Alice Munro. Das palavras desta escritora não há quem se defenda

Alice Munro. Das palavras desta escritora não há quem se defenda


Alice Munro, Prémio Nobel 2013 é uma contista canadiana nascida a 1931 que tem em Portugal os seus livros editados pela Relógio D’Água. Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento com tradução de José Miguel Silva reúne nove estrondosos contos.


O primeiro conto dá o nome ao título, e depois deste seguem-se Ponte Flutuante, Móveis de Família, Consolo, Urtigas, Pilar e Viga, O que se Recorda, Queenie, O Outro Lado da Montanha.

São contos em carne viva arrancados ao banal, ao passado, ao presente, à casa, às engenhosas e fraturantes relações humanas. São contos sem direção, onde o leitor é incapaz de decifrar uma mensagem explícita. Munro não nos revela nenhuma moral, nem nenhum caminho, porque simplesmente o caminho são todas as direções, todas as fugas, cada desencontro, e nesse caminho não há espaço para personagens femininos frágeis, inocentes ou naïfs. Pelo contrário, em Munro o feminino é sempre duro, implacável, crispado. É um feminino baço, lodoso, desconcertado, sem fundo e por isso, em nenhuma das suas histórias assistimos ao poder do homem sobre a mulher, assistimos sim ao poder da mulher sobre a mulher e da mulher sobre si própria.  Ao poder de Edith sobre a amiga Sabitha no primeiro conto, ao poder de Alfrida sobre a sobrinha em Móveis de Família, ao poder de Polly sobre Lorna em Pilar e Viga. (p.209) «Polly casar-se-ia ou não, mas nunca seriam os homens a despedaçar-lhe o coração.»

Não, jamais, porque as mulheres de Munro são sempre fortes, atípicas, pouco amadas, pouco amáveis, pouco maternais, nunca demasiadamente bonitas ou vistosas, mas desconsoladas, solitárias, com vigas interiores capazes de suportar qualquer destino. Mulheres que de tanto esbarrarem e capotarem de frente com o real sabem como ninguém abraçar o golpe que dele sangra, sabem sorvê-lo e soprá-lo. Golpes com um travo ácido a ruína e a súplica, mas nunca a ruína e a súplica se desvinculam em Munro de uma ligeireza maliciosa, e é aqui que reside o ponto segredo da sua obra, a desdramatização.

Se por um lado, tudo parece acontecer de chofre a cada parágrafo, por outro, nada parece ter significativas consequências. O drama parece ter o peso de um grão de areia, em que o trágico e o cómico são o antídoto vital para o peçonhento e insípido arrastar dos dias. (p.19) “«Bom, hoje posso dizer que aproveitei bem o dia. Forneci o vestido de casamento a uma noiva feliz. É quanto basta para justificar a minha vida». A mulher atou ao embrulho uma fita cor-de-rosa, fazendo um enorme e escusado laço, depois deu-lhe uma tesourada malévola.»”

Esta ironia malévola e lustrosa é de facto sintomática em todas as suas narrativas, mas é com ela e por ela que somos incitados a infringir qualquer conduta de leitura, porque afinal «A leitura é a primeira virtude que se perde.» Esta citação de Saramago ilustra na perfeição o sentimento com o qual o leitor se depara assim que chega ao fim de cada conto, porque na verdade é isso mesmo que acontece. A todo o momento há nos seus contos uma névoa de virtude que aos nossos olhos se evapora e dissipa e isso faz-nos recuar a McCullers, sua escritora de eleição. Encontramo-la facilmente nos arredores das grandes cidades, nos ambientes de sucata, num camião amolgado, em mantas amarrotadas, nas almofadas desbotadas, em divisões nauseabundas, em tapetes tortos nos soalhos, em personagens que partindo um dia não voltarão mais. Na verdade, é no leitor que estes personagens parecem causar mais saudade «Durante todos os anos da nossa minguante amizade, nunca perguntei à Sunny por notícias dele, nem as tive.» (p.181) ou «Até que caí em mim e me convenci de que não era possível e que, fosse a mulher quem fosse, a Queenie me deixara para traz.» (p.262) Esta sensação de abandono, se pensarmos em todos os seus contos, não só os reunidos neste livro, mas também em outros como em Amada Vida, Vidas de Raparigas e Mulheres ou Falsos Segredos, está sempre presente. A maioria das suas personagens, é como se fosse a rigor trajada deste abandono, mas se isso nos causa uma tristeza profunda, somos no mesmo patamar a todo o momento acordados por um fio de podridão humana tão promíscua e ruidosa, que ao ser tão morbidamente retratada é capaz por si só de nos bofetear. É esse o estado do leitor depois de se ver envolvido no livro, e depois disso, não haverá um momento em que o leitor não se sinta trémulo, turvo, abalado, e de nada lhe servirá tentar defender-se, porque simplesmente não há defesa possível. Das palavras desta escritora não há ninguém que se defenda, e estas são acima de tudo palavras devastadoras com caules rijos e viperinos prontas a boicotar o sonho, a devoção, a entrega, qualquer herói. São palavras que arrastam pelo chão gotas de felicidade inútil sem margem para qualquer ilusão, porque “o desfecho é o absurdo, sem o qual a rota da mensagem derradeira está inçada de significado, e a incerteza de tudo está em toda a parte…”(Russel Edson).  Mas essa incerteza que tanto nos perturba, é a incerteza que também nos move e assim, embora não haja explicitamente uma revolta acintosa em relação a nada, testemunhamos um contornar satírico em volta de temas centrais como a conjugalidade, a morte (suicídio, eutanásia), a maternidade, como por exemplo em Urtigas (p.164) «Numa época de vida normalmente associada a um aturdimento reprodutivo, com a mente feminina integralmente empada de sucos maternais, nós ainda nos sentíamos compelidas a discutir Simone Beauvoir e Arthur Koelster e The Cocktail Party.»

