O direito criminal como óleo de fígado de bacalhau


De há uns tempos a esta parte, o direito criminal serve entre nós para quase tudo.


Quando eu era miúdo, já lá vão para cima de 40 anos, o óleo de fígado de bacalhau estava na moda e era bom para quase tudo. Sabia mal, mas pais e avós davam uma colher regularmente, porque se achava que fazia muito bem. Fortificava, nutria, enchia o corpo de vitaminas, defendia contra doenças, et cetera. Era um mar de virtudes em cada colher. E, mesmo que assim não fosse, o que não mata sempre engorda. E a miudagem engolia, com má cara mas sentido de obrigação e de respeito perante quem sabia mais e lhe metia a colher na boca, com autoridade e amoroso cuidado. Creio que passou de moda o óleo extraído do fiel amigo, mas não faltam por aí panaceias universais (passe a redundância). Uma delas é o direito criminal, que de há uns tempos a esta parte serve entre nós para quase tudo e que é chamado, em colheradas amorosas, de cada vez que há qualquer coisa. Dói-lhe, grita, estrebucha, arrepia-se, tosse, incha, sangra, sufoca ou simplesmente está indisposto? Tome uma colherada de direito criminal e vai ver que faz bem. Há exemplos que nunca mais acabam. Na semana que está prestes a findar, dois chamaram-me a atenção. A bandeira nacional como pano para limpezas e os desvios ao plano de vacinação contra o SARS-CoV-2.

O que eu me podia ter rido – mas não, porque, como diria o outro, se não fosse trágico seria cómico – com as notícias sobre a detenção de um indivíduo que estava em limpezas usando a verde-rubra como acessório. Crime de ultraje à bandeira nacional. Ora, sim senhor, uma coisa gravíssima. Detenção e possível crime. Tenham paciência, não só o tipo criminal que a lei prevê é algo serôdio e tem que se lhe diga e questione como também exige um conjunto de elementos objetivos e subjetivos que se não bastam com a simples utilização do pano sem colocar a mão sobre o coração e os olhos em alvo.

Por outro lado, o que por aí vai de apelos à investigação criminal e ao crime no caso da alegada inclusão indevida de pessoas no grupo de prioritários a vacinar – uma questão relevante, sem dúvida, lamentável e grave (agora sem nenhuma ironia). Mas não é isso que está em causa, o que está em causa é a banalização do direito criminal. Pois entre a censurabilidade destas condutas e a gritaria criminal vai um passo grande. Melhor, vão dois. Um que diz que não basta enunciar nomes de crimes (e já ouvi cada coisa…, quase só falta homicídio) e já está. Outro que diz que o direito criminal não é a primeira solução para as coisas, é a última. Nem tudo o que não é legal, ou é irregular, ou não é ético é necessariamente crime.

Mas, para não haver confusões nem suspeitas de sobranceria ou umbiguismo, diga-se que ouço e leio com atenção e respeito as opiniões contrárias – mesmo que saiba mal a colherada milagrosa; ou mesmo que tenha de “aceitar” a mais descarada hipocrisia, como sobre um outro tema desta semana (que fica para outras núpcias, mas não perde pela demora). Ouço e leio, mas não concordo. Peço desculpa. E não é má recordação nem embirração com o óleo de fígado de bacalhau. Aliás, o que não mata, dizem que engorda. O problema, depois, é a possível obesidade.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira

O direito criminal como óleo de fígado de bacalhau


De há uns tempos a esta parte, o direito criminal serve entre nós para quase tudo.


Quando eu era miúdo, já lá vão para cima de 40 anos, o óleo de fígado de bacalhau estava na moda e era bom para quase tudo. Sabia mal, mas pais e avós davam uma colher regularmente, porque se achava que fazia muito bem. Fortificava, nutria, enchia o corpo de vitaminas, defendia contra doenças, et cetera. Era um mar de virtudes em cada colher. E, mesmo que assim não fosse, o que não mata sempre engorda. E a miudagem engolia, com má cara mas sentido de obrigação e de respeito perante quem sabia mais e lhe metia a colher na boca, com autoridade e amoroso cuidado. Creio que passou de moda o óleo extraído do fiel amigo, mas não faltam por aí panaceias universais (passe a redundância). Uma delas é o direito criminal, que de há uns tempos a esta parte serve entre nós para quase tudo e que é chamado, em colheradas amorosas, de cada vez que há qualquer coisa. Dói-lhe, grita, estrebucha, arrepia-se, tosse, incha, sangra, sufoca ou simplesmente está indisposto? Tome uma colherada de direito criminal e vai ver que faz bem. Há exemplos que nunca mais acabam. Na semana que está prestes a findar, dois chamaram-me a atenção. A bandeira nacional como pano para limpezas e os desvios ao plano de vacinação contra o SARS-CoV-2.

O que eu me podia ter rido – mas não, porque, como diria o outro, se não fosse trágico seria cómico – com as notícias sobre a detenção de um indivíduo que estava em limpezas usando a verde-rubra como acessório. Crime de ultraje à bandeira nacional. Ora, sim senhor, uma coisa gravíssima. Detenção e possível crime. Tenham paciência, não só o tipo criminal que a lei prevê é algo serôdio e tem que se lhe diga e questione como também exige um conjunto de elementos objetivos e subjetivos que se não bastam com a simples utilização do pano sem colocar a mão sobre o coração e os olhos em alvo.

Por outro lado, o que por aí vai de apelos à investigação criminal e ao crime no caso da alegada inclusão indevida de pessoas no grupo de prioritários a vacinar – uma questão relevante, sem dúvida, lamentável e grave (agora sem nenhuma ironia). Mas não é isso que está em causa, o que está em causa é a banalização do direito criminal. Pois entre a censurabilidade destas condutas e a gritaria criminal vai um passo grande. Melhor, vão dois. Um que diz que não basta enunciar nomes de crimes (e já ouvi cada coisa…, quase só falta homicídio) e já está. Outro que diz que o direito criminal não é a primeira solução para as coisas, é a última. Nem tudo o que não é legal, ou é irregular, ou não é ético é necessariamente crime.

Mas, para não haver confusões nem suspeitas de sobranceria ou umbiguismo, diga-se que ouço e leio com atenção e respeito as opiniões contrárias – mesmo que saiba mal a colherada milagrosa; ou mesmo que tenha de “aceitar” a mais descarada hipocrisia, como sobre um outro tema desta semana (que fica para outras núpcias, mas não perde pela demora). Ouço e leio, mas não concordo. Peço desculpa. E não é má recordação nem embirração com o óleo de fígado de bacalhau. Aliás, o que não mata, dizem que engorda. O problema, depois, é a possível obesidade.

Escreve quinzenalmente à sexta-feira