Homeniuk


O caso só terá resposta digna se todos percebermos, quanto a tudo (incluindo cada um de nós), porque  não foi possível evitá-lo e, depois de acontecida a tragédia, porque não tirámos todas as conclusões mais cedo.


Na plasticidade que têm as línguas vivas, seria compreensível que, se incorporássemos na nossa língua a palavra ucraniana “homeniuk”, ela significasse no nosso léxico não um nome, mas “vergonha” em forma especialmente intensa: “vergonha colossal”, “vergonha abominável”. 

O acontecido com Ihor Homeniuk nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa não tem desculpa, nem sequer explicação possível. Como pode um cidadão pacífico ser objecto daquela violência brutal em Portugal por parte de agentes da autoridade pública? É inteiramente inexplicável, senão por barbaridade e selvajaria. Não havia sequer contexto infeliz, pois Ihor não constituía ameaça nem para pessoas, nem para o Estado.

Nós, portugueses, sentimo-nos, em geral, profundamente envergonhados por esta desgraça que mancha o bom nome de Portugal e dos portugueses. É bom que o sintamos e façamos bom uso desse sentimento agudo. Nomeadamente, quanto ao Ministério da Administração Interna e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Curiosamente, não é só a covid-19 que está na segunda vaga. O caso Homeniuk teve uma primeira vaga em Março/Abril, quando aconteceu; e, nas últimas semanas, uma segunda vaga, quando cresceu de novo e ressoou com estrondo. Importa reexaminar tudo, a fim de agirmos com certeza e com justiça, que é o que mais importa exigir.

Nesta altura, é geral a reclamação da cabeça do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, exigindo-se-lhe responsabilidade política. A reclamação é geral por parte de comentadores e dos partidos da oposição – com excepção do PCP, se levarmos a sério a consideração recente de Jerónimo de Sousa de os comunistas serem da “oposição”. A reclamação é inteiramente normal, primeiro, face à gravidade do caso; segundo, no quadro político habitual das relações oposição/Governo; e, terceiro, tendo em conta que a responsabilidade política não traduz necessariamente qualquer culpa do ministro, mas constitui uma forma de virar a página, ou de fazer o luto em casos terríveis, ou de desanuviar o ambiente para permitir seguir em frente, sem amarras e embaraços perturbadores.

Enfim, o tom da reclamação subiu até ao tecto com a deplorável conferência de imprensa do ministro à saída do Conselho de Ministros de 10 de Dezembro, em que se desdobrou em desabafos ridículos e caricatos.

Esta reclamação mantém-se em cima da mesa. Mas o ministro Eduardo Cabrita pode ter virado a mesa a seu favor com a última comparência perante a comissão parlamentar, no princípio desta semana. Ouvi com atenção a sua intervenção inicial e inteirei-me do rescaldo no final. Creio que prestou informação objectiva – embora talvez incompleta – sobre os vários momentos do caso e as intervenções no âmbito do MAI, desde o assassinato cruel de Ihor Homeniuk, em 12 de Março, até agora. E, no final da audição, embora algumas questões possam ter ficado por responder, todos os partidos prescindiram da segunda ronda de perguntas, o que costuma indicar satisfação.

Há dois aspectos que é essencial ter presentes para não errarmos a pontaria: enganarmo-nos de objecto e falharmos o alvo fundamental. O essencial neste caso não é a demissão do ministro Cabrita, por muito que apeteça ou ele se ponha a jeito. E o essencial do caso também não é a reforma do SEF, por muito que fosse já necessária e deva ser feita. O essencial deste caso é justiça para Ihor Homeniuk, isto é: julgamento e punição dos responsáveis; reparação cabal à família da vítima; averiguação e determinação completa de todos os aspectos ocorridos, por forma a garantir que, no SEF ou noutro organismo qualquer, jamais virá a repetir-se brutalidade deste jaez por parte de agentes do Estado.

Cabrita pode demitir-se, mas isso não resolve o problema. O SEF pode ser reformado, mas isso também não resolve o problema. Por muito importante que seja o debate da reforma do SEF – e é-o –, é evidente que a reforma prevista e em discussão não visava impedir agressões atrozes como as ocorridas no aeroporto. Isso já era impossível de conceber-se que acontecesse, fosse qual fosse a estrutura orgânica e funcional.

Foquemo-nos em Homeniuk, para vacinarmos de vez o Estado e todos nós contra tamanha desumanidade. Temos de apresentar e conhecer, com objectividade, rigor e completude, a fita do tempo quanto ao caso Homeniuk: quando aconteceu, quando se soube, o que foi determinado e o que foi feito por parte de quem. Só isto permitirá delimitar e repartir culpas e responsabilidades por actos e omissões de cada um. E aprender bem a lição.

