Há um silêncio estranho em torno da coleção de ficção da editora Sistema Solar. A qualidade gráfica, as traduções de Aníbal Fernandes (que também assina os prefácios), os próprios textos – que parecem ter sido objeto de uma escolha meticulosa, a maior parte deles a cargo do próprio tradutor –, tudo concorre para que houvesse, da parte da crítica, um trabalho de interrogação destes achados. No entanto, o que encontramos é pouco, senão mesmo inexistente: um ou outro texto, no máximo, um anúncio ou uma pequena nota.
Poder-se-ia dizer que este silêncio é facilmente explicável através de um motivo económico, chamemos-lhe assim. São demasiados livros por mês de demasiadas editoras, demasiadas novidades que chegam quase todos os dias – e são cada vez menos aqueles que se dedicam à tarefa ligeiramente anacrónica da crítica. Mas como qualquer explicação geral, isto explica demais e não tem em atenção o caso concreto, o pormenor. Talvez não fosse uma má ideia elaborar um pequeno estudo que pensasse a receção crítica dos livros de forma a detetar nesta última certas tendências, certos movimentos. Em todo o caso, este silêncio face à coleção de ficção da Sistema Solar talvez se deva a dois motivos: em primeiro lugar, são muitas vezes livros que se subtraem a qualquer género (este de Kees Van Dongen, por exemplo), o que é muito diferente daqueles que tentam conjugar diversos géneros; e, em segundo lugar, são títulos que se situam ao nível de uma tonalidade como que menor: do grande nome, Victor Hugo, por exemplo, ou André Gide, não o monumento que lhe conferiu a fama e a eternidade, mas o pequeno apontamento, o pequeno esboço onde, tantas vezes, se dão a ouvir as mais inauditas notas.
E é um pequeno apontamento, um esboço, que encontramos neste A Vida de Rembrandt (história a ir para onde lhe dá) de Kees Van Dongen, também ele pintor, como Rembrandt, nascido em Roterdão em 1877.
Quem espere deste texto uma biografia sentir-se-á defraudado. É certo que ele acompanha a vida de Rembrandt, que nos dá os acontecimentos mais relevantes – os pais, o casamento, a mulher, as amantes, a viagem, fictícia, a Itália, tudo quanto essa moral de burocrata aprecia –, mas o que realmente interessa a Van Dongen é delinear de forma rápida o génio, traçar-lhe o rosto, mostrar as impaciências, os tumultos interiores, as vertigens, enfim, fazer-lhe uma anatomia – mas sempre de forma rápida, um esboço. O casamento de Rembrandt, por exemplo: encontramos no pintor aquela má vontade de muitos criadores, aqueles motivos inconfessáveis que perseguem até ao fim sem qualquer clemência, sem olhar a mais nada ou ninguém, totalmente absorvidos por uma ideia, por uma mania. Assinou a sua dívida para com a vida em sociedade, é certo, mas não deixou de abrir esta a uma força incontrolada, de a tentar forçar a uma secreta pretensão:
“Mas Rembrandt, esse, não tinha mudado; continuava a ser o amante da sua mulher. Nenhuma influência tinham no seu amor os sermões do pastor, os papéis do notário e do registo civil (…)Ele amava. Fazia o seu assalto como só o povo faz, sem cálculo e com fúria, até à morte e à vitória. É assim que as mulheres do povo compreendem o amor. Aguentam, sofrem, amam, têm um prazer e uma flexibilidade de gatas do telhado”
O “herói solitário impossível” de uma vida que foi só dele, singular até à solidão, ao mesmo tempo pobre e faustoso como a sua pintura, que confundiu a vida com a arte em todos os momentos – só não pinta, diz-nos Van Dongen, em Itália, mas aí é porque toda aquela paisagem é já pintura. Sofre de excesso de vida ou de ausência desta –, sabe, no entanto, que tem de cumprir certos requisitos. Mas mesmo aí o excesso é sempre primeiro, a afirmação de uma vida anárquica, que explode em todos os sentidos, vem antes de qualquer compromisso. Por isso, Rembrandt permanecerá sempre o mesmo, inclusive quando se transformar num pintor reconhecido: as mesmas companhias duvidosas, a mesma obsessão que começa cedo, mesmo antes de começar a pintar, a mesma contradição entre a vida faustosa e uma certa pobreza que será sempre aquela de quem deseja em demasia uma coisa.
Os seus contemporâneos, defende Van Dongen, percebem-no, intuem que há algo de errado com todo aquele fausto, veem que há ali qualquer coisa da ordem do inconfessável, que Rembrandt desposa as suas leis mas apenas para as dobrar ao que ele quer – que, enfim, é um ser contraditório, um “animal selvagem” que inventa narinas para melhor respirar e a quem a “República das abelhas”, esse animal sociável, declara guerra por causa da sua “indiferença [para com a ordem da] colmeia”.
“Que loucura, pintar-se junto de velhos tapetes e ataviado de turbantes, plumas e joias! Que vergonha para a família de Saskia, ele pintar mulheres nuas, esquisitas composições inspiradas pela Bíblia, e em sua casa receber senhores e damas com a mesma afabilidade com que recebe toda a espécie de mendigos e judeus (por quem parece ter predileção), músicos ambulantes, vendedores de venenos mata-ratos e comerciantes esfarrapados!”
Excessivo e sem pudor, esbanja dinheiro, “vive à farta”, rodeado de opulência e ostentação, “pinta-se com toda a espécie de trajos e disfarces, em toda a espécie de papéis, e mima à frente de um espelho as expressões que depois regista.” Mas será sempre esse “herói solitário impossível” de que fala Van Dongen – e até aí será contraditório, porque esse “grande solitário gosta muito da vida, atira-se a ela de cabeça perdida e patinha nela até à saciedade”.
É pintor, vive na sua mania, não conhece outra forma de expressão, não consegue viver de outra forma. Os artistas conhecem bem esta solidão sem fim que é feita à medida da obsessão que os toma em todos os momentos. É uma avidez sem fim, uma insatisfação, uma irrequietude, aquilo que os torna solitários sem qualquer forma de redenção tendo de se medir em face dessa “febre que queima”, que não os deixa em paz.
É a vida, digamos assim, no que tem de contraditório, ao mesmo tempo faustosa, opulenta, excessiva, mas também pobre, passiva: “A vida é fazermos o papel desse velho cavalo que deixa um camponês conduzi-lo e olha humildemente para a terra; que deixa a chuva pingar-lhe gota a gota no grande dorso branco, que sofre em silêncio, cai no chão com a canga e é um animal sem vontade (…) Mas a vida também é uma revolta contra a vida, um sopro forte e quente, a chama que sai das narinas de um animal altivo.”
E até ao fim Rembrandt será esse ser excessivo. Vê-se encurralado pelos seus contemporâneos, que não lhe perdoam a ostentação. Morre, segundo Van Dongen, sem nada, remetido a um albergue, primeiro, depois a um sótão, onde continua a trabalhar para saldar dívidas: “está só, absolutamente só e fora da lei; um pária”. Mas isto não lhe importa, ou melhor, a sua irrequietude não para, a pintura vai continuar a exercer a sua dívida absoluta para com ele – a custo da solidão, do desespero. É como a traça de que fala um pensador contemporâneo: está de tal forma aturdido, obcecado, que não vê para onde caminha, da mesma forma que aquela “se deixa queimar pela chama que a atrai e que todavia lhe permanece até ao fim obstinadamente desconhecida.”.
“Fecha-se em casa; tem dentro de si o mundo, recria-o pela magia do seu génio mas agora recria-o triste, profundo e humano. É um misantropo, vê que é impossível a felicidade; mas o seu sonho persiste; e encontramos em todos os seus quadros, em todas as suas gravuras, a nostalgia dos paraísos perdidos, a submissão ao destino e o sonho em revolta contra a realidade. Talvez por isso eles sejam tão plenamente humanos, tão tristes e belos para aqueles pobres que encontram num quadrado de tela pintado, e levadas à realidade, as suas imensas aspirações.”
É a solidão final de Rembrandt, quando o conflito com os seus contemporâneos termina com a sua derrota – mas também na derrota há uma afirmação da vida, também nesse mundo “triste, profundo e humano”, desolado, encontramos essa “febre que queima” que sempre o acompanhou. “Morre como um cão abandonado num canto do seu sótão” – o tradutor acrescentará a informação: “no cemitério de Westerkerk, não teve direito a nenhuma lápide no seu túmulo”. Não é um mártir, decerto, mas o ar, o nosso também, devia ser-nos tão pesado quanto a terra lhe devia ser leve.