Quando violar o confinamento é a regra e não a exceção

Quando violar o confinamento é a regra e não a exceção


O Governo impôs o dever geral de confinamento domiciliário com algumas exceções. No entanto, as festas ilegais que têm ocorrido não são uma delas.


Qual Lei Seca nos anos 20 e 30 da década de XX, nos EUA, a proibição de ajuntamentos, promulgada pelo Governo, tem sido ignorada por alguns portugueses. Realizadas com um pretexto – aniversário ou casamento, por exemplo – ou simplesmente por pura diversão, as festas ilegais parecem proliferar num país que soma um total acumulado de 13.017 vítimas mortais e 731.861 infetados.

 “A minha grande indignação é que sabemos que isto está mau para toda a gente, as pessoas precisam de sobreviver, é uma verdade”, começou por contar Mariana (nome fictício), que prefere não revelar a identidade por temer represálias. “Mas aquilo que me deixa frustrada é o facto de quem cumpre as regras, fica em casa a ver pessoas em festas como se nada fosse, como se não vivêssemos uma pandemia”, desabafou a mulher que trabalha na indústria da diversão noturna.

“Não há fiscalização. A marca para a qual trabalho fez uma festa online, de cem pessoas, por exemplo. Não tenho nada contra as festas, mas, quando deparo com certas imagens, penso que se tratam de festas como aquelas que aconteciam antes do coronavírus ter surgido”, confessou Mariana, que denunciou a ocorrência de eventos em bares e espaços culturais no Cais do Sodré, em Alcântara, em Marvila e na Margem Sul, nas primeiras semanas de janeiro.

“Eu conheço toda a gente. Já aconteceu falar com pessoas que estão nessas festas e que me dizem ‘Eu por acaso entrei de máscara, mas…’ Quando os vídeos surgem nas redes sociais, faço uma espécie de jogo com os meus amigos e o meu companheiro e digo ‘Encontrem uma máscara nos vídeos’”, narrou, considerando que quem frequenta estes eventos “não tem noção da gravidade da doença quando esta não toca à sua porta”.

“Não quero fazer queixinhas, muitos são meus amigos, mas faz-me confusão como é que andam em festas. Eu não lhes quero mal nenhum”.

“Há locais onde existem festas todos os dias. É normal que, ao nível de ruído, não haja nenhuma queixa em espaços localizados em zonas industriais, imaginemos, mas os clientes estão lá, sem preocupação, sem uma única máscara”, avançou.

“Esta gente que vai a estas festas, em restaurantes, bares ou em casas privadas, está a marimbar-se para tudo o resto. Quer álcool e diversão”, explicou a trabalhadora que vive em regime de layoff há quase um ano e sente na pele as consequências económicas da pandemia de coronavírus. “Dizem que estão de máscara, mas as imagens dizem o contrário. Eu dei por mim a falar com o meu companheiro e a pensar que tem de haver dinheiro a passar por fora, as chamadas luvas. Se assim não for, por que raio as autoridades não intervêm nestes casos?”, questionou.

As declarações de Mariana prendem-se com situações como aquela que foi identificada num restaurante ilegal, em Camarate, no passado dia 23 de janeiro, que foi fiscalizado. Sabe-se que os clientes que se encontravam no interior do estabelecimento fugiram por um túnel de escoamento de águas pluviais, que desagua num afluente do Rio Trancão, sendo que a PSP teve de chamar os bombeiros para retirar os homens, que acabaram molhados e autuados.

Por outro lado, nesta segunda-feira, a PSP de Lagos fiscalizou um estabelecimento de restauração e bebidas após várias denúncias de que estaria a servir refeições à porta fechada. Assim, no âmbito da ação, foram instaurados 11 autos de contraordenação, ao restaurante, assim como aos 10 clientes apanhados em violação das regras do estado de emergência em vigor.

“O ambiente, por norma, é péssimo em todos estes sítios. Não faço isto para denunciar ninguém, mas sim como cidadã. Tenho medo de ir ao supermercado e cruzar-me com uma destas pessoas, por exemplo”, revelou a funcionária que tem conhecimento da existência do grupo “Tudo Anónimos”, no Facebook, que contava com 869 membros à data de fecho desta reportagem. “Começou por ser uma espécie de grupo para recordar os velhos tempos, mas começou a chegar mais gente que partilha os crimes que comete”.

 

Agente da PSP celebrou aniversário com amigos

Francisco Serafim tem 25 anos e é formado pela Escola de Hotelaria de Lisboa. O jovem tenta “aguentar o barco” e manter um negócio de pé e desenvolver outro, que se baseia na criação de um restaurante cem por cento sustentável.

Respeitando as medidas da DGS, em vigor desde o passado dia 15 de janeiro, inclusivamente aquela que indica que os estabelecimentos de restauração e similares devem funcionar exclusivamente para entrega ao domicílio ou take-away, sente-se profundamente revoltado com as situações às quais têm assistido via redes sociais.

“Tenho conhecimento das festas ilegais desde que um amigo meu alugou uma casa no Airbnb para o efeito. Depois disso, ele parou, mas fiquei chocado ao ter conhecimento de festas como aquela que foi levada a cabo pelo Henrique Sadio”, constatou o antigo funcionário do bar Ferroviário, em Lisboa.

Naquilo que diz respeito ao evento promovido pelo agente da PSP da esquadra do Estoril, modelo e fotógrafo, o rapaz é assertivo. “Percebi a anormalidade que ali se passava, até porque mandou convites por escrito”, afirmou, referindo-se ao seguinte texto enviado pelo homem aos amigos e conhecidos: “Esta quinta, dia 28, faço anos e pelas 17h vou fazer um convívio apenas para aqueles que mais me são chegados e com quem mais tenho convivido ultimamente. Será um plano um pouco mais tranquilo do que o habitual, mas com boa música e muito boa disposição! A um dia de semana às 17h, porquê? Porque não há praticamente nenhum controlo nas estradas e todos ficamos mais à vontade. Para o regresso, na altura, explicarei. Terás de levar uma garrafa de álcool à tua escolha e também um snack/alimento para juntar tudo e fazer uma espécie de brunch para termos sempre o que comer, isto porque não há hora prevista para terminar. O local será revelado pela hora de almoço do próprio dia, mas adianto já que fica nas imediações de uma das últimas saídas da A5 (Cascais). Por razões óbvias este convívio tem número limitado de pessoas, por isso, agradeço que me confirmes a tua presença o quanto antes”.

“Conheço essa malta toda e, a partir do momento em que comecei a denunciar isto, muita gente começou a enviar-me mensagens e também ameaças”, explicou Francisco, adiantando que foi contactado por um dos melhores amigos de Henrique Sadio – que impediu a receção de novas mensagens no Instagram –, às quais o i teve acesso. “Meu filha da puta, queres conversa, vem falar na cara, cabrão. Fica esperto. Boneco sem vida do car… Só não te esqueças da minha cara. Banana. Só te falta a maquilhagem. Mas nós temos patrocinadores. Vamos levar-te o pequeno-almoço à cama”.

Segundo um comunicado da PSP, com o título “Participação de Polícia em festa com incumprimento das medidas COVID”, emitido na segunda-feira, é possível entender que o Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, através da Divisão Policial de Cascais, no dia 29 de janeiro, “após ter conhecimento de um vídeo que circulava nas redes sociais, onde havia suspeita da participação de um Agente, pertencente ao seu efetivo, numa festa onde participavam várias pessoas, sem máscara e sem manter a distância recomendada, determinou de imediato a realização de diligências a fim de apurar a veracidade de tais factos, vindo a identificar o Agente que promoveu o evento, o qual, prontamente, confirmou tratar-se da festa do seu aniversário realizada na noite anterior”.

Deste modo, “na sequência do que foi apurado, foi ainda no dia 29 de janeiro, determinada a instauração de procedimento disciplinar ao referido Agente”.

 

“Sabes lá tu se aqui não estão só pessoas imunes ao vírus”

Um dos motivos pelos quais os vídeos da festa de aniversário de Henrique Sadio geraram polémica prendeu-se com a presença da data e da hora de captação no canto inferior esquerdo de algumas imagens publicadas por uma adolescente, Ana (nome fictício).

De acordo com mensagens trocadas, no Instagram, entre Ana e a sua amiga Sara (nome fictício), a primeira tentou justificar-se. “Por amor da santa. Meu Deus do céu. Mete-te na tua vida. Sabes lá tu se aqui não estão só pessoas imunes ao vírus. Ou até vacinadas… só médicos aqui”, sendo que, para a mãe de Ana, trata-se de ”conversas de 16 anos”.

“Falei agora com a Ana (nome fictício). Ela meteu esse vídeo, mas não é de ontem. A data foi posta de propósito porque o amigo fez anos e ela mandou os parabéns. Sabes perfeitamente que dá para fazer datas e tudo. Ela agora cumpre o confinamento. Isso garanto porque estou em casa por isolamento profilático. Ela esteve em casaa e está em casa! Vídeos com data não dizem nada! Ela está em casa!”, foi esta uma das mensagens enviada pela progenitora de Ana a Sara.

“Não tinha nenhuma festa ontem. A_Ana tem avó. Está em risco. Essa festa não é de ontem! Ela esteve em casa!”, insistiu a mulher nas comunicações via WhatsApp a que o i teve acesso, levadas a cabo na passada sexta-feira, um dia depois da realização do evento.

 

“Isto não é uma anarquia, é uma democracia”

Segundo o Executivo, o dever geral de recolhimento domiciliário aplica-se a todo o território nacional exceto para um conjunto de deslocações autorizadas, como a aquisição de bens e serviços essenciais, desempenho de atividades profissionais – quando não haja lugar a teletrabalho – ou o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais e outros.

Ao visualizar os vídeos partilhados por uma jovem, onde esta se encontra num veículo em andamento com amigos e é vociferado “Fod…, a mim ninguém me obriga a ficar em casa. António Costa, vai para o car…”, tendo sido identificado o perfil do primeiro-ministro nas Instastories, seguido de imagens de bebidas alcoólicas com a localização “Onde a inveja não localiza”, Francisco continuou sem adotar uma postura passiva e agiu.

Assim, deparou com ameaças de um homem, que não concordou com a criação da conta @festivalcovid, no Instagram, onde o gerente hoteleiro veicula conteúdos que encontra em contas pessoais de quem participa nestes eventos. “Olha oh filho da ganda puta, tem cuidado com o que publicas, podes vir a ficar sem cabelo e a pagar coisas que um dia te vais arrepender, apaga isso pela tua rica saúde”, pode ler-se.

A alegada organizadora do evento não ficou em silêncio. “Quem és tu para estares a publicar isso sem a minha autorização, direitos de autor! E para já isso é antigo! Só me dá pena pessoas como tu para ganharem seguidores! Não tenho que te mostrar nada! Só espero que apagues isso pelo teu bem!”, enviou a Francisco.

“Isto não é uma anarquia, é uma democracia. Há leis, temos de as respeitar. Nem um pedido de desculpas fazem, deviam ter dois dedos de testa. E já que são influencers e tudo o mais, deviam perceber que erraram e que estamos sempre a aprender. Ao invés de arranjarem uma ponte com os media, fogem”, expressou o jovem para quem a ocorrência de ajuntamentos em pleno confinamento “envolve a política, pois mostra a falta de respeito que as pessoas e as autoridades têm perante o Governo”.

“Devia ser levantado um auto, saber-se quem organizou a festa e quem lá estava. E deviam ser multados, todos os participantes. Se as caras são identificadas, se há vídeos e fotos, as autoridades têm de mostrar à sociedade que isto não pode acontecer”, finalizou.

 

“As festas ilegais acabam por tornar-se no modelo de desobediência”

João Sedas Nunes é docente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e considera que não pode ser categórico naquilo que diz respeito a uma análise das festas ilegais. “Serão as festas ilegais assim tão generalizadas? Que se sabe delas e dos seus participantes, afinal?”, questionou sociólogo.

“Tenho muito receio de generalizações a partir de casos que, por muita visibilidade e eco mediático-político que possam revestir, em bom rigor não é improvável que sejam pouco mais que esporádicos. Servirão por isso narrativas ‘ideológicas’ bem estabelecidas e codificadas – por exemplo, a das penitências políticas que não passam sem registo de culpados (o Governo, os portugueses, o povo, etc.) e pouco mais”, esclareceu, acrescentando que estas narrativas fundamentalmente políticas “passam por dizer que os portugueses e o Governo é que são os maus da fita, criando uma espécie de disputa”.

Na ótica de Sedas Nunes, que estuda, entre outros, a Sociologia da Juventude e também a da Educação, não podemos esquecer “as reuniões de tipo familiar que ocorreram e continuam a ocorrer de forma mais ou menos clandestina”, sendo que “as festas ilegais acabam por tornar-se no modelo de desobediência” e, “do ponto de vista da circulação do vírus, assumem menos importância do que o modo como as redes familiares continuam a funcionar”, ressalvando, porém, “que tudo isto é impressivo”.

“A bolha familiar abre constantemente fissuras, nunca veda plenamente. E não me parece que sejam só jovens a desrespeitar as regras impostas”, avançou, clarificando igualmente que acredita numa lógica económica, por um lado, deste desrespeito pelas ordens. “Há dados, estudos feitos, sobre a importância da economia clandestina em Portugal. É muito significativa, imaginemos esta gente a ficar subitamente sem rendimentos. Portanto, resistem. Se tivesse de explorar hipótese, iria mais por aí, do que pensar em gente mal intencionada que quer desobedecer”, realçou, reconhecendo, no entanto, a existência de “nichos”.

“O cansaço de estar em casa é uma espécie de eufemismo. O que está muito comprometido é o convívio que não é devidamente recompensado pela via virtual”, disse, continuando: “O cansaço por se estar impossibilitado de participar nas redes de amizade, de estar mais em presença dos pais e de outros familiares, vivendo relações mis estruturadas por hierarquia e poder, mais restritivas”, salientou.

“Assim, os jovens expressam que não querem estar sempre nestes circuitos. É isso que sugerem os dados que conhecemos relativos ao modo como os jovens se relacionam uns com os outros e outras gerações”, explicou. “E quando existe a generalização, a hiperbolização, dá-se uma espécie de encenação provocada pela acusação, os jovens pensam ‘Vamos corresponder às vossas expectativas’.