Gitanjali Rao e a juventude submetida ao racionalismo dos velhos

Gitanjali Rao e a juventude submetida ao racionalismo dos velhos


Este ano, pela primeira vez, a revista Time elegeu a “Miuda do Ano”, uma adolescente que nasceu em Denver, Colorado (EUA), e que, com apenas 15 anos, tem usado as novas tecnologias para combater problemas como o da água potável contaminada, a crise de opiáceos e o cyberbullying.


Quando se sabe que um determinado processo entrou em colapso ou decadência é naquela altura em que nos damos conta de que aquilo que antes surgia naturalmente, despontava de forma espontânea, passou a precisar de ser estimulado e produzido artificialmente. Este modo de definhamento tem vindo a ocorrer ligado a uma série de fenómenos, começando desde logo com a diversidade da vida no planeta, mas não é o problema do declínio da população da abelha selvagem que nos deve preocupar, mas também, entre nós, o desaparecimento dessa forma de génio a que Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, num dezembro há 136 anos, chamaram “a dourada abelha da fantasia”, essa que rasga o seu caminho, regressando a cada primavera, num zumbido que se torna reconfortante ouvir de longe a longe, para produzir o seu mel em contraste com “a região dura das coisas exactas, entristecedora e mesquinha, onde, em lugar do esplendor dos heroísmos e da beleza das paixões, só há a pequenez dos caracteres e a miséria dos sentimentos”. Mas do que estamos a falar? Pois, da juventude. Essa força natural que antes tinha os seus próprios meios, ainda que misteriosos, inescrutáveis, de afirmação, e que hoje parece subjugada, chegando-se ao ponto de, nas artes como em tantos outros regimes da nossa sociedade, se impor constantemente essa pergunta: onde estão os novos, o que é feito da regeneração necessária a que de longe a longe sejamos todos tocados pelo “sobressalto de uma aventura”?

Basta pensar em como o problema se põe hoje de tal forma que são necessárias campanhas nacionais de perseguição de talentos, nos laboratórios do optimismo, onde toda a comunicação é gizada com vista a acalmar os nervos, reconfortar as almas, e continuar a anestesiar-nos no modelo do consumo exacerbado, a última grande ideia veio da revista Time, a qual, diante de um horizonte de expectativas e uma terra do futuro que parece sob ataque, que por todos os lados se dissolve e afunda, resolveu apropriar-se desse campo de formulações imprevisíveis e fazer da ideia de juventude uma escola de prodígios, promovendo novos ídolos. Assim, pela primeira vez, este ano a revista norte-americana quis celebrar a “Miúda do Ano”, e a distinção recaiu sobre Gitanjali Rao, uma cientista que, com apenas 15 anos assume um desses perfis inatacáveis, o de uma figura-modelo, estando a promover o uso de novas tecnologias para a criação de dispositivos com vista a solucionar problemas que vão desde a contaminação de água potável e o diagnóstico precoce da dependência de opiáceos, até uma ferramenta para ajudar os mais jovens a abster-se de publicar comentários ou conteúdos ofensivos e que possam gerar cyberbullying, passando ainda por programas de mentoria e workshops de inovação em que ajuda jovens por todo o mundo a focarem as suas energias criativas na solução dos problemas que estão ao seu alcance solucionar. 

À primeira vista, a iniciativa da Time parece à prova de bala, revestida por uma película que condensa as aspirações pela mudança e a crença num mundo melhor, e, no entanto, nesta fórmula não deixa de ser possível reconhecer um elemento de organização não do pessimismo mas de um idealismo postiço, como se em vez de uma revolução, bastassem uma série de acções de boa-vontade para alterar a trajectória desastrosa em que o mundo está lançado, com um custo incalculável para as novas gerações. E, neste ponto, vale a pena lembrar as palavras da dupla de antigos amigos que assinaram “As Farpas” e o romance “O Mistério da Estrada de Sintra”, tendo num posfácio à reedição deste lembrado que “a indisciplina dos novos, a sua rebelde força de resistência às correntes da tradição, é indispensável para a revivescência da invenção e do poder criativo”. Ora, já nesses dias, aqueles dois pressentiam esta forma de desmobilização geral, a qual os levou a dizer que “a geração que chega faz-nos o efeito de sair velha do berço”, passando pelos dias de muletas. Em vez de ser inventiva, audaz, revolucionária, destruidora de ídolos, parecia-lhes cautelosa, insegura em tudo, curvada de mais diante das gerações anteriores.

Pela nossa parte, podíamos simplesmente colaborar. Participar nessa corrente que hoje domina o jornalismo, em que menos do que pensar a informação, assumir um ponto de vista crítico, tudo recai em categorias complacentes, e o bem e o mal já não se contaminam nem confundem. Podíamos simplesmente reproduzir o perfil da adolescente prodígio que parece até ansiosa diante de tantas oportunidades para resolver os problemas de um mundo a cair literalmente aos bocados. Mas depois lembramo-nos que há palavras mais jovens, apreensões mais firmes que nos chegam até do além. “Aos vinte anos é preciso que alguém seja estroina, nem sempre talvez para que o mundo progrida, mas ao menos para que o mundo se agite. Para se ser ponderado, correcto e imóvel há tempo de sobra na velhice”, escreviam Eça e Ramalho, firmando uma útil lição de independência.

