Hóquei no gelo. O lado negro da Liga canadiana

Hóquei no gelo. O lado negro da Liga canadiana


Mais de uma dezena de ex-jogadores de hóquei no gelo denunciaram agressões sexuais e violência física que os rookies da liga canadiana sofreram às mão de alguns veteranos, com a conivência de treinadores e dirigentes da federação da modalidade.


O universo desportivo voltou a ser abalado por novo escândalo sexual. Esta quinta-feira ficou a saber-se que mais de uma dezena de antigos jogadores da Liga canadiana de hóquei no gelo (CHL), com idades entre 27 e 57 anos, entraram com uma queixa conjunta no Supremo Tribunal de Ontário por abuso e assédio que os rookies [jogadores do primeiro ano na modalidade] sofreram durante décadas (entre 1970 e 2014) às mãos de veteranos, e com a conivência de treinadores e dirigentes da federação da modalidade à época.

De acordo com o canal canadiano TSN, os antigos jogadores Dan Carcillo e Garrett Taylor denunciaram, em junho de 2020, a CHL por “perpetuar um ambiente tóxico que tolera conduta violenta, discriminatória, racista, sexualizada e homofóbica, incluindo agressão física e sexual, a jogadores menores”.

Aos depoimentos destes dois antigos jogadores, juntaram-se entretanto as confissões de mais 12 ex-atletas, fazendo seguir agora o caso para tribunal.

Apesar da identidade da maioria dos jogadores não ser revelada, Doug Smith, rookie em 1979/80, e Fred Ledlin, que marcou presença no campeonato canadiano entre 1980 e 1984, são mais dois rostos a dar a cara e a relatar alguns dos abusos físicos e psicológicos sofridos. “Estava no balneário, apanharam-me e vendaram-me os olhos. Os jogadores mais velhos seguraram-me, amarraram e tiraram-me as roupas. Estava nu. Raparam-me os genitais. Bateram-me. Foi assustador e extremamente doloroso”, revelou Smith, que jogou pelo Ottawa 67 na CHL entre 1979 e 1982.

“Ser um jogador de primeiro ano era como estar na linha da frente de uma guerra, em que se é o alvo, disparavam e não tens onde te esconder”, acrescentou.

A lista de atrocidades descritas é um verdadeiro murro no estômago, e inclui também sexo forçado com prostitutas diante dos restantes membros da equipa, atletas que defecavam no balneário, obrigando os mais novos a lutar entre si com os dejetos, ou o autocarro do terror – com os rookies a serem obrigados a andarem todos nus no veículo que transportava a equipa nas deslocações para os jogos da Liga. “Eu não culpo os jogadores mais velhos. Eles não sabiam mais do que aquilo. Não havia ninguém que os detivesse. Os jogadores estavam inteiramente por sua conta. Tínhamos de governar o nosso mundo. Quando eu jogava na Liga do Ontário, parecia algo relativamente normal e aceite”, afirmou um ex-jogador que alinhou no campeonato regional (entre 1992 e 1995), citado pela Sports Illustrated.

A Liga Canadiana de Hóquei no Gelo foi lesta a reagir e informou estar a concluir uma investigação sobre os episódios em causa. Acrescentou ainda que os factos relatados não refletem a experiência atual dos jogadores presentes no CHL: “A maioria das alegações são de natureza histórica e acreditamos que não são indicativas das experiências dos atuais jogadores da Liga Canadiana de hóquei no gelo”, disse o organismo, em comunicado, citado pelo TSN.

Modalidades denunciam abusos Os abusos agora tornados públicos no campeonato canadiano de hóquei no gelo juntam-se a uma lista negra que conta já com várias denuncias em outras modalidades. Há quatro anos, mais de 300 ginastas norte-americanas, com idades compreendidas entre os seis e 20 anos, sofreram abusos sexuais por parte dos seus treinadores e outros adultos com quem mantinham contacto na modalidade. Na sequência das queixas-crime apresentadas, o antigo médico da seleção de ginástica dos Estados Unidos Larry Nassar foi condenado a três penas, a última entre 40 a 125 anos de prisão por ter abusado de três jovens. À data, mais de 150 mulheres acusaram o médico de abuso sexual, entre as quais a campeã olímpica Simone Biles.

Aquele que continua a ser considerado o maior escândalo no universo desportivo norte-americano levou também a uma tomada de consciência a nível internacional sobre um tema até então tabu.

Desde 2016 que viriam a surgir múltiplas denúncias do género, também noutros áreas da sociedade, com um dos casos mais divulgados relacionado com a indústria cinematográfica em Hollywood, com o Movimento Me Too, que desde 2017 luta contra o assédio e agressão sexual no setor.