Tal como ouvi há dias a Pedro Norton, na RTP1, eu também me sinto responsável, na modéstia da minha posição, por não ter levantado a voz logo em Abril, quando se soube que Ihor fora assassinado por inspectores do SEF. Não tenho explicação para isso. Pode ter sido por causa do ambiente covid ou por confiar apenas na justiça, uma vez que os suspeitos já estavam detidos. A verdade é que estou muito mais indignado nesta segunda vaga do caso do que aquando da primeira, quando tudo realmente aconteceu e o essencial logo se soube para poder ser escavado à minúcia. Não consigo explicar a diferença da minha emoção, nem a indignação ao retardador. E gostaria de entender.

O mesmo tem de ser visto, tintim por tintim, quanto ao MAI, ao SEF, à PJ, ao Ministério Público, ao INEM, a outras entidades que contactaram com o caso. Mas também quanto à Assembleia da República, ao Presidente da República, aos partidos parlamentares, à comunicação social e sua atenção, à opinião pública e à cidadania. Quem fez o quê e quando? E quem não fez e porquê? 

Temos de ver se houve falhas de Estado e se o sistema político esteve à altura ou não. Por exemplo, num Parlamento que vota várias condenações a violações dos direitos humanos em diversas partes do mundo, porque nada foi feito quanto a Ihor, em Lisboa (nem sequer um minuto de silêncio)? Importa entender porque, num vasto vale de vários meses, o plenário nunca se ocupou do caso por um dos vários instrumentos regimentais disponíveis: debate de urgência, debate de actualidade, debate temático ou interpelação ao Governo. E a comunicação social também deveria examinar-se. Venha a fita do tempo, para entendermos os actos e as nossas omissões.

Homeniuk tem a ver com todos e cada um de nós. É uma vergonha tão esmagadora e tão vexante sobre Portugal que cada um tem de fazer a própria catarse. Ninguém deverá entrincheirar-se nos biombos do pugilato político nem nos labirintos decisores das reestruturações. O caso só terá resposta digna se todos percebermos, quanto a tudo (incluindo cada um de nós), porque não foi possível evitá-lo e, depois de acontecida a tragédia, porque não tirámos todas as conclusões mais cedo.

Além disso, saibamos apresentar a nossa mágoa, a nossa solidariedade e as nossas condolências a todos os ucranianos que vivem e trabalham entre nós. Certamente, muito sofreram e sofrem com esta violência intolerável.

Desculpem-nos.

Advogado
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Homeniuk


O caso só terá resposta digna se todos percebermos, quanto a tudo (incluindo cada um de nós), porque  não foi possível evitá-lo e, depois de acontecida a tragédia, porque não tirámos todas as conclusões mais cedo.


Na plasticidade que têm as línguas vivas, seria compreensível que, se incorporássemos na nossa língua a palavra ucraniana “homeniuk”, ela significasse no nosso léxico não um nome, mas “vergonha” em forma especialmente intensa: “vergonha colossal”, “vergonha abominável”. 

O acontecido com Ihor Homeniuk nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa não tem desculpa, nem sequer explicação possível. Como pode um cidadão pacífico ser objecto daquela violência brutal em Portugal por parte de agentes da autoridade pública? É inteiramente inexplicável, senão por barbaridade e selvajaria. Não havia sequer contexto infeliz, pois Ihor não constituía ameaça nem para pessoas, nem para o Estado.

Nós, portugueses, sentimo-nos, em geral, profundamente envergonhados por esta desgraça que mancha o bom nome de Portugal e dos portugueses. É bom que o sintamos e façamos bom uso desse sentimento agudo. Nomeadamente, quanto ao Ministério da Administração Interna e ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Curiosamente, não é só a covid-19 que está na segunda vaga. O caso Homeniuk teve uma primeira vaga em Março/Abril, quando aconteceu; e, nas últimas semanas, uma segunda vaga, quando cresceu de novo e ressoou com estrondo. Importa reexaminar tudo, a fim de agirmos com certeza e com justiça, que é o que mais importa exigir.

Nesta altura, é geral a reclamação da cabeça do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, exigindo-se-lhe responsabilidade política. A reclamação é geral por parte de comentadores e dos partidos da oposição – com excepção do PCP, se levarmos a sério a consideração recente de Jerónimo de Sousa de os comunistas serem da “oposição”. A reclamação é inteiramente normal, primeiro, face à gravidade do caso; segundo, no quadro político habitual das relações oposição/Governo; e, terceiro, tendo em conta que a responsabilidade política não traduz necessariamente qualquer culpa do ministro, mas constitui uma forma de virar a página, ou de fazer o luto em casos terríveis, ou de desanuviar o ambiente para permitir seguir em frente, sem amarras e embaraços perturbadores.

Enfim, o tom da reclamação subiu até ao tecto com a deplorável conferência de imprensa do ministro à saída do Conselho de Ministros de 10 de Dezembro, em que se desdobrou em desabafos ridículos e caricatos.