Quer isto dizer que não merece ser reconhecido o génio da “Miúda do Ano”? Não. O seu percurso e os tantos feitos são realmente atordoantes. Mais do que uma precoce mente genial, Gitanjali Rao parece ter desde cedo procurado empenhar-se no tipo de descobertas que podem contribuir decisivamente para melhorar a vida de populações desfavorecidas. Tinha apenas 10 anos quando disse aos pais que queria participar num programa do laboratório Denver Water que analisa a qualidade da água, ajudando a criar um novo dispositivo baseado em sensores de nanotubos de carbono, o Tethys (que inclui tecnologia Bluetooth, um processador e uma bateria de nove volts), e que detecta e comunica os níveis de chumbo na água potável. E aquilo que capturou a sua atenção não é muito diferente dessa seriedade absoluta que levou Greta Thunberg (distinguida pela Time como “Pessoa do Ano” em 2019) a um desespero tal que deixou de comunicar, depois de ter descoberto pelas notícias que a nossa sociedade enfrenta hoje uma crise existencial, relacionada com as alterações climáticas, e que, apesar do alargado consenso da comunidade científicas sobre os desastres que nos aguardam, a elite financeira e política tem promovido cimeiras de boa-vontade mas resiste a actuar de forma decisiva para alterar o rumo dos eventos. No caso de Gitanjali Rao, a sua mensagem parece, para já, bem mais fácil de acolher, pois em vez de exigir mudanças drásticas, a sua abordagem vem no sentido de não espicaçar a besta, deixá-la estar no seu sono devastador, revolvendo-se em fantasias fúteis nos seus sonhos, enquanto deste lado, a cada dia as notícias dão conta de novas linhas vermelhas que estamos a ultrapassar, numa altura em que o abismo deixou de ser um “se” e tornou-se meramente um “quando”. 

As notícias que capturaram a atenção de Gitanjali Rao prendiam-se com a crise de saúde pública na cidade de Flint, no Michigan, que começou em 2014, com a comunidade daquela pequena cidade a ver-se obrigada a montar uma campanha de guerra contra as autoridades que recusaram todos os testemunhos de que a população estava a sofrer os efeitos de contaminação pelo chumbo na água potável. Desde então, e em consequência do dispositivo que ajudou a criar, Gitanjali foi galardoada com o Discovery Education 3M Young Scientist Challenge, em 2017, tendo recebido 25 mil dólares pela sua invenção. No ano seguinte, a Agência de Protecção Ambiental norte-americana atribui-lhe o Prémio Ambiental Juvenil, e com todos os investimentos que o seu projecto atraiu, hoje a jovem cientista diz estar perto de apresentar um protótipo que poderá ser comercializado a baixo custo e que espera que venha a ter um impacto decisivo nos países do terceiro mundo.

Em 2019, a Forbes tinha reconhecido já Gitanjali na sua lista do Top 30, e no passado dia 3 de dezembro foi a vez da Time apostar tudo na adolescente, tendo-a selecionado entre cinco mil nomeados nos EUA, reduzindo depois a lista a cinco finalistas. No anúncio do prémio, a prestigiada revista justificou a sua escolha pela motivação desta “miúda”, que a leva a focar-se em inovações científicas cujo impacto seja sentido por aqueles que tendem a ser esquecidos, por esse sofrimento que não costuma ser dado como prioritário.

O anúncio da distinção foi feito sob a forma de uma entrevista, conduzida por Angelina Jolie através do Zoom, que além de actriz galardoada com um Óscar, é embaixadora da Boa Vontade da Agência de Refugiados da ONU, o que em si mesmo nos diz muito sobre as regras do jogo, sobre a lógica do mediatismo, desta sociedade do espectáculo, que prefere que as más notícias lhe sejam dadas pelas figuras públicas e ídolos. Num pacto que tem algo de faustiano, por sua vez, estas estrelas patrocinam causas humanitárias, procurando virar a atenção do público, que normalmente prefere a perspectiva do voyeur sobre os aspectos das suas vidas privadas, e nisto mesmo se inscreve a noção de que não parece haver verdadeira esperança de redenção. Por mais boa vontade que haja, um público atraído por simulacros e representações, acabará sempre por buscar apenas os aspectos que o comovem o suficiente para derramar algumas lágrimas antes de alhear-se inteiramente do assunto. Entretanto, a própria juventude, a quem cabia em tempos a missão de revirar profundamente a sua época, atingi-la nos seus pudores, denunciar as suas pretensas boas intenções bem como os seus álibis, vê-se ela mesma um campo de batalha, ficando claro como Gitanjali Rao é o anjo convencional, aquele que intercede por nós face à fúria de Deus, ao passo que Greta Thunberg é uma espécie de anjo negro, aquela que simboliza verdadeiramente o repúdio da juventude pelo convencional engagement político e, que revela ainda uma inspiração anarquista e romântica. O perigo é que se celebre uma contra a outra. A esperança contra esse vigor desesperançado, que em vez de nos confortar vira sobre nós o seu olhar recriminador, o terrível olhar de um anjo siderado pelo espectáculo calamitoso da história a amontoar os seus destroços a seus pés – segundo a visão proposta por Walter Benjamin. De algum modo, o que aqui está em causa, nesta contradição formulada de forma maliciosa pelos media, é um ataque à mobilização que corporiza uma “metafísica da juventude”, a qual, de acordo com Benjamin, nasce de um despertar, enraíza-se sob a forma de uma consciência trágica, e vê-a como uma insurreição que faz renascer das cinzas essa categoria ética e do “espírito” que nos nossos dias foi completamente abolida, ficando em seu lugar a farsa de um positivismo que apenas exprime o racionalismo dos velhos. Por isso, como entre nós tem denunciado António Guerreiro, “já não há uma vida dos estudantes e até a vida da infância está a desaparecer”. Para este crítico da cultura, a tarefa política mais urgente nos nossos dias “seria a criação de movimentos de juventude para recusar com veemência a mutilação e a instrumentalização a que os jovens estão submetidos”.