Esta frase tem tanto de burlesco e irónico como de transparente, ajustado e incensurável, mas é este cinismo que consegue trazer à tona a sociedade flácida, pútrida e azeda em que as suas personagens sobrevivem e se movimentam.

Quando as palavras se apoderam de nós e nos trazem à paulada tantas incertezas nebulosas, quando as palavras se deixam tumultuar no leitor, quando o surram, quando o repelem e expulsam, há um clique, um alarme que se desperta, um alarme sem hora marcada, desesperado a encontrar respostas, só que em Munro não há respostas prometidas, há sim respostas chicoteantes, incontroláveis, iniludíveis. (p.173) «Poderia eu ter realmente assentado com um verdadeiro amor, e de algum modo ter-me livrado das partes em mim que não encaixavam, e ser feliz?»

Em Munro? Nunca, nunca, mas podemos calcorrear os seus contos, pisar do avesso os seus estradões movediços com a consciência de que carregar braçadas de segredos e contradições nos pode valer de muito. Podemos não ser felizes, mas essas partes que não encaixam nunca deixarão de fazer parte de um todo, e é do todo que Munro escreve. Desse “todo” intimista, titilante, muitas vezes irreconhecível por nós próprios.

Em Munro parecem nunca ter fim esses estradões cheios de bermas e ribanceiras com a morte (suicídio/eutanásia), a maternidade e o matrimónio sempre à espreita.

Se no primeiro conto o casamento ocorre por um mero acaso engendrado por uma brincadeira de duas raparigas diabólicas, em Ponte Flutuante deparamo-nos com um casamento aparentemente sólido de vinte e um anos entre Jinny (uma doente oncológica em quimioterapia)e Neal, que não chega a ser posto em causa por uma infidelidade dela com um rapaz com idade para ser seu filho. A infidelidade surge a cada passo entre as dobras dos casamentos, sendo por isso, outro marco fulcral na sua obra. Mas entenda-se, a mulher nunca é infiel ao homem, ela é infiel a si própria, daí não poder haver censura alguma, daí a sua conduta nunca ser ofensiva ou passível de julgamento. Se em Móveis de Família, o matrimónio paira na história como uma coordenada quase remota, mas ao mesmo tempo militarmente destinada «No fim de contas, em breve serás uma mulher casada.», em Consolo, o casamento de Nina e Lewis não chega a ser delapidado pela única vez em que Nina se envolve com Ed Shore (p.148) porque «o que acontecera entre ambos, ao longo de todos aqueles anos, fora mantido em equilíbrio pelos seus respetivos casamentos. Os seus casamentos eram o verdadeiro conteúdo das suas vidas, o casamento dela com Lewis, o por vezes desagradável, e desconcertante, indispensável conteúdo da sua vida.»

Também em Consolo acerca do comportamento conjugal de Lorna lemos (p.210) «Aceitara o casamento como uma grande mudança na sua vida, mas sem pensar que fosse a última. (…) Isto aconteceu há muitos anos. Em Vancouver Norte, onde eles viviam na casa Pilar e Viga. Quando ela tinha vinte e quatro anos e nenhuma experiência de acordos.»

Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, mulheres empossadas em obrigações, desgostos, homens insuflados. Mulheres pouco munidas de ruturas, porque as ruturas muitas das vezes podem significar novos acordos. Do Outro Lado Da Montanha.