Bem pode a Constituição da República Portuguesa pregar a liberdade de religião. O mercado religioso continua a ser um mercado fechado. Como todos os mercados fechados, o favor aos incumbentes traduz-se na dificuldade de acesso por parte dos candidatos à disputa do mercado. Nos Estados confessionais, o monopólio concedido a uma determinada religião transforma facilmente a heresia em crime. O fecho do mercado bastou-se muitas vezes com a denegação do acesso às formas de comunicação tradicionais. O sucesso da Reforma não resultou apenas do interesse político dos príncipes seculares que, abraçando as ideias de Lutero e tutti quanti, se conseguiram furtar ao controlo exercido pela Igreja Católica. A Reforma triunfou em grande medida pela revolução tecnológica promovida por Gutenberg, associada à tradução da Bíblia para línguas compreensíveis pelos crentes. A internet fará pela abertura do mercado religioso mais do que a tipografia fez pela expansão do protestantismo.
A regulação do acesso ao mercado religioso vive à margem do comando constitucional que manda separar o Estado das igrejas. A tentação é grande para a classe política, que se aproveita das celebrações religiosas como se aproveita das celebrações futebolísticas, promovendo-se junto dos fiéis (votantes). As igrejas aproveitam as prebendas oferecidas e ocupam um lugar cada vez mais vasto à mesa do orçamento do Estado. Num país de cientistas sociais seria interessante avaliar a percentagem do PIB português capturado pelas diversas igrejas (património imobiliário, activos financeiros, custo dos benefícios fiscais atribuídos, valor da subsidiação directa e indirecta das actividades desenvolvidas e que incluem lares, centros de dia, creches, jardins-de-infância, escolas, universidades, equipamentos de saúde e órgãos de comunicação social).
A regulação do mercado religioso continua cometida ao Estado, que a exerce em benefício dos incumbentes. As igrejas reconhecidas têm uma licença para liquidar a côngrua e cobrar o dízimo. Já as seitas não reconhecidas pelo Estado aproveitar-se-iam da ingenuidade dos cidadãos para burlar inocentes.
O Estado atribuiu-se um papel regulador de uma actividade, a religiosa, que a Constituição define como livre. O acesso às prebendas estatais depende da “inscrição” junto do Estado e, em relação a algumas delas, limitado às igrejas que estejam radicadas há pelo menos 30 anos em Portugal.
Para além do macrofiltro referido, o Estado trata, miúda e casuisticamente, de identificar as igrejas verdadeiras, as autênticas, as que merecem protecção no exercício da liberdade religiosa. Esta tarefa de distinção entre os bons e os maus nem sempre é fácil. Atente-se no desejo de um cidadão de se ver retratado na fotografia que consta do cartão de cidadão com os atributos da sua religião. Considerou que merecia o mesmo tratamento das freiras no cristianismo, das mulheres islâmicas e dos homens sikh, todos oficialmente fotografados com adornos na cabeça.
Ouvido o conselho consultivo do Instituto dos Registos e Notariado, poderia a pretensão ter sido afastada com base na falha no exercício do culto, caso se provasse que o requerente não utilizava na sua vida quotidiana o adorno de cabeça com que pretendia ser fotografado no cartão de cidadão. O conselho deliberou, em nome da generalidade e da abstracção, a existência de uma “religião não verdadeira”.
Enquanto não chega a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e como penitência, deverá recitar 1000 vezes: “Senhor, dai-nos hoje o escorredor nosso de cada dia. De preferência cheio de massa”.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990