e já a crescer a dois dígitos. A pandemia veio intensificar esta atividade de forma exponencial.

Até aqui, tudo parece ser apenas mais um serviço inovador, de transporte de refeições e não só. Dir-se-ia que estamos perante um serviço de economia partilhada. Mas será mesmo isso?

Numa avaliação breve a estes serviços identifica-se rapidamente a necessidade de aprofundar a análise e adquirir mais conhecimento desta atividade em três domínios: na logística, na economia e no social.

No último ano, o impacte da pandemia neste setor alterou pontos de entrega, e mesmo rotas, não estando disponíveis dados sobre elementos de produtividade como, por exemplo, fatores de carga para cada condutor, número médio de entregas, voltas em vazio, tempo de espera improdutiva, destinos mais frequentes, contributo destes serviços para o congestionamento do tráfego, etc. As aplicações que dominam a relação entre clientes consumidores e prestadores de serviço detêm essa informação, mas não têm obrigação de a partilhar com as autoridades.

Temos, assim, uma atividade em amplo crescimento e em mudança sobre a qual pouca ou nenhuma informação está disponível para que possa ser integrada no sistema de logística urbana onde opera. No entanto, é indiscutível que esta atividade tem um impacte direto na sustentabilidade da cidade, apesar de ser tratada como se fosse externa ao sistema de logística.

Ficam assim no ar algumas questões importantes como, por exemplo: onde devem ser localizados os pontos de carga e descarga, que até agora são inexistentes e fazem com que estes profissionais se acumulem às portas dos restaurantes, pois também não podem entrar; quais as regras de segurança que estes profissionais devem seguir para os vários veículos que usam; por onde podem e devem circular (é frequente vê-los circular nos passeios, ameaçando a segurança dos peões). Não menos importante, as operações profissionais são executadas com veículos privados e com condutores sem licenças profissionais e, não raras vezes reportado, por imigrantes com situação ainda não legalizada para o exercício da profissão em Portugal. Surge então a dúvida: quem são os responsáveis por estas operações, que garantias existem?

No domínio da economia, a informação é ainda mais escassa, mas muito diversificada nos diferentes países onde estes operadores globais (UberEats, Glovo, Deliveroo e outros) operam, e também em Portugal, onde estes operadores reconhecem ter condições favoráveis de implementação, que levaram a Uber a estabelecer um centro de excelência, que inclui a UberEats, em Portugal, com mais de 200 colaboradores.

Mas há questões a analisar como, por exemplo, os efeitos da concentração de mercado de grandes players internacionais a partilharem o mercado local, com vantagem competitiva quer do lado da oferta de serviços (para os restaurantes e demais fornecedores) quer do lado da procura (os clientes consumidores). Até agora, a decisão tem sido de não interferência mas, na verdade, não foi avaliado o mérito de tal opção.

Não obstante a retórica associada à economia partilhada e à gestão colaborativa das plataformas, a chamada economia gig está, na prática, na fronteira entre o subemprego e o emprego precário, sendo este um fator crítico. As características do serviço, comandado e definido por uma hierarquia superior ao colaborador que o executa, ainda que as ordens de execução da tarefa sejam transmitidas através de canal digital e baseadas num algoritmo, configuram o que na nossa legislação laboral se define como trabalhador por conta de outrem, não sendo essa a condição de envolvimento dos vários condutores-entregadores de encomendas que está a ser praticada no nosso país.

A relação laboral que efetivamente se pratica, sem garantias sociais, sem direitos de estabilidade económica e sem prevenção do risco pelo eventual desconhecimento do que transportam, e ainda com um pagamento contestado, tem vindo a ser referida em vários contextos como uma economia de exploração. Esta questão não é exclusiva de Portugal, bem pelo contrário, é transversal a todos os países onde esta atividade se desenvolve. Aliás, em Espanha, o Supremo Tribunal já determinou que as plataformas digitais não são apenas um intermediário, uma vez que estabelecem a especificação do serviço e as condições em que o mesmo se presta.

Estamos, assim, perante um serviço cujo mérito e benefício se reconhece e que prolifera por todas as nossas cidades, mas do qual pouco sabemos e que parece englobar práticas não consentâneas com os valores e princípios da nossa sociedade. Não é certamente esta a definição de economia partilhada que queremos ter mas, para já, somos pelo menos corresponsáveis pelo que existe.

 

Professora e investigadora em transportes
Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico