Ao final da tarde, os membros do movimento “A Pão e Água” receberam a notícia de que serão recebidos em audiência pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, amanhã à tarde. “Fomos ouvidos! Sexta-feira, às 15h30, vamos ser recebidos pela Casa Civil do Gabinete da Presidência. Enquanto há vida, há esperança. A luta continua! #Unidos venceremos”, anunciaram através de mensagens. Ao i, José Gouveia, um dos porta-vozes do movimento, admite que “isto muda tudo”. “Já não vamos avançar para a greve de fome que estava prevista. Temos de estar satisfeitos por termos sido ouvidos e sermos recebidos pela principal figura do Estado”, disse. José Gouveia afirma que, agora, vai “tentar sensibilizar o Presidente para a necessidade de que o Governo ceda e apoie de todos os empresários”.
O céu compadeceu-se das lágrimas que corriam cá em baixo e, por uma tarde, contra as previsões, deu tréguas aos cerca de mil manifestantes do movimento “A Pão e Água” que, ontem, se reuniram frente às escadarias da Assembleia da República para apelarem ao Governo por apoios e pela reabertura da atividade económica dos setores dos restaurantes, bares e discotecas.
Vieram de todo o país, numa dúzia de autocarros, muitos do Norte e do Algarve, mas a multidão que foi engrossando desde as 15h30 não atingiu os números que se anunciavam. “Onde estão as pessoas de Lisboa? Vejo pessoas do Norte. Do Algarve. E as de Lisboa? Ficaram em casa?”, questionou-se, a certa altura, ao microfone. “A luta é de todos, e não apenas de alguns”, recordou-se mais tarde – nas últimas horas, já os organizadores do protesto haviam apelado à presença massiva da “restauração, noite, pequeno comércio, cultura, turismo e hotelaria” e também de “todos aqueles que se quiserem juntar”.
Apesar de tudo, assim foi. Pelo palco, onde todos os olhares se concentraram, desfilaram, durante três horas, representantes de todos os setores de atividade presentes na ação. Discursos comovidos, alguns desesperados, feitos de histórias (e dramas) pessoais, expressados de voz embargada e olhos húmidos diante de um caixão branco depositado aos pés dos oradores – representando a “morte” lenta dos negócios, fechados ou a meio gás desde a chegada da pandemia ao país.
As vozes dirigidas à multidão, aos deputados da Assembleia da República e, sobretudo, ao Governo de António Costa, alcançaram sempre o mesmo desfecho. “Esta é a revolução de quem quer trabalhar. Deixem-nos trabalhar! Ou deem-nos uma solução”, gritou-se, uma e outra vez, a solo, em uníssono, ao som de tachos e panelas, num horizonte carregado de bandeiras portuguesas, mas dominado pelos cartazes onde se podiam ler, enumerados, os argumentos com que lutam os empresários.
“Sinto-me um pai impotente”
Alberto Cabral tem seis bares e discotecas no Norte do país – em Vila Real, Espinho, Macedo de Cavaleiros, Chaves e Santa Maria da Feira. Mas, desde março, nenhum dos seus estabelecimentos voltou a abrir portas. Depois de anos de sucesso no setor da diversão noturna, hoje, Alberto Cabral revela, de lágrimas no rosto, uma carteira vazia, prenúncio de uma história sem futuro. “A minha filha tem sete anos. Como é que se consegue explicar a uma criança de sete anos que este ano não vai haver Natal?”, questiona. “Sinto-me um empresário impotente. Pior, sinto-me um pai impotente”, diz, enquanto revela ao i, de semblante doloroso, um último segredo que talvez nunca julgara guardar: “Gastei hoje os meus últimos 50 euros para vir para baixo, até Lisboa. Tenho para ali a carrinha estacionada [aponta], mas já nem tenho dinheiro para regressar para casa”.
O empresário garante estar a “tentar tudo” e é por isso que, pese as dificuldades, mantém a seu cargo os 18 colaboradores que há muito o acompanham, e não deixou de marcar presença na “manif”. “Vendi tudo o que podia vender: o carro, máquinas dos bares e das discotecas, mas, agora, atingi o meu limite”. “Se não receber apoios a fundo perdido… não terei hipótese de sobreviver”, refere.
“Não temos corpo nem voz”
Não são empresários. Aliás, legalmente, nem sequer se enquadram em nenhuma categoria profissional. Os DJs são figuras de proa nos bares e discotecas, mas vivem omissos, sem recurso nem apoios, vítimas de uma crise que lhes retirou quaisquer possibilidades de trabalhar.
Pedro Cazanova marca, há 30 anos, o ritmo do momento de milhares de corpos na pista. Hoje, quer apenas que o vejam e ouçam. “Ou somos músicos, ou somos criadores artísticos e literários, ou somos simplesmente prestadores de serviços. A verdade é que, nesta crise, não temos corpo nem voz”.
Há quase nove meses sem espaços para trabalharem, nem concertos ou outros eventos culturais, aos DJs resta esperar que a tempestade passe, e que a bonança traga boas novas. “Muitos de nós vivem situações dramáticas. Tenho amigos que voltaram para casa dos pais, que tiveram de arrendar as suas casas ou vender as coisas que tinham. E outros, nem sequer isso conseguiram… é preciso que as pessoas saibam que, muitos de nós, vivem da ajuda das famílias e dos amigos”, afirma.
E nem nome Cazanova, com carreira sólida, escapa aos efeitos da crise. “Lá me vou aguentando, mas não vai dar para muito mais. Tenho dois filhos menores e vou ter um terceiro filho em janeiro. Como é que vou conseguir suportar tudo isto sem que me deem a oportunidade de trabalhar?”, questiona. Uma certeza, porém, não o larga, apertando forte na garganta enquanto sai: “Uma coisa é certa, quando recomeçarmos não partiremos do zero. Estaremos muito mais abaixo”.
“E para o Web Summit já há dinheiro?”
Paulo Silva tem muitas empresas. Mas nenhuma funciona atualmente a 100%. “Sempre estive no setor da organização de eventos, mas também me meti na restauração. Enfim, não está nada a funcionar como deveria”, lamenta.
O empresário – proprietário da empresa de eventos New Sheet e do restaurante Bahia Beach Club, em Caxias (Oeiras) –, confessa que teve de avançar para um despedimento coletivo que eliminou 37 dos 40 postos de trabalho que, antes da crise, suportava. “Se não o tivesse feito, perdia tudo. Neste momento, tenho algum dinheiro que amealhei ao longo dos últimos anos, mas se isto tudo não mudar nem isso será suficiente para que as minhas empresas sobrevivam”, admite.
Com a cultura congelada, Paulo Silva encontra nos restaurantes a sua tábua de salvação. Mas critica as restrições impostas pelo Governo, principalmente nos período de recolher obrigatório nos próximos fins de semana e feriados (a partir das 13h). “Não podemos trabalhar e também não temos apoios do Governo ou da Câmara de Lisboa. A António Costa e Fernando Medina deixo uma perguntar: E dinheiro para TAP já há? E dinheiro para a Web Summit já há?”.