Mortalidade. O triste jogo dos números

Mortalidade. O triste jogo dos números


A covid-19 deixou marcas profundas em todo o mundo. Organização Mundial da Saúde estima que o excesso de mortalidade associado ao coronavírus seja de 14,9 milhões de pessoas nos dois anos e dois meses que durou a pandemia. Só que ficou muito por contar.


Não existe uma estatística perfeita para comparar os surtos nos diferentes países, mas é um facto que teve um peso significativo no número de óbitos a partir de 2020. Na conta da Organização Mundial de Saúde (OMS) foram registados 777 milhões de casos e mais de sete milhões de mortes (7.088.744) por covid-19 em todo o mundo, embora a própria agência reconheça que a dinâmica da epidemia causou um número real de mortes até três vezes superior ao estimado, podendo ultrapassar os 20 milhões de mortos. O estudo realizado pela revista The Lancet vai no mesmo sentido “as estatísticas oficiais sobre o número de mortes por covid-19 dão uma imagem parcial da mortalidade”, disseram os seus responsáveis. Segundo esse estudo, o excesso de mortalidade foi de 120 mortes por 100.000 habitantes em todo o mundo, e, em 21 países, a taxa foi de 300 mortes em excesso por 100.000 habitantes.

Relativamente ao excesso de mortalidade nos dois anos e dois meses que durou a pandemia, os dados indicam que morreram aproximadamente 14,9 milhões pessoas em todo o mundo. Nesse período, a covid-19 converteu-se rapidamente uma das principais causadas de morte, foi a terceira causa de mortalidade em 2020 e a segunda em 2021. O excesso de mortalidade é a diferença entre o número de mortes notificadas durante um determinado período e o número de mortes esperado durante esse mesmo período como se não existisse pandemia. Outro estudo realizado por investigadores do The Economist indica que, até agosto de 2024, morreram 27 milhões de pessoas em todo o mundo.

Falhas na saúde

A crise pandémica teve um impacto brutal na saúde pública e serviu de alerta para a necessidade de os países investirem em sistemas de saúde mais fortes e capazes de responder eficazmente em alturas de crise como aconteceu durante esta pandemia. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral desse organismo, referiu que: “A OMS está empenhada em trabalhar com todos os países a fim de fortalecer os seus sistemas de informação e gerar dados melhores para obter melhores decisões e resultados».

Importa dizer que o excesso de mortalidade está diretamente associado a quem contraiu o coronavírus e, de forma indireta, ao impacto que a doença teve nos sistemas de saúde e na sociedade. Muitas pessoas não tiveram acesso à prevenção e tratamento porque os sistemas de saúde estavam sobrecarregados, em todos os países faltavam camas de hospital, técnicos de saúde, equipamentos e muitas consultas foram adiadas. As imagens aterradoras dos hospitais a colapsar em países desenvolvidos como a Espanha, Itália, Inglaterra deixam muito que pensar sobre a forma como a saúde (não) estava a ser tratada.

Nem todos sofreram da mesma maneira. Cerca de 84% das mortes em excesso aconteceram no sudeste asiático (seis milhões), Europa (3,2 milhões) e Américas (3,2 milhões), e 68% dessas mortes registaram-se em apenas 10 países. Um dado curioso é que 53% dos 14,9 milhões de mortes em excesso verificaram-se em países considerados mais pobres. Ainda segundo a OMS, registou-se mais mortes no sexo masculino (57%) do que no sexo feminino (43%) e entre pessoas de idade mais avançada. É com base nestes valores que podemos entender o impacto da pandemia a nível mundial, mas isso não significa que esteja aí toda a verdade. Samira Asma, diretora adjunta de Dados, Análise e Distribuição da OMS, tocou num ponto importante “devido aos investimentos limitados em sistemas de dados em muitos países, a verdadeira extensão do excesso de mortalidade permanece oculta”, disse.