Esta reclamação mantém-se em cima da mesa. Mas o ministro Eduardo Cabrita pode ter virado a mesa a seu favor com a última comparência perante a comissão parlamentar, no princípio desta semana. Ouvi com atenção a sua intervenção inicial e inteirei-me do rescaldo no final. Creio que prestou informação objectiva – embora talvez incompleta – sobre os vários momentos do caso e as intervenções no âmbito do MAI, desde o assassinato cruel de Ihor Homeniuk, em 12 de Março, até agora. E, no final da audição, embora algumas questões possam ter ficado por responder, todos os partidos prescindiram da segunda ronda de perguntas, o que costuma indicar satisfação.

Há dois aspectos que é essencial ter presentes para não errarmos a pontaria: enganarmo-nos de objecto e falharmos o alvo fundamental. O essencial neste caso não é a demissão do ministro Cabrita, por muito que apeteça ou ele se ponha a jeito. E o essencial do caso também não é a reforma do SEF, por muito que fosse já necessária e deva ser feita. O essencial deste caso é justiça para Ihor Homeniuk, isto é: julgamento e punição dos responsáveis; reparação cabal à família da vítima; averiguação e determinação completa de todos os aspectos ocorridos, por forma a garantir que, no SEF ou noutro organismo qualquer, jamais virá a repetir-se brutalidade deste jaez por parte de agentes do Estado.

Cabrita pode demitir-se, mas isso não resolve o problema. O SEF pode ser reformado, mas isso também não resolve o problema. Por muito importante que seja o debate da reforma do SEF – e é-o –, é evidente que a reforma prevista e em discussão não visava impedir agressões atrozes como as ocorridas no aeroporto. Isso já era impossível de conceber-se que acontecesse, fosse qual fosse a estrutura orgânica e funcional.

Foquemo-nos em Homeniuk, para vacinarmos de vez o Estado e todos nós contra tamanha desumanidade. Temos de apresentar e conhecer, com objectividade, rigor e completude, a fita do tempo quanto ao caso Homeniuk: quando aconteceu, quando se soube, o que foi determinado e o que foi feito por parte de quem. Só isto permitirá delimitar e repartir culpas e responsabilidades por actos e omissões de cada um. E aprender bem a lição.

Tal como ouvi há dias a Pedro Norton, na RTP1, eu também me sinto responsável, na modéstia da minha posição, por não ter levantado a voz logo em Abril, quando se soube que Ihor fora assassinado por inspectores do SEF. Não tenho explicação para isso. Pode ter sido por causa do ambiente covid ou por confiar apenas na justiça, uma vez que os suspeitos já estavam detidos. A verdade é que estou muito mais indignado nesta segunda vaga do caso do que aquando da primeira, quando tudo realmente aconteceu e o essencial logo se soube para poder ser escavado à minúcia. Não consigo explicar a diferença da minha emoção, nem a indignação ao retardador. E gostaria de entender.

O mesmo tem de ser visto, tintim por tintim, quanto ao MAI, ao SEF, à PJ, ao Ministério Público, ao INEM, a outras entidades que contactaram com o caso. Mas também quanto à Assembleia da República, ao Presidente da República, aos partidos parlamentares, à comunicação social e sua atenção, à opinião pública e à cidadania. Quem fez o quê e quando? E quem não fez e porquê? 

Temos de ver se houve falhas de Estado e se o sistema político esteve à altura ou não. Por exemplo, num Parlamento que vota várias condenações a violações dos direitos humanos em diversas partes do mundo, porque nada foi feito quanto a Ihor, em Lisboa (nem sequer um minuto de silêncio)? Importa entender porque, num vasto vale de vários meses, o plenário nunca se ocupou do caso por um dos vários instrumentos regimentais disponíveis: debate de urgência, debate de actualidade, debate temático ou interpelação ao Governo. E a comunicação social também deveria examinar-se. Venha a fita do tempo, para entendermos os actos e as nossas omissões.

Homeniuk tem a ver com todos e cada um de nós. É uma vergonha tão esmagadora e tão vexante sobre Portugal que cada um tem de fazer a própria catarse. Ninguém deverá entrincheirar-se nos biombos do pugilato político nem nos labirintos decisores das reestruturações. O caso só terá resposta digna se todos percebermos, quanto a tudo (incluindo cada um de nós), porque não foi possível evitá-lo e, depois de acontecida a tragédia, porque não tirámos todas as conclusões mais cedo.

Além disso, saibamos apresentar a nossa mágoa, a nossa solidariedade e as nossas condolências a todos os ucranianos que vivem e trabalham entre nós. Certamente, muito sofreram e sofrem com esta violência intolerável.

Desculpem-nos.

Advogado
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990