Reflexão sobre dias sem fim


Impunha a sensatez que os cidadãos se unissem para oferecer luta sem tréguas à pandemia. A triste verdade é que esta parece ser uma empreitada coletiva para além das nossas capacidades.


Passou mais uma semana com Portugal a figurar no topo da lista onde ninguém quer estar. Continuamos a ser o país do mundo com mais infetados e mais mortos por milhão de habitantes. Centenas de mortos, dia após dia, semana após semana. Portugal é país sem tempo. Para planear, para prever, para antecipar, para cuidar. A urgência está transformada em modo de vida. Falta tempo até para lembrar com dignidade os que partiram. A nossa memória coletiva das vítimas tem a efemeridade da abertura de um telejornal. Maldito seja este vírus.

Estamos em guerra contra um inimigo cobarde, invisível, matreiro, assassino. Impunha a sensatez que os cidadãos se unissem para lhe oferecer luta sem tréguas. Muitos de nós desejaram que na multiplicidade do indivíduo encontrássemos a força de um só corpo para arrumar de vez esta pandemia. Suspendendo os egoísmos; pausando as ideologias; congelando os divisionismos estéreis. Colocando a responsabilidade e a liberdade no lugar da obediência acéfala, e a crítica racional no lugar do radicalismo tático.

A verdade, a triste verdade, é que esta parece ser uma empreitada coletiva para além das nossas capacidades.

O Parlamento, o primeiro lugar onde deveria ser cerzida a unidade nacional – uma verdadeira federação de ideias diferentes mas convergentes, e não aquela “unidade nacional” socialista, trapaceira, plástica, que não é nada mais do que a vontade expressa do partido do Governo –, é o primeiro a escarafunchar as feridas da ideologia.

Quando vivemos o peso dos dias em que morrem pessoas como nunca, sobretudo entre os nossos mais idosos, os mais fragilizados socialmente, o Parlamento acha oportuno votar a eutanásia. Quando os médicos nas urgências já vivem o drama de ter de escolher quem assistem para salvar vidas, os nossos partidos exercitam agendas pintadas de vanguarda e modernidade que nada mais mostram do que as cores da insensibilidade, da perversidade e da pobreza moral. Refugiem-se os senhores deputados nos legalismos e nos articulados que quiserem: não há uma única razão política – é de política que se trata, no fim de contas – para legislar sobre a morte quando tantos lutam até à exaustão pela vida e quando é sobre os mais velhos e os mais fracos que a ameaça pandémica mais se faz sentir. A culpa da debilidade das nossas instituições políticas não está nos populismos – está dentro de portas.

Nestes dias sem fim, a pandemia da mediocridade revelou-se igualmente em todo o seu esplendor nos “jeitinhos” que foram dados ao plano de vacinação. Depois do descalabro do planeamento da segunda e da terceira vaga da pandemia, o país precisava de restaurar a confiança. Precisava que algo corresse bem. O plano de vacinação era essa oportunidade para restaurar a credibilidade do Estado. Depois de uma primeira fase em que muitos desconfiaram da cura, depressa se percebeu que a vacina era eficaz. A corrida por esse bem escasso começava aí. Quando a oferta é curta e a procura muita, os trastes, os oportunistas e os cobardes esbracejam. O que lhes falta em coragem sobra-lhes em vontade de desertar. Mais tarde ou mais cedo, eles vêm ao de cima. São o azeite que se distingue bem da água.

Sem qualquer preocupação pelo outro, indiferentes ao ataque violento da pandemia aos seus concidadãos mais velhos ou mais doentes, na falta de princípios e de escrúpulos, explorando os buracos no planeamento, vimos desfilar a miséria disfarçada de gente.

Nestes dias sem fim, que não falte força à lei para punir os infratores nem vontade ao prof. Francisco Ramos e à sua equipa para melhorar continuamente o nosso plano de vacinação. Quanto a nós, em Cascais, trabalharemos com a saúde pública para que não se desperdice nem uma dose de vacina nem um segundo disponível. Como em Israel, o país mais bem-sucedido na vacinação (acaba de alcançar a imunidade de grupo), estamos a preparar uma forte campanha de informação pública e grandes centros de vacinação, pelo menos em quatro pontos do concelho, virando do avesso pavilhões desportivos e grandes espaços. Quanto mais descentralizado for o processo, mais rapidamente conseguimos imunizar a nossa população. Assim haja vacinas. Assim haja sistemas de partilha de informação integrados que permitam a rápida mobilização das pessoas.

Temos tanto por fazer para vencer a pandemia. E, infelizmente, amarrados aos egoísmos e ideologias inconsequentes, a vontade de o fazermos juntos é constantemente minada.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira