Num artigo publicado a semana passada no The New York Times, o Papa Francisco partilha palavras sábias e inspiradoras que nos devem guiar neste período de incerteza e cansaço coletivo. Diz o Santo Padre, um dos líderes do nosso tempo, que há muita gente que em nome da liberdade individual resiste às medidas de distanciamento social, desdenha a máscara e resiste às proibições e condicionamentos impostos pela covid-19. “Como se as medidas que os governos impõe para o bem do povo constituíssem um assalto à liberdade individual!”, escreve Francisco, para logo acrescentar: “Olhar pelo bem comum é muito mais do que a soma do bem das pessoas individualmente consideradas. Significa ter em conta todos os cidadãos e responder efetivamente às necessidades, sobretudo dos mais desfavorecidos.”
Escolhi esta passagem do texto do Papa porque estamos numa semana de decisões importantes. O Governo vai reunir amanhã com partidos políticos, parceiros sociais, Igreja Católica, patrões e outras forças representativas da sociedade civil. Sexta o Parlamento deve renovar o estado de emergência. E no sábado o Governo anuncia nova ronda de medidas que nos vão acompanhar até 2021.
A quebra no número de infeções registada nos últimos dias é encorajadora. Como o próprio primeiro-ministro sinalizou ontem em entrevista ao Observador, o país vai conhecer os constrangimentos para o período do Natal e ano novo, talvez uma das épocas, senão “a” época do ano mais importante para centenas de milhar de famílias portuguesas. Independentemente de um aligeirar ou não das limitações na quadra festiva, o que é crucial é que as pessoas saibam com o que podem contar. É determinante que a comunicação seja cristalina. E é crítico que o Governo e as instituições assumam medidas claras, intuitivas e abrangentes. Medidas que sirvam todos por igual e não criem portugueses de primeira, de segunda ou de terceira. No Natal, e estando cientes de que o bem comum é mais do que a soma das diversas noções de bem individuais, essa seria a melhor mensagem que o Governo poderia dar: os portugueses são mesmo todos iguais.
Volto a um tema que trouxe a este mesmo espaço há uns dias. Se o país quer ser eficaz no combate à pandemia é urgente rever processos e procedimentos. Precisamente na altura em que temos um mapa de risco do país assente na caracterização dos municípios feita a partir dos principais indicadores pandémicos, a DGS decide parar de publicar os dados totais de infetados por concelho. Os burocratas da DGS devem ter um objetivo para tomar uma decisão destas que, certamente por limitação, eu não consigo descortinar. Em nome da transparência e do escrutínio democrático, era importante que o explicassem.
Resumindo: quando as autarquias passam a ser, no papel, no mapa, as unidades políticas criticas no combate à pandemia, a DGS passa a esconder os números: dos infetados, dos recuperados, dos casos ativos e dos óbitos.
Outro problema que carece de resolução é a incoerência no período de análise. Se o nível de risco de um concelho é definido pelo número de infetados por x período de tempo, a saber 14 dias, convém que se fixe a data a partir da qual se inicia a série dos tais 14 dias. Há relatórios que contam 14 dias entre segundas-feiras; outros contam entre sextas-feiras. São sempre 14 dias, é certo, mas os números dizem coisas diferentes consoante a linha do tempo usada. Por exemplo: em Cascais, a diferença de metodologia de contagem significa baixar do risco “muito elevado” (laranja) para o nível “elevado” (amarelo). Isto faz toda a diferença para as empresas e famílias. Mais: isto faz toda a diferença na moral das pessoas. Se queremos que as pessoas continuem a aderir às regras – mesmo às mais incompreensíveis – o mínimo que se exige das autoridades públicas de saúde é que se organizem, que sejam competentes e que não ponham em causa os esforços dos cidadãos desculpando-se com tecnicidades e jargão científico que só serve mesmo para ser biombo à balbúrdia.
Lamento dizê-lo, mas nada disto ajuda a DGS, o Governo ou os cidadãos. Ninguém sai beneficiado.
Se algum contributo posso humildemente dar ao Governo para as decisões dos próximos dias, com base na minha experiência no terreno, ele aqui fica em oito pontos breves:
1. A informação deve ser clara e as medidas objetivas.
2. Os dados locais devem ser expurgados dos surtos em locais confinados, como prisões e lares. Utentes de lares e população prisional estão, por definição, confinados, e não são agentes transmissores da doença na comunidade.
3. Limitar as variações e horários. A oscilação do recolher obrigatório e horário do comércio – às 13h00 ao fim de semana, às 15h00 na ponte e novamente às 13h00 no feriado, gera confusão desnecessária na cabeça das pessoas e uma corrida desenfreada às superfícies comerciais.
4. As restrições devem ter em conta os locais onde há mais transmissões: escolas, lares e transportes públicos.
5. Podem ser criadas regras de densidade nos estabelecimentos comerciais, com isso alargando horários para não haver as concentrações de pessoas com períodos mais curtos.
6. Por não haver razão, e muito menos evidência científica, os restaurantes poderiam passar a estar autorizados a fornecer jantares.
7. Permitir que as forças de segurança e, se necessário, as forças militares fiscalizem e façam cumprir as regras.
8. Autorizar o aumento da oferta de transportes públicos, com base nos contratos existentes, mas sem exigência dos formalismos burocrático-legais.
Cada uma destas medidas considera o princípio da responsabilidade individual e a maturidade cívica da sociedade. Os portugueses já deram provas mais do que suficientes de que são capazes e respeitadores. A confiança é uma via de dois sentidos: e se o povo confiou nas medidas do governo, talvez seja hora do governo confiar no povo.
Uma última nota para a vacina. Até final de 2021, teremos vacinas para mais de 30% da população mundial. As farmacêuticas que já se encontram nos últimos ensaios clínicos da fase 3 – AstraZeneca, Pfizer e Moderna – garantem uma produção de 5,3 mil milhões de vacinas durante o próximo ano. O que, dependendo do número de tomas, permitirá vacinar entre 2.6 a 3.1 mil milhões de pessoas. Mas até a vacina chegar, temos de centrar os esforços na realização de mais testes, no rastreamento e isolamento rápido dos infetados. O reforço das primeiras linhas até termos uma vacina é determinante.
Como dizia o Papa Francisco no texto que antes citei, se queremos sair desta crise menos egoístas do que quando entramos nela, então talvez tenhamos de nos deixar tocar pela dor dos outros. Ou outra forma de dizer que temos de continuar a ser: Todos por Todos.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira