Restauração. O Portugal do tempo dos Filipes

Restauração. O Portugal do tempo dos Filipes


O que esteve por trás do “gesto temerário” do Duque de Bragança que a 1 de dezembro de 1640 pôs um ponto final no domínio filipino? Neste aniversário da restauração da independência, revisitamos o volume que o historiador António Borges Coelho dedicou aos Filipes, um retrato vivo e uma interpretação das clivagens sociais do Portugal…


Poder-se-á dizer que, em 1580, se defrontam, em Portugal, um partido patriótico – formado por aqueles que pretendem que a coroa fique nas mãos de um português – e um partido castelhano – constituído pelos que não se opõem, antes sufragam, que El-Rei venha de Castela –, ou estaremos perante dois modos de entender o melhor para o reino, duas formas diferentes, digamos, de patriotismo? Desde logo, pois, esta nota: não há um Portugal uno, frente a Castela, neste final do século XVI – Portugal podia manter tudo em sua posse e ainda ver-se reforçado em termos de restauração de uma monarquia católica europeia (como resposta à Reforma protestante). Do ponto de vista jurídico, defensáveis eram, aliás, quer os pontos de vista que legitimavam Filipe, quer os que respaldavam António, na sucessão da coroa.

Do ponto de vista social, a diferença é marcada: os menores, o povo – acrescido de alguns fidalgos e nobres, é certo – esteve sempre com D. António, Prior do Crato; as classes favorecidas acharam-se ao lado de Filipe I.

Por esta altura, é verdade, a identidade hispânica é uma realidade, mas a identidade nacional revela-se bem mais forte. Já quando se cuida de uma identidade europeia, manda a prudência avisar que, por exemplo, um Camões esteve em muitas outras determinantes praças que não qualquer capital do Velho Continente.

A disputa entre apoiantes de D. António – que foge, primeiro para França; mais tarde para Inglaterra – e D. Filipe permanece bem para lá de 1580 (em 1585 ainda se torturam apoiantes de D. António). Por exemplo, nos Açores as forças afetas a D. António ainda prevalecem durante certo tempo (pitoresco o episódio em que com cerca de 300 ou 400 bois e vacas os potuguesíssimos destronam os apoiantes de Filipe). Depois dos acordos de Tomar ratificarem Filipe I, julgavam os ainda nostálgicos de um Portugal com direito a Rei próprio, que só D. Sebastião, saído da tumba, poderia libertar o país. E, em não aparecendo o verdadeiro, vários concidadãos dele se disfarçaram, procurando forçar a mudança política. Sempre estava aparecendo o “real” D. Sebastião, em várias zonas do território português, que logo se percebia ser logro, acabando o farsante justiçado a açoutes, degredo e/ou morte.

Força e medo Entretanto, nos mares, outras potências que não a grande Ibéria, como Inglaterra, vão desafiar o modelo de Tordesilhas. D. António chega a vir com os ingleses (1589), para tomar Lisboa de assalto, mas ninguém se levanta com ele. Morre, em 1595, em Paris. Filho de D. Luís, havia recebido educação esmerada, combateu em África com o primo D. Sebastião e, a ter exercido o poder de monarca tê-lo-ia realizado, sobretudo, segundo António Borges Coelho, a título de “legitimidade revolucionária”. Se é certo que não foi um vencedor, merecia mais do que tem recebido no tratamento dado pela historiografia, denuncia o historiador.

Já com Filipe II ao leme (Filipe I morre em 1598) – ele que teve um império “onde o Sol nunca se punha” e sobre Portugal dizia “yo lo heredé, yo lo compré, yo lo conquisté” –, são nomeados, em 1600, vários ministros castelhanos, passando-se, assim, por cima, da autonomia portuguesa. Violava-se, desta sorte, os Acordos de Tomar. Madrid liderava amplamente: “a realidade política, económica e civilizacional que designamos como monarquia filipina, monarquia católica ou mesmo Espanha agregava reinos e territórios muito diferenciados, os da Península Ibérica, os reinos de Nápoles e da Sicília, Sardenha, Milão, o Franco Condado, a Flandres e as duas Índias. Castela liderava. Em Madrid se reuniam os conselhos, as juntas e se distribuíam os benefícios, as mercês e de desenrolava em pleno a liturgia e o espetáculo do poder. A monarquia filipina manifestava-se como a potência europeia mais temível da época pela fama das conquistas, pela força e medo incutido pelos seus tércios e as suas armadas, pela aliança estreita com o Império Habsburgo, o Papado e a Itália, pela literatura, estreitamente vigiada pela Igreja, as corporações, a Universidade e os tribunais do Santo Ofício”. A longa mão de Madrid chegava, aliás, por esta altura, às decisões locais. A utopia de uma monarquia católica universal cai, no entanto, aos pés de um rei fraco como Filipe II – quando vem a Lisboa pela primeira vez, os castelhanos que o acompanham tudo furtam das casas, ou conventos, onde se instalam, mandando famílias para fora e obrigando-as a pagar para voltar a recuperar o seu; António Gedeão caracteriza, com humor, o seu poder “foi dono da terra, foi senhor do mundo (…) um homem tão grande tem tudo o que quer, o que ele não tinha era um fecho éclair!” –, num tempo em que os cristãos-novos veem legislação mudar constantemente quanto ao seu poder de sair do país e movimentar os bens, participar em cargos, títulos, honras e demais (são aprovadas leis racistas).

Defesa dos interesses de classe

O tempo é de Inquisição, autos-de-fé, confissões forjadas, mortes sem “culpa”, espetáculos delirantes. Há o jogo da pela, touros defrontam cães. Alugam-se janelas. As procissões são imensas, num cortejo espetacular. O direito canónico proíbe os juros nos empréstimos, “mas todos veneravam o ouro e o dinheiro”. A situação do povo é infame: “o povo pobre sofre. A guerra rouba-lhe os filhos mais válidos apanhados na rua e mobilizados à força. Morrem à pura fome com a carga de impostos. Em 21 de Junho de 1627 Filipe IV [III] indica cinco locais em Lisboa para a recolha dos meninos perdidos. Quase só vemos o povo quando apedreja as janelas do Paço Real, quando mata, em escaramuças, soldados castelhanos ou quando no Porto ameaça matar, na revolta das Maçarocas, o conselheiro de Estado Francisco Lucena”. A fadiga tributária pressente-se nas altercações de Évora, prenúncio da revolta e restauração que aí vem. Seguem-se conspirações, contactam-se homens para a mudança, muitos deles encolhem-se. Avança-se com a data do 1.º de Dezembro de 1640, ano no qual já houvera a luta pela Catalunha.

Ora, na interpretação de Borges Coelho “o que moveu os restauradores a reinventar a monarquia portuguesa ou se necessário, em último recurso, a instaurar uma república? Não foi em defesa da ordem e da crença católica nem os impediu a putativa identidade ibérica e muito menos europeia. O que está por trás do seu gesto temerário é a defesa dos interesses de classe e o sentimento de identidade que ligava as instituições e os grupos sociais, nas suas diferenças legais, de ordem e classe, à nação portuguesa”. D. João, duque de Bragança, D. João IV, será, depois do inevitável Miguel de Vasconcelos ter sido atirado da janela abaixo (já com um tiro, mas ainda vivo), finalmente, aclamado: “Real! Real! Real!”.