Claude Brasseur.  O ator que pôde ser

Claude Brasseur. O ator que pôde ser


Interpretou mais de uma centena de papéis ao longo de seis décadas de carreira. De Godard a comédias de sucesso, protagonizou também o filme que Fernando Lopes adaptou de Tabucchi. Claude Brasseur morreu ontem, aos 84 anos.


Em 1993, Fernando Lopes estreava o mais internacional dos seus filmes até então. Era uma coprodução entre Portugal, França, Espanha e Alemanha, em duas versões: uma francesa, outra portuguesa, juntando Claude Brasseur, Andréa Ferréol e Ana Padrão nos papéis principais. A voz dele, Claude Brasseur, não nos chegaria nessa versão nacional, em que o dobrou Joaquim de Almeida. Depois de um menos bem-sucedido Matar Saudades (1988), um “filme de argumento”, como o descreveu, o autor de Belarmino lançar-se-ia na adaptação de O Fio do Horizonte, de Antonio Tabucchi, num filme homónimo. Génova substituída por Lisboa para um Spino, o protagonista da história num papel entregue a Brasseur – Spino, que na morgue onde trabalha se depara com um cadáver que chega a meio da noite e se parece com ele.

Por essa altura levava já Brasseur uma carreira de quatro décadas na representação. Pela frente teria ainda dezenas de outros papéis, até ao derradeiro, em Tout le monde debout (2018), uma comédia de Franck Dubosc. Três anos antes estreara-se naquele que ficou como o seu último papel de protagonista: Henri Voizot, na comédia dramática de Ivan Calbérac L’étudiante et Monsieur Henri (2015). Entre o teatro, onde começou, o cinema e a televisão, que o popularizou junto dos franceses, interpretou mais de uma centena de papéis. Mas sempre “modesto, discreto”, como o descrevia o jornal francês Le Monde ontem, quando foi notícia a sua morte. “Claude Brasseur morreu hoje [terça-feira] em paz e serenidade, rodeado da sua família”, anunciou a nota enviada pela sua agente, Elisabeth Tanner, à AFP. Não divulgando a causa da morte, aos 84 anos, assinalava não estar relacionada com a covid-19. “Claude Brasseur será enterrado em Paris, de acordo com as regras sanitárias, e irá descansar ao lado de seu pai no cemitério Père-Lachaise”. O pai era o também ator Pierre Brasseur. Como fora já o seu avô, além de cantor, Jules Brasseur, e era a sua mãe, Odette Joyeux.

“Não gosto de falar sobre mim”, dizia em Brasseur Père et fils: Maison fondée en 1820, o seu livro de memórias, editado em 2014 pela Merci!, Flammarion.

“Não é um assunto interessante. O trabalho de uma vida consiste em definir a fronteira entre o que se quer e o que se pode”. Para ele, o ator era “um artesão pertencente a um coletivo”.

Nascido em Neuilly-sur-Seine, a oeste de Paris, a 15 de junho de 1936, numa família de atores, Claude Pierre Espinasse cresceu rodeado de figuras como Malraux, Jouvet e Sartre, que frequentavam a sua casa. Entre eles contava-se também Ernest Hemingway, seu padrinho. Mas desses dias de infância que durariam pouco (os pais separam-se cedo) não guardava o ator grandes recordações. “Não tenho nenhuma recordação da vida com eles e devo dizer que não me importo”, escreveu sobre esse tempo nas suas memórias.

Depois de uma frequência escolar conturbada, os contactos do pai ajudaram-no a arranjar trabalho como assistente do fotógrafo Walter Carone na Paris Match. E foi num trabalho para a revista, uma entrevista à atriz franco-romena Elvire Popesco, que a sua vida mudou. Terá sido ela a dizer-lhe, quando aí se conheceram: “Não podes continuar a ser jornalista com um nome desses. Tens de ser ator”.

Então à frente do Théâtre de Paris, arranjou-lhe um trabalho de três papéis em Judas, de Marcel Pagnol. Estava-se no ano de 1955. Depressa ingressou no conservatório e chegou ao cinema. Começou por uma pequena participação em Rencontre à Paris, de Georges Lampin. Mais de uma dezena de papéis depois, seria Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard, o filme em que começaria a fazer-se notar. Interpretou aí Arthur, ao lado de Anna Karina, no papel de Odile, e Sami Frey (Franz).

Em seis décadas de carreira atravessou gerações do cinema francês. Em Olhos Sem Rosto, de Georges Franju, contracenou com o seu pai, Pierre. Participou em Uma Mulher sem Freio, de Roger Vadim, Escândalo de Primeira Página, de André Téchiné, e em vários filmes da nouvelle vague francesa. Além de Bando à Parte, destaca-se também a sua participação em Uma Bela Rapariga, de François Truffaut. Ao lado de Sophie Marceau protagonizou François Beretton na comédia de culto da década de 1980, sucesso de bilheteira à época, La Boum, de Claude Pinoteau. Grande parte dos seus últimos trabalhos foram nesse género. Mas não era apenas um ator de comédia Claude Brasseur, que chegou também a fazer carreira como copiloto no Paris-Dakar, ao lado de Jacky Ickx, seis vezes vencedor das 24 Horas de Le Mans.

Em 1977 foi distinguido com o César de Melhor Ator Secundário pelo seu desempenho na comédia As Belas Mulheres dos Outros e, três anos depois, o de Melhor Ator por Guerra entre Polícias. Sobre as suas qualidades enquanto ator, disse um dia Godard ter a inocência das crianças que “brincam com berlindes ou às guerras”. Ou seja: “Tanto a brutalidade necessária quanto a franqueza suficiente”.