Na fila pra vacina


Vivemos, para além de uma recente crise sanitária, uma velha crise de valores.


“Afinal, é o jeitinho português que pode mais do que o engenho humano. Tem-se a sensação ao olhar para Portugal de um país inteiro que se vai arranjando, que se desenrasca e ajeita conforme as circunstâncias, metendo cunhas e dando toques, tapando buracos e fazendo habilidades”

Miguel Esteves Cardoso

 

Foi sem surpresa que se foram conhecendo os casos de pessoas vacinadas sem constarem das listas de prioridades, invocando os mais diferentes argumentos.

Normalmente, tratou-se de cidadãos com cargos que não ultrapassaram a presidência de câmara (que se saiba) e que revelaram a tendência nacional para o desenrasca e, sobretudo, para o egoísmo e a mesquinhez.

O chico-espertismo é uma instituição nacional!

É a passagem à frente numa fila organizada, a cunha para um emprego ou a fuga aos impostos. Salvaguardando a gravidade de cada caso, o que interessa é que cada um, à sua maneira, se desenrasque.

Somos um povo de desenrascados, pouco dado a exercícios de planeamento a médio ou a longo prazo. O que interessa é o momento e, quando acontecer, logo se vê.

Por isso, é cada um por si. Se posso safar-me, safo-me.

A nossa ancestral indisciplina coletiva é o reflexo disso mesmo.

Assim, pensaram os chicos-espertos, para que hei de esperar pela minha vez para ser vacinado se tenho poder, ou ocasião, para passar à frente dos outros? E se assim pensaram, melhor o fizeram.

Tudo normal, portanto, no país onde os maus exemplos vêm de cima. Que moral têm os responsáveis políticos para criticar estas ultrapassagens quando muitos deles cometem infrações éticas maiores?

Vivemos, pois, para além de uma recente crise sanitária, uma velha crise de valores.

Valha-nos, no entanto, esse espírito tão português de resolver situações difíceis, inesperadas, porque não planeadas convenientemente.

Se assim não fosse, como conseguiriam os profissionais de saúde combater esta pandemia? Se não fosse esse espírito tão português de fazer das fraquezas forças e de inventar muitas vezes soluções para resolver a falta de meios?

Estamos, pois, na fila pra vacina. A maioria espera pela sua vez, de forma ordeira. Uns tantos fintam a fila e chegam-se à frente.

Uma excelente metáfora sobre a nossa vida em sociedade.

Tinha razão José Saramago:

“Este país (Portugal) preocupa-me, este país dói-me. E aflige-me a apatia, aflige-me a indiferença, aflige-me o egoísmo profundo em que esta sociedade vive. De vez em quando, como somos um povo de fogos de palha, ardemos muito, mas queimamos depressa”.

 

Jornalista


Na fila pra vacina


Vivemos, para além de uma recente crise sanitária, uma velha crise de valores.


“Afinal, é o jeitinho português que pode mais do que o engenho humano. Tem-se a sensação ao olhar para Portugal de um país inteiro que se vai arranjando, que se desenrasca e ajeita conforme as circunstâncias, metendo cunhas e dando toques, tapando buracos e fazendo habilidades”

Miguel Esteves Cardoso

 

Foi sem surpresa que se foram conhecendo os casos de pessoas vacinadas sem constarem das listas de prioridades, invocando os mais diferentes argumentos.

Normalmente, tratou-se de cidadãos com cargos que não ultrapassaram a presidência de câmara (que se saiba) e que revelaram a tendência nacional para o desenrasca e, sobretudo, para o egoísmo e a mesquinhez.

O chico-espertismo é uma instituição nacional!

É a passagem à frente numa fila organizada, a cunha para um emprego ou a fuga aos impostos. Salvaguardando a gravidade de cada caso, o que interessa é que cada um, à sua maneira, se desenrasque.

Somos um povo de desenrascados, pouco dado a exercícios de planeamento a médio ou a longo prazo. O que interessa é o momento e, quando acontecer, logo se vê.

Por isso, é cada um por si. Se posso safar-me, safo-me.

A nossa ancestral indisciplina coletiva é o reflexo disso mesmo.

Assim, pensaram os chicos-espertos, para que hei de esperar pela minha vez para ser vacinado se tenho poder, ou ocasião, para passar à frente dos outros? E se assim pensaram, melhor o fizeram.

Tudo normal, portanto, no país onde os maus exemplos vêm de cima. Que moral têm os responsáveis políticos para criticar estas ultrapassagens quando muitos deles cometem infrações éticas maiores?

Vivemos, pois, para além de uma recente crise sanitária, uma velha crise de valores.

Valha-nos, no entanto, esse espírito tão português de resolver situações difíceis, inesperadas, porque não planeadas convenientemente.

Se assim não fosse, como conseguiriam os profissionais de saúde combater esta pandemia? Se não fosse esse espírito tão português de fazer das fraquezas forças e de inventar muitas vezes soluções para resolver a falta de meios?

Estamos, pois, na fila pra vacina. A maioria espera pela sua vez, de forma ordeira. Uns tantos fintam a fila e chegam-se à frente.

Uma excelente metáfora sobre a nossa vida em sociedade.

Tinha razão José Saramago:

“Este país (Portugal) preocupa-me, este país dói-me. E aflige-me a apatia, aflige-me a indiferença, aflige-me o egoísmo profundo em que esta sociedade vive. De vez em quando, como somos um povo de fogos de palha, ardemos muito, mas queimamos depressa”.

 

Jornalista