A grande coligação geracional


Um país de e com valores não pode simplesmente ignorar que privar os idosos do convívio com os seus filhos, netos e bisnetos é uma condenação antecipada à morte.


Começou ontem uma nova era no combate à covid-19. Chamaram-lhe o “dia V”. Margaret Keenan, uma avó de Coventry com quase 91 anos, entrou para a história como a primeira pessoa do mundo a receber a vacina contra o maldito vírus que virou as nossas vidas de pernas para o ar no último ano.

Independentemente da nossa bandeira, da nossa identidade, devemos celebrar o dia 8 de dezembro no que ele representa de melhor: a esperança da humanidade numa viragem rumo à vitória da ciência e da civilização sobre o medo e a escuridão pandémica.

Que o êxito dos britânicos seja o primeiro de muitos sucessos de todos os povos do mundo contra a covid-19.

Que seja uma idosa a estar no topo das notícias em todo o planeta e no centro deste esforço coletivo mundial é muito significativo. Recorda-nos o nosso dever, enquanto sociedade, de cuidar daqueles que um dia cuidaram de nós e que construíram os pilares da liberdade e da prosperidade de que hoje usufruímos. Retenhamos que uma comunidade sem memória, sem gratidão, sem afeto para com os mais idosos é uma comunidade de indiferença, de atomismo, de desumanidade. É a comunidade que tem em si as sementes da sua própria destruição. Os nossos pais, avós e já muitos bisavós foram os mais massacrados por esta crise de saúde pública. Primeiro, pelo vírus, depois, pelo afastamento social e, por fim, pelas draconianas medidas de isolamento a que foram condenados.

E isso leva-me ao tema da semana passada. Antevi que o Governo iria enfrentar um ciclo de decisões difíceis: renovar o estado de emergência, apresentar o plano de vacinação e definir as condições para as famílias se reunirem no Natal. Foram dias importantes para a credibilidade das instituições e das lideranças políticas nacionais envolvidas no combate à pandemia. Os portugueses não tolerariam mais erros de comunicação. Perderiam a paciência para regras com mais exceções do que as letras do abecedário. Era também uma semana em que o Governo mostraria ser ou não ser capaz de mobilizar os portugueses. Era preciso devolver aos cidadãos a confiança que estes têm (apesar de tudo) colocado nas emanações do Conselho de Ministros. Se o povo tem confiado em quem governa, este era o tempo de o Governo mostrar que confia nos cidadãos. E confiou.

Ultrapassado esse calendário de decisões que marcarão o nosso dia-a-dia até 2021, o equilíbrio de medidas e o compromisso alcançado é globalmente positivo – indo, aliás, ao encontro de algumas das reflexões que deixei nestas páginas.

Sinal menos, porém, para o total esquecimento dos nossos idosos. Uma sociedade decente não pode conformar-se com um cruzar de braços. Um país de e com valores não pode simplesmente ignorar que privar os idosos do convívio com os seus filhos, netos e bisnetos é uma condenação antecipada à morte. Se já nem a família, o que mais lhes resta? Perguntemo-nos honestamente: isto é o melhor que conseguimos fazer?

Mandamos homens à Lua e ao fundo do mar, desenvolvemos algoritmos ultrapotentes e inteligência artificial, e não somos capazes de arranjar uma maneira segura de os avós verem os seus netos? Nem por uma vez? Nem no Natal?

Isto é mesmo o melhor que conseguimos fazer?

Perdoem-me a franqueza, mas isto é a negação da nossa arte e do nosso engenho. É a supressão da humanidade. Podemos e temos o dever moral de fazer melhor do que isto.

Em Cascais não nos resignaremos a esta tristíssima realidade. É por isso que estamos a trabalhar para a mudar. Proporcionaremos a todos os idosos com autonomia institucionalizados no concelho a hipótese de passarem o Natal com a sua família. Vamos fazê-lo criando espaços de quarentena para estes jovens há mais tempo em hotéis do concelho. É lá que passarão os dias depois do convívio com as suas famílias e onde serão testados antes de voltarem novamente aos lares, quebrando assim qualquer possível corrente de contágio. Precisaremos muito da nossa rede social para nos apoiar neste processo, precisamos dos poderes públicos e privados. E precisaremos ainda mais do bom senso e responsabilidade das famílias, não colocando os seus idosos em situações de risco evitável.

Quanto à câmara, suportará os custos dos hotéis e dos testes. Um custo que todos estamos dispostos a suportar para manter intocados os valores da generosidade, da bondade e da gratidão. É um pequeníssimo preço a pagar para reforçar o pacto entre gerações.

Alguns dirão que é um risco. E eu pergunto: têm estado os nossos idosos dentro dos lares livres de risco?

Se o risco é o de ver os nossos idosos felizes por uma vez que seja neste maldito 2020; se o risco é o de lhes dar ânimo e energia para enfrentar os desafios que ainda têm pela frente; se o risco é o de tentar construir uma sociedade melhor e mais decente… se esses são os riscos, então eu, enquanto decisor político, estou absolutamente disposto a corrê-los.

Volto a Margaret Keenan, a primeira pessoa no mundo a ser vacinada. Aos 90 anos. Esta avó também arriscou um salto no desconhecido. Por ela, por todos nós. Margaret, como tantos e tantos idosos, fez a sua parte. Façamos nós também a nossa parte. Formemos uma grande coligação geracional. Para que quando, algures no futuro, os portugueses olharem para trás possam dizer, com orgulho, que na grande crise de 2020 ninguém foi deixado para trás.

 

P.S. 1: A task force apresentou o plano abrangente de vacinação. Fê-lo em tempo recorde, limpando a imagem de desnorte e vazio que o Governo estava a deixar instalar-se. A task force mostrou que há uma estratégia e, com isso, tranquilizou as pessoas. Mérito de Francisco Ramos, homem competente, e dos nomes que integram esta estrutura transversal.

P.S. 2: Os dados da DGS fornecidos às autarquias continuam a não bater certo. À atenção do Governo.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira


A grande coligação geracional


Um país de e com valores não pode simplesmente ignorar que privar os idosos do convívio com os seus filhos, netos e bisnetos é uma condenação antecipada à morte.


Começou ontem uma nova era no combate à covid-19. Chamaram-lhe o “dia V”. Margaret Keenan, uma avó de Coventry com quase 91 anos, entrou para a história como a primeira pessoa do mundo a receber a vacina contra o maldito vírus que virou as nossas vidas de pernas para o ar no último ano.

Independentemente da nossa bandeira, da nossa identidade, devemos celebrar o dia 8 de dezembro no que ele representa de melhor: a esperança da humanidade numa viragem rumo à vitória da ciência e da civilização sobre o medo e a escuridão pandémica.

Que o êxito dos britânicos seja o primeiro de muitos sucessos de todos os povos do mundo contra a covid-19.

Que seja uma idosa a estar no topo das notícias em todo o planeta e no centro deste esforço coletivo mundial é muito significativo. Recorda-nos o nosso dever, enquanto sociedade, de cuidar daqueles que um dia cuidaram de nós e que construíram os pilares da liberdade e da prosperidade de que hoje usufruímos. Retenhamos que uma comunidade sem memória, sem gratidão, sem afeto para com os mais idosos é uma comunidade de indiferença, de atomismo, de desumanidade. É a comunidade que tem em si as sementes da sua própria destruição. Os nossos pais, avós e já muitos bisavós foram os mais massacrados por esta crise de saúde pública. Primeiro, pelo vírus, depois, pelo afastamento social e, por fim, pelas draconianas medidas de isolamento a que foram condenados.

