“O Governo está a fazer a transposição da diretiva de maneira atamancada, atabalhoada”

“O Governo está a fazer a transposição da diretiva de maneira atamancada, atabalhoada”


Pergunta & Resposta com Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura do Governo de Passos Coelho que implementou a Lei do Cinema de 2012, atualmente em vigor.


Como tem acompanhado este processo de transposição da diretiva europeia para regular a presença nos mercados dos estados-membros dos operadores de streaming, cuja atividade não está enquadrada pela lei de 2012, da qual foi autor e atualmente em vigor?

O cinema português está numa situação completamente diferente daquela em que estava em 2010 e isso acontece por causa da Lei do cinema que agora se está a rever. Os financiamentos rondavam os 10 milhões e agora rondam os 20. O que a transposição desta diretiva permite não é de todo uma coisa grave por si, porque prevê a possibilidade de aumentar o financiamento ao cinema. Não existe uma colocação em causa do dispositivo de financiamento em vigor neste momento. O que se colocou agora em discussão foi o modo de transposição da diretiva e o modelo que o Estado português adotou. E aqui há duas ou três coisas que posso comentar. A primeira é que a técnica legislativa que o Governo adotou não me parece a melhor. Parece-me que a transposição da diretiva para a Lei do Cinema e para a Lei da Televisão foi feita de uma maneira atamancada, atabalhoada. Revela má técnica legislativa. Isso é uma questão de ordem jurídico-formal.

Que lhe parece de somenos?

Não é de somenos, claro que não. Depois, se falarmos do conteúdo, há coisas que diria positivas e coisas que considero negativas. É positivo que se aumentem as possibilidades — não considero que a proposta do Governo de obrigações de investimento fosse má. Acho que pôr taxas em tudo não é necessariamente o melhor caminho, porque se queremos envolver o mercado do cinema nas dinâmicas de produção em Portugal, dar oportunidade ao mercado de escolher no contexto de obrigações de investimento não é negativo. Antes pelo contrário, o que pode ser um desincentivo ao investimento em Portugal é obrigar a gastar de forma cega. É sempre preciso tentar encontrar um equilíbrio que não é fácil entre um modo de estimular o cinema independente e ao mesmo tempo não afastar as dinâmicas de mercado. Há sempre que gerar equilíbrios. Creio que não estou aqui a falar da perspetiva de quem não fez nada pelo setor do cinema; estou a falar tendo contribuído ativamente para duplicar o montante disponível para o cinema independente. Não vale a pena estar a dizer que as coisas têm que se fazer só porque há entidades que acham que tem de estar tudo nas mãos do Estado. Um país nas mãos do Estado é um país imóvel, um país parado. Qualquer país precisa da dinâmica de mercado e de concorrência.

Parece-lhe negativa esta proposta de que o sistema a adotar seja um sistema misto, que acresça a essas obrigações de investimento previstas na proposta de alteração à lei do Conselho de Ministros uma taxação obrigatória que reverta para o financiamento do ICA?

Nós criámos na lei de 2012 obrigações de investimento às televisões portuguesas. Não dissemos às televisões que tinham de passar certo tipo de cinema ou certos número de filmes concretos. Achámos que o interessante seria gerar dinâmicas que associam obrigações a dinâmicas de liberdade de escolha. E é aí que as obrigações de investimento associadas a taxas, que foi o modelo que colocámos em vigor, pode fazer sentido. Em relação a esta situação em concreto, creio que há por um lado a necessidade de perceber com clareza por exemplo ao que é que a Netflix corresponde no sistema de distribuição e audiências em Portugal.

Que é o que ninguém sabe até aqui. O trabalho está a ser feito com base em estimativas.

Ora bem. Está a fazer-se uma conversa sem ter os dados para a conversa à partida. Donde, com entidades como a Netflix, talvez possa fazer mais sentido gerar certo tipo de dinâmicas de investimento.
Mas se as operadoras de televisão nacionais são, como bem disse, taxadas além dessa obrigação de investimento, nesse sistema misto, parece-lhe justo optar só por um sistema de obrigações de investimento, excluindo taxas?
Acho que temos de ter noção dos montantes de que estamos a falar, e não temos. Imagine que se cria uma taxa associada a obrigações de investimento. Isto pode fazer sentido ou não. Imagine que a certa altura a Amazon nos diz “vocês estão a exagerar, não operamos em Portugal”. Tudo tem de ser feito com peso e medida. Mas para se fazer as coisas com peso e medida tem de se saber à partida do que estamos a falar. Mas então estamos a legislar sobre algo que não se sabe quantificar? Estamos a gerar taxas sobre algo que não foi quantificado previamente? Que forma de gestão é esta?

Compreende as desconfianças de parte significativa do setor, e falo do setor do cinema, de que esta transposição está a servir interesses dessas mesmas multinacionais cuja regulação se está aqui a legislar?

Posso compreender que essa suspeita possa existir. Portanto gostaria que o Governo tivesse feito o trabalho de casa que me parece que não fez e que esses dados fizessem parte dos documentos preparatórios da decisão que gera uma norma. Estar a criar taxas sobre montantes cegos é um pouco esquisito, não? Parece-me. 

Os valores que existem são estimativas. Parece-lhe uma discussão arriscada também para a definição de percentagens de valores de investimento?

Claro. Precisamente. Penso que isto vem de uma ideia estatista que é completamente exagerada. Isto da minha perspetiva, como é óbvio. Um país forte tem um Estado forte, empresas fortes e uma sociedade civil forte. Nós quando fizemos a lei de 2012 e a sua regulamentação em 2013 fizemos contas. Não tomámos decisões sem fazer contas previamente. É por isso que não consigo dar-lhe uma opinião clara da minha parte [sobre o melhor sistema]. Porque não tenho os dados todos.

Mas em relação ao argumento de não é pelo facto de estas operadoras de streaming não serem taxadas que o ICA perde a sua fonte de financiamento, não podemos alienar o fator da mudança dos hábitos de consumo, com a migração de parte do consumo televisivo para essas plataformas. 

Sim ou não. O Governo apresentou as estatísticas de consumo dos últimos anos e a previsão para os próximos três? Vamos falar de tendências em abstrato? Não consigo perceber como é que estão a ser tomadas decisões desta maneira nem como é que se governa assim.

Do ICA e do cinema português nos moldes estabelecidos pela lei de 2012 pode estar comprometido ou ameaçado?

Não me parece isso. Se for bem considerada, esta diretiva pode ser útil para o cinema e para a televisão em Portugal.

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