Além disso, o receio que a população tinha de ser infetada levou à diminuição da procura de consultas de acompanhamento para doenças crónicas, realização de menos exames de rastreio e, consequentemente, e menos diagnósticos, adiamento de cirurgias e procura tardia de cuidados de saúde que eram urgentes. Ainda assim, a OMS e o Departamento de Assuntos Económicos e Sociais das Nações Unidas desenvolveram uma metodologia inovadora para gerar estimativas de mortalidade comparáveis, mesmo quando os dados estão incompletos ou indisponíveis. Usando essa metodologia, os países podem usar os seus próprios dados para atualizar suas estimativas e calcular o excesso de mortalidade.

Passados cinco anos do anúncio do primeiro caso de covid-19 em Wuhan, na China, as diferentes variantes do coronavírus são menos letais e o número de mortos à escala mundial baixou drasticamente, mas mantém em alerta a OMS. Esta instituição registou três milhões de casos em todo o mundo e 70 mil mortes o ano passado. A diretora técnica para Preparação e Prevenção de Epidemias e Pandemias da OMS, Maria Van Kerkhove, afirmou que a covid-19 segue “bastante presente entre nós, e que o vírus circula atualmente em todos os países”.

Outro aspeto interessante neste período tem a ver com a percentagem de pessoas que morreram em casa em 32 países durante a pandemia. Os dados dos locais de óbito dos dois primeiros anos da pandemia foram comparados com os dados dos oito anos anteriores à pandemia (2012-2019) e constatou-se que a percentagem de mortes no domicílio aumentou para 30,2% (+ 2,1%), isso aconteceu pela falta de recursos adequados para cuidados paliativos. Este é outro dado pode contribuir para definir estratégias e políticas de saúde para pessoas em fim de vida.

Covid-19 em Portugal

A 2 de março de 2020, Portugal ficou em alerta máximo com a divulgação dos dois primeiros casos de covid-19 registados no Norte, foi o início de um período de medo e incerteza. Apesar das medidas restritivas e do confinamento imposto à população para impedir a propagação da doença, os dados da Direção-Geral da Saúde indicam que foram registados mais de 5,6 milhões de infeções (5.671.116), ou seja, 53% da população contraiu o coronavírus e morreram 29.108 pessoas. Um estudo do Instituto Ricardo Jorge refere que nos dois primeiros dois anos de pandemia (março de 2020 a dezembro de 2021) registaram-se cerca de 19 mil mortes em excesso em Portugal. A região de Lisboa e Vale do Tejo foi a que teve maior número de óbitos em excesso motivados pela covid-19, concretamente 9.484 (82%). Nos primeiros dois anos da crise pandémica, a idade média das vítimas era de 81,4 anos. O paciente mais novo que morreu de covid-19 tinha 40 anos, ao passo que o mais velho tinha 102. Cerca de 84% dos óbitos aconteceu em meio hospitalar e mais de 40% das pessoas tinham outras patologias associadas. O ano de 2020 foi o que registou mais mortes em Portugal desde 1960. Morreram 123.358 pessoas, ou seja, mais 11.565 óbitos do que no ano anterior, sendo que 6.972 estavam infetadas que o vírus SARS-CoV-2 (60,4%). Em 2021, registaram-se 125.032 óbitos em Portugal, verificando-se uma subida expressiva da mortalidade com o aparecimento da nova variante Alpha com 12.004 pessoas infetadas pelos vírus pandémico, só no dia 27 de janeiro registaram-se 700 mortes em Portugal, sendo 303 por covid-19.

De acordo com o estudo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, nos dois primeiros anos de pandemia morreram mais 646 pessoas (+ 40%) por diabetes do que o esperado. Ainda segundo este instituto, morreram por doenças cardiovasculares 832 pessoas (+ 18%), este excesso de mortalidade foi atribuído ao covid-19. Tendo em conta as características da população portuguesa, os grupos etários mais idosos e as pessoas com doenças crónicas foram os mais afetados.

O coronavírus que paralisou Portugal evoluiu e é agora menos mortífero como explicou o investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, Miguel Castanho. “O SARS-CoV-2 tem demonstrado uma notável capacidade de adaptação. Neste sentido, surgiram rapidamente variantes durante a pandemia. Felizmente, acabou por acontecer o que é mais comum, que é a evolução dos vírus para formas menos letais”, afirmou.