E isso leva-me ao tema da semana passada. Antevi que o Governo iria enfrentar um ciclo de decisões difíceis: renovar o estado de emergência, apresentar o plano de vacinação e definir as condições para as famílias se reunirem no Natal. Foram dias importantes para a credibilidade das instituições e das lideranças políticas nacionais envolvidas no combate à pandemia. Os portugueses não tolerariam mais erros de comunicação. Perderiam a paciência para regras com mais exceções do que as letras do abecedário. Era também uma semana em que o Governo mostraria ser ou não ser capaz de mobilizar os portugueses. Era preciso devolver aos cidadãos a confiança que estes têm (apesar de tudo) colocado nas emanações do Conselho de Ministros. Se o povo tem confiado em quem governa, este era o tempo de o Governo mostrar que confia nos cidadãos. E confiou.

Ultrapassado esse calendário de decisões que marcarão o nosso dia-a-dia até 2021, o equilíbrio de medidas e o compromisso alcançado é globalmente positivo – indo, aliás, ao encontro de algumas das reflexões que deixei nestas páginas.

Sinal menos, porém, para o total esquecimento dos nossos idosos. Uma sociedade decente não pode conformar-se com um cruzar de braços. Um país de e com valores não pode simplesmente ignorar que privar os idosos do convívio com os seus filhos, netos e bisnetos é uma condenação antecipada à morte. Se já nem a família, o que mais lhes resta? Perguntemo-nos honestamente: isto é o melhor que conseguimos fazer?

Mandamos homens à Lua e ao fundo do mar, desenvolvemos algoritmos ultrapotentes e inteligência artificial, e não somos capazes de arranjar uma maneira segura de os avós verem os seus netos? Nem por uma vez? Nem no Natal?

Isto é mesmo o melhor que conseguimos fazer?

Perdoem-me a franqueza, mas isto é a negação da nossa arte e do nosso engenho. É a supressão da humanidade. Podemos e temos o dever moral de fazer melhor do que isto.

Em Cascais não nos resignaremos a esta tristíssima realidade. É por isso que estamos a trabalhar para a mudar. Proporcionaremos a todos os idosos com autonomia institucionalizados no concelho a hipótese de passarem o Natal com a sua família. Vamos fazê-lo criando espaços de quarentena para estes jovens há mais tempo em hotéis do concelho. É lá que passarão os dias depois do convívio com as suas famílias e onde serão testados antes de voltarem novamente aos lares, quebrando assim qualquer possível corrente de contágio. Precisaremos muito da nossa rede social para nos apoiar neste processo, precisamos dos poderes públicos e privados. E precisaremos ainda mais do bom senso e responsabilidade das famílias, não colocando os seus idosos em situações de risco evitável.

Quanto à câmara, suportará os custos dos hotéis e dos testes. Um custo que todos estamos dispostos a suportar para manter intocados os valores da generosidade, da bondade e da gratidão. É um pequeníssimo preço a pagar para reforçar o pacto entre gerações.

Alguns dirão que é um risco. E eu pergunto: têm estado os nossos idosos dentro dos lares livres de risco?

Se o risco é o de ver os nossos idosos felizes por uma vez que seja neste maldito 2020; se o risco é o de lhes dar ânimo e energia para enfrentar os desafios que ainda têm pela frente; se o risco é o de tentar construir uma sociedade melhor e mais decente… se esses são os riscos, então eu, enquanto decisor político, estou absolutamente disposto a corrê-los.

Volto a Margaret Keenan, a primeira pessoa no mundo a ser vacinada. Aos 90 anos. Esta avó também arriscou um salto no desconhecido. Por ela, por todos nós. Margaret, como tantos e tantos idosos, fez a sua parte. Façamos nós também a nossa parte. Formemos uma grande coligação geracional. Para que quando, algures no futuro, os portugueses olharem para trás possam dizer, com orgulho, que na grande crise de 2020 ninguém foi deixado para trás.

 

P.S. 1: A task force apresentou o plano abrangente de vacinação. Fê-lo em tempo recorde, limpando a imagem de desnorte e vazio que o Governo estava a deixar instalar-se. A task force mostrou que há uma estratégia e, com isso, tranquilizou as pessoas. Mérito de Francisco Ramos, homem competente, e dos nomes que integram esta estrutura transversal.

P.S. 2: Os dados da DGS fornecidos às autarquias continuam a não bater certo. À atenção do Governo.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira