O apoio que a Câmara de Lisboa concedeu a uma associação de solidariedade social no âmbito de um projeto para albergar pessoas em situação de sem-abrigo tem vindo a suscitar discussão no seio da autarquia e dúvidas colocadas até por outras entidades congéneres que também atuam na cidade.
Em causa está um contrato assinado entre a autarquia e a AVA – Associação Vida Autónoma, que prevê o pagamento de 146 mil euros por um período de 12 meses pelo alojamento solidário de 25 pessoas em quartos individuais, duplos e de casal. Feitas as contas, a Câmara de Lisboa vai pagar 486 euros por mês por quarto individual e 972 euros por quarto duplo, com um máximo diário de até 16 euros por utente – valores que são superiores aos preços praticados atualmente no mercado de arrendamento na capital.
A este facto somam-se ainda interrogações sobre as próprias origens da associação. À data do acordo, a AVA – Associação Vida Autónoma não possuía qualquer historial de trabalho realizado no terreno junto de pessoas em situação de sem-abrigo, em Lisboa ou em qualquer outra localidade.
A questão foi levantada pela primeira vez pelo vereador do CDS-PP, Nuno Correia da Silva, na reunião pública da Câmara de Lisboa de 28 de outubro. Nuno Correia da Silva questionou Manuel Grilo, vereador do Bloco de Esquerda (partido que tem um acordo de governação com o PS no município) e que tem o pelouro da Educação e dos Direitos Sociais, sobre os contornos do acordo. Manuel Grilo confirmou, na altura, o apoio de 146 mil euros, cedido em três tranches distintas: 87 600 euros em 2020, 43 800 euros em 2021 e 14 600 euros em 2022. E esclareceu que “a AVA – Associação Vida Autónoma é uma associação que se destacou da ACA – Associação Conversa Amiga e que nos apresentou esta proposta de alternativa”. “Conhecemos algumas das pessoas que estão nesta associação e que têm historial no apoio a pessoas em situação de sem-abrigo”, acrescentou.
A ACA – Associação Conversa Amiga, mencionada por Manuel Grilo, foi, no entanto, lesta a reagir e a desmentir categoricamente a informação avançada pelo vereador: “Desconhecemos realmente quem é a AVA – Associação Vida Autónoma, como foi realizado este contrato com a Câmara de Lisboa e que proposta foi apresentada. Não existe nenhuma associação ‘destacada’ da ACA – Associação Conversa Amiga nem sabemos o que isso significa”. Em comunicado publicado na sua página oficial, os responsáveis desta associação foram ainda mais longe, acusando Manuel Grilo de ter utilizado “o nome da ACA – Associação Conversa Amiga, a sua longa e vasta experiência, para justificar a escolha” de uma entidade com “falta de experiência”. “Não é normal que uma associação sem historial realize contratos, muito menos de valores tão significativos como os que estão em causa, e sem consulta pública. A ACA – Associação Conversa Amiga apresentou propostas de projeto de alojamento, no seguimento da experiência que já detém nesse tipo de projeto, porém sem resposta da vereação, o que ainda causa mais estranheza neste contrato”, lê-se ainda na nota.
A AVA – Associação Vida Autónoma apenas tem atividade pública conhecida desde junho do ano passado, quando, em parceria, participou na elaboração de um plano de contingência para a criação de quatro respostas de alojamento provisório para indivíduos sem teto no âmbito da pandemia (e que ficaram localizadas no pavilhão do Casal Vistoso, pavilhão da Tapadinha, Casa do Lago e Clube Nacional de Natação).
Perante estes factos, o i contactou Manuel Grilo, que esclareceu por escrito que a AVA – Associação Vida Autónoma “apresentou à Câmara de Lisboa o projeto ‘Residência Solidária de Lisboa’, que tem como objetivo disponibilizar a pessoas em situação de sem-abrigo alojamento solidário, com condições condignas de habitabilidade, acompanhamento psicossocial de proximidade e supervisão técnica permanente”. O projeto “prevê uma abordagem holística da intervenção com a pessoa em situação de sem-abrigo, concretizando-se na construção do plano individual de intervenção, que incluirá diferentes dimensões, nomeadamente acompanhamento psicossocial, integração na comunidade, desenvolvimento de competências pessoais e sociais, procura ativa de emprego e/ou formação profissional, sendo o objetivo final a integração em mercado de trabalho e a autonomização”, referiu.
Manuel Grilo acrescentou ainda que o projeto se encontra “devidamente enquadrado nas políticas públicas” definidas a nível europeu (Estratégia Europa 2020), nacional (Estratégia Nacional de Intervenção para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo 2017/2023) e local (Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-Abrigo 2019/2023). No âmbito do plano municipal, o acordo “vem responder a uma necessidade concreta e plasmada no mesmo” que passa por “aumentar e reestruturar as respostas existentes, considerando a continuidade da avaliação, de forma a redimensionar os equipamentos e a criar novas soluções ajustadas às realidades”, concluiu o vereador. Questionado sobre o conteúdo do comunicado publicado pela ACA – Associação Conversa Amiga, e que desmente as suas afirmações na reunião da autarquia, Manuel Grilo optou por não tecer quaisquer comentários.
Contactado pelo i, o vereador Nuno Correia da Silva voltou a reafirmar “estranheza” perante toda esta situação e “pela forma como este acordo foi contratualizado”.
Leia o artigo completo na edição impressa do jornal i. Agora também pode receber o jornal em casa ou subscrever a nossa assinatura digital.