Levamos nove meses de combate à pandemia e continua a não haver um sistema estruturado e credível de recolha, tratamento e análise de dados.
Há pouco critério e muita confusão.
As autoridades públicas e de saúde estão a esforçar-se para destruir a (pouca) confiança que os portugueses ainda têm nas instituições.
Vamos ser claros: podemos confinar o que quisermos, quantas vezes quisermos; podemos criar códigos de cores; podemos renovar estados de emergência e recolher obrigatório. Com esta balbúrdia, perdoem-me a franqueza, não vamos lá.
Vou apenas cingir-me à questão dos dados – e não é coisa pequena.
Toda esta pandemia tem girado em torno de números. O número de infetados, o número de óbitos, o número do ‘R’, o número permitido para ajuntamentos na via pública e restaurantes, o número para ocupação dos estabelecimentos comerciais, de camas de cuidados intensivos… Enfim, é tudo sobre números. O que, desde logo, nos devia ter deixado alerta. Portugal é um país que não tem, historicamente, qualquer relação com a cultura de métricas apuradas – talvez porque ela pressuponha mais escrutínio e mais transparência. Isto diz muito sobre a qualidade (ou falta dela) da nossa gestão e capacidade de planeamento estratégico.
Em circunstâncias de normalidade vivemos tristemente com isso porque os danos colaterais são a prosperidade e a equidade.
Mas em circunstâncias de anormalidade pandémica, deveríamos ter o cuidado de não tratar os números a pontapé. São vidas humanas que estão em causa.
Ora, não é nada disso que temos visto no nosso país.
Parece que não aprendemos nada. Os números não estão a ser usados para encontrar respostas e critérios objetivos de gestão da pandemia; antes pelo contrário, são exibidos como prescritores de credibilidade onde ela nem sempre mora.
Esta não é uma critica vã. Não a faço com gosto. Mas repare o leitor no seguinte: o Governo decidiu, e bem, dividir o país em quatro nível de risco. Cada nível de risco acarreta limitações às liberdades. Por isso, é totalmente diferente para as famílias e para as empresas estar num concelho com risco “elevado”, amarelo, ou num com risco “muito elevado”, laranja.
A diferença entre os concelhos triados a amarelo (menos de 479 casos por 100 mil habitantes) e os concelhos triados a laranja (mais de 480 e menos de 960 casos), é que enquanto os últimos têm recolher obrigatório às 13h aos fins de semana e o comércio é obrigado a fechar às 15h nas vésperas dos feriados de dezembro, os primeiros estão dispensados desse enorme constrangimento.
O critério para um concelho cair numa cor e não noutra tem exclusivamente que ver com o número de infetados por 100 mil habitantes nos 14 dias. O tratamento dos dados reveste-se, assim, de uma importância decisiva.
Números mal coligidos, mal sistematizados, mal estruturados podem condenar territórios ao confinamento e mais empresas à falência.
É exatamente aqui que começam os problemas e quatro questões que vale a pena debater.
Primeira questão: o tempo da DGS e o tempo da pandemia. Tomemos como referência o que se passou esta semana: para produzir o mapa de risco de Portugal, a DGS fechou os dados dia 19 (quinta-feira), analisou-os no dia 20 (sexta) e publicou-os dia 23 (segunda). Pergunto: no tempo dos algoritmos, da inteligência artificial e das vacas que voam, precisará a DGS de cinco dias entre a receção dos dados e a sua divulgação? Quando forem do conhecimento público, e atendendo à velocidade com que a realidade muda, esses dados já não refletem com rigor a situação presente. A DGS precisa de um simplex. Caso contrário, continuará a gerir a crise a olhar pelo retrovisor.
Segunda questão: temos todos de sofrer pelos surtos? Para o número de casos positivos nos concelhos, logo para a classificação de risco, também contam os surtos em lares e prisões. Isto não faz sentido. Por razões diferentes, são duas populações por natureza confinadas. Não representam risco de contágio para a população em geral. Contabilizar os surtos nas prisões e em lares para efeitos de triagem concelhia é uma penalização gratuita. Recorro novamente a um exemplo: ao dia de ontem, não contabilizando os surtos na prisão de Tires e nos lares, Cascais baixaria o seu nível de risco para amarelo, o suficiente para não termos recolher obrigatório aos fins de semana e abrir o comércio no Natal.
Terceira questão: o pandemónio da contabilização de casos. Quando é que um caso positivo é registado como tal? Será na data do resultado do teste? Será na data dos primeiros sintomas? Ou será na data do registo no inquérito epidemiológico? Depende.
O critério para os ACES é primeira colheita ou data dos primeiros sintomas mas a DGS, para a vigência dos 14 dias, têm outro critério que não o mesmo.
Os vários agentes de saúde pública estão a usar o critério que mais lhes aprouver. A regra é não haver regra.
Estas questões evidenciam que as variáveis criticas na identificação dos mapas de risco estão corrompidas: não há uniformidade na definição do momento zero da unidade tempo nem no registo da condição de infetado.
Assim não vamos lá. O mapa de risco não é, e por este caminho nunca será, um retrato do presente. E, não o sendo, não nos ajudará a dar uma resposta pandémica decente para o futuro.
Corrigindo as falhas, acredito que teremos mais hipóteses de ser bem sucedidos no combate a este maldito virús. Apelo a que a DGS e o Governo façam a sua parte. As Autarquias continuarão, também, a fazer a sua. E quanto a nós, cascalenses, trabalharemos arduamente, com este mapa ou com outro, para nos trazer para os níveis de risco mais baixos. Porque quanto mais baixo for o risco, maior será a nossa liberdade, mais aberta será a nossa economia e mais autonomia ganharão todas as famílias e empresas.
Por fim duas últimas questões. Por que deixou a DGS de publicar os números por concelho ? Assim não é possível o escrutínio da coerência dos números. E por que não privilegia os casos activos em detrimento dos novos infectados? É que são os ainda activos que são passíveis de transmitir o vírus e não o somatório destes, com os óbitos e com recuperados.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira