Um Animal Amarelo. “Todos nós temos um osso carregado  à cintura”

Um Animal Amarelo. “Todos nós temos um osso carregado à cintura”


Felipe Bragança abriu o armário das heranças do Brasil, de Portugal e das ex-colónias africanas. O i juntou-o à conversa com as atrizes Isabél Zuaa e Catarina Wallenstein sobre este seu mais recente filme, que acaba de chegar às salas. E que entre o épico e a fábula deixa os esqueletos todos à vista. 


Um cineasta brasileiro em Lisboa e duas atrizes, Catarina Wallenstein e Isabél Zuaa, para uma conversa a três vozes. Três lugares de fala a convergirem num: o peso do que não se fala para que do armário não saiam esqueletos nem fantasmas. Os fantasmas do que pesa, do que sobra ainda hoje, em Portugal como no Brasil e nos países das ex-colónias africanas, da história do passado colonial português. Para esse lugar empurrou Felipe Bragança em Um Animal Amarelo a personagem de Fernando, cineasta brasileiro “patético” e “ridículo” na sua vontade de fazer um filme do lugar do homem branco, o lugar dos “herdeiros escravocratas”. Criou-o como uma espécie de amigo imaginário que embarcará nesta viagem pelos territórios que constroem “o processo histórico de invasão das tropas portuguesas chamado de colonização”. Nessa viagem, cruzar-se-á com elas: na Beira, Moçambique, Catarina (Isabél Zuaa) e em Lisboa Susana — Susaninha (Catarina Wallenstein). Todos eles lidando com os seus traumas, traumas que não se curam no tempo de um filme, que ainda assim deixa expostos os esqueletos. Como o osso humano herdado de um antepassado que Fernando, cineasta “cagão”, carrega à cintura. “Este osso que todos carregamos à cintura e que, quer queiramos quer não, vamos carregando, sejam as histórias das nossas famílias, sejam as histórias dos nossos países, sejam as falibilidades da humanidade”, diz Catarina Wallenstein. “Todos nós temos um osso fémur carregado à cintura. Que pesa. E sobre o qual temos que ter alguma consciência”.

Propus que esta conversa se fizesse a quatro porque vocês os três acabam por representar este triângulo de lugares, representado também pelas personagens de Um Animal Amarelo, que o Fernando percorre neste quase épico que, num presente conturbado, vai desenterrando a História do Brasil — e com a do Brasil a de Portugal e a dos países africanos em tempos colonizados como parte do império português.

Felipe Bragança — Na verdade, a grande pulsão do filme, que vinha escrevendo há muito tempo, foram seis ou sete anos, é um processo meu. Sou da periferia do Rio [de Janeiro], da Baixada Fluminense, já tinha filmado muito um certo imaginário das culturas populares do Rio, de Carnaval, de samba, um imaginário que foi onde fui criado, onde cresci. Mas nunca tinha feito um filme que colocasse essas minhas referências pessoais, familiares, numa perspetiva histórica mais determinada. Quis pensar essa complexidade de referências de vida e cultural que tenho, de família, e das minhas referências como artista, como cineasta, nessa perspetiva de um processo crítico da História, frontalmente falando. As primeiras versões do guião tinham alguns referenciais do meu avô, um pequeno fazendeiro do interior de Minas, esse homem branco clássico.

Este avô do Fernando é inspirado então no teu avô?

FB — Não… O meu avô era um grande mentiroso. Era o clássico… a minha família é a clássica família brasileira dos livrinhos de História mesmo, é um produto de laboratório clássico. Meu avô era um gajo de origem portuguesa pobre que no Brasil virou um pequeno proprietário no interior de Minas que tinha um hábito não muito raro naquela época do machismo estrutural clássico que era: tinha uma esposa e uma família mas de vez em quando desaparecia. Passava meses fora, não explicava, passava um ano fora… e lá pelas tantas teve uma época em que ele desapareceu e ficou muito, muito tempo longe. Meu pai conta que teve que procurá-lo porque minha avó pediu e encontraram ele no interior de Minas Gerais morando numa pequena casinha de madeira que tinha feito para procurar pedras preciosas porque tinha entrado num delírio de que ia ficar rico. Essa é a referência original da história. Tudo o que ele [o personagem] fez durante esses períodos de desaparição, as referenciais da juventude dele são na verdade coisas que fui inventando a partir das minhas pesquisas sobre outros assuntos e as histórias que ia ouvindo em volta.

Mas nesse delírio do homem que desaparece e se isola numa cabana a achar que vai encontrar pedras preciosas temos o ponto de partida  perfeito para pensar o colonialismo.

FB — É um arquétipo mesmo de um certo universo de uma certa classe pobre rural portuguesa que foi para o Brasil no século XIX já. Nem estou falando da colonização clássica das invasões do século XVI, estou falando mesmo do século XIX. A outra referencial é que um lado da minha família é um lado de miscigenação negra e indígena — minha mãe é negra clara, tem as misturas todas brasileiras — e uma das primeiras premissas do filme era tentar fazer uma cosmogonia que misturasse essas origens todas. Em algum momento por questões de tempo, porque  não se pode em princípio fazer um filme de dez horas, comecei a fazer um recorte e a achar que para discutir o próprio processo de criação de um filme, da produção de um filme, de um discurso era mais interessante colocar o próprio filme como um produto de criação desse processo de ruína colonial que a gente vive até hoje. Para isso fui criando esse amigo imaginário, o Fernando, que é esse cineasta. As pessoas perguntam se sou eu mas as origens familiares do Fernando não têm nada a ver com as minhas. Parecem-se muito com amigos, pessoas de uma certa classe média intelectual carioca, mais do que brasileira, que tem muitos referenciais culturais da História brasileira mas vive ainda numa certa bolha de intelectualidade e que tenta de alguma forma organizar o que seria o Brasil, o que seriam os Brasis, e as questões brasileiras em que nalgum momento no século XX cantou ou decantou a ideia de uma utopia brasileira com uma miscigenação perfeita — a tal ideia do mestiço brasileiro como uma harmonia perfeita das questões de etnias culturais, territoriais, e que ao longo do século XX foi vivido, cantado um pouco, como uma utopia pronta. Por questões muito complexas o_século XXI foi abrindo essas brechas, essas cicatrizes, deixando claro que o Brasil nunca se resolveu com seus processos históricos. E isto está intimamente ligado, sim, com o processo histórico de invasão das tropas portuguesas chamado de colonização.

As personagens que vocês as duas interpretam são absolutamente estereotipadas. Representam o opressor e o oprimido, hoje e em todo o passado que carregam. Tanto em Lisboa e como na cidade da Beira, em Moçambique.

FB — O filme tem essa camada da farsa e da fábula. As pessoas têm a hipótese de serem mais do que aquela máscara, mas a gente trabalha dentro do registo da máscara e da hipótese de que tem alguma coisa por trás.

Catarina Wallenstein — Neste périplo intercontinental o Fernando vem do Rio de Janeiro, vai para a Beira, em Moçambique, e daí chega a Portugal, em Lisboa encontra esta Susaninha que é uma mulher… [pausa] uma mulher que está num sítio de encantamento. De algum arquétipo, como falavas, não só de Portugal…

… é que ela não é só terrível.

CW — Ela não é só terrível. Isso é que é muito interessante nestas personagens todas. Pensando em arquétipos, o lugar desta mulher não seria só o de Portugal e do papel de Portugal nestas relações, mas de alguma maneira uma herança de uma velha Europa. A Europa do fascínio pelo luxo, a Europa dos herdeiros, das tradições, das convenções sociais, das transações comerciais…

Ela diz: “Estou a pensar tirar o coração e pôr uma pedra preciosa”.

CW — Exatamente, essa frieza de quem pensa em tirar o coração e substituí-lo por uma pedra preciosa. Também a questão de uma certa falsa diplomacia: para mantermos a boa saúde, vamos não falar das coisas. Essa é um pouco a função que ela tem. Dentro de uma aparente simpatia e de uma aparente doçura maluca, ela é horrorosa. Mas tanto ri friamente e é meio maléfica como canta melancólica.

Exemplo disso é aquele momento em que, entusiasmadíssima, pergunta: “Vamos jantar todos? E os pretos também vêm?”

CW — Como se pudesse desculpar-se no status social, como se pudesse desculpar-se na sua doçura, no facto de ser mulher. Uma das coisas que acho mais interessantes neste filme é a analogia do osso: este osso que todos carregamos à cintura e que, quer queiramos quer não, vamos carregando, sejam as histórias das nossas famílias, sejam as histórias dos nossos países, sejam as falibilidades da humanidade. Como é que vamos carregando isso? Às vezes é apontado um caminho para as personagens — a Susaninha estava a escapar de uma herança e de um controlo — mas ele não se soluciona. Todos nós temos um osso fémur carregado à cintura.

Isabél Zuaa — Que é tramado.

CW —  Que pesa. E sobre o qual temos que ter alguma consciência. Uma das coisas que para mim são importantes é quando ela diz justamente “sem nostalgias e sem memórias, que é assim que mantemos a boa saúde”. Acho que Portugal está num momento em que tem de perceber que temos esse discurso há muitos anos instalado porque ainda temos muito medo de falar sobre as coisas. Uma reflexão pós-colonial infelizmente ainda assusta muito as gerações vivas, que têm medo de falar contra as gerações mais velhas que ainda cá estão, que ainda são herdeiras de uma ditadura que também nos silenciou e que fez uma exaltação patriótica cega. Acho que essa frase da Susaninha é muito representativa do sítio em que estamos sobre estas reflexões. É uma das coisas que temos que quebrar. É muito bom termos estas sessões especiais [seguidas de debates, no Cinema Ideal, em Lisboa, e no Cinema Trindade, no Porto] para podermos conversar sobre isto.

Também a personagem da Isabél Zuaa, a Catarina, juntamente com as do Matamba Joaquim e da Lucília Raimundo, tentam. Tentam, no fundo, reequilibrar essas relações de poder historicamente desequilibradas, mas não conseguem.

IZ — Tenho refletido cada vez mais sobre a forma como eles agem, e tenho pensado que mais do que agir eles também reagem a um desequilíbrio das relações abusivas, por parte de Portugal principalmente, que têm resquícios muito presentes e muito concretos. No caso da Catarina, ela é moradora do Grande Hotel da Beira, que simboliza o império em ruínas. Um hotel de luxo [hoje em ruínas], com uma piscina olímpica onde os refugiados e as pessoas que moram lá lavam as suas roupas e fazem a sua higiene. Um lugar pobre, que se tornou pobre, mas que é rico por natureza. Eles não precisam de ir a lugar nenhum procurar pedras preciosas, enquanto a Susaninha quer ter um rubi mas no seu território não tem rubi nenhum. E isso de alguma forma dá uma auto-estima e uma inflexibilidade a estes personagens para agir até com uma certa dose de vingança ou de reparação histórica, que tentam mas que acaba por não se concretizar. Porque em território não africano os corpos deles já não reproduzem as pedras. E as últimas pedras que tinham desaparecem.

FB — [risos]

IZ — Mais uma vez, não é? [pausa] A imagética que este filme traz, como uma mulher negra ter um homem branco a beijar os seus pés para poder relacionar-se com ela, é muito importante porque o cinema, como outros objetos artísticos, cria imagens e convenções e opiniões e discussões. Várias imagens que o filme propõe fazem com que possamos refletir sobre as nossas relações e como as vemos. A Catarina é o reflexo dessa violência histórica. Tenta responder, vem para Portugal, e tem essa força, tem essa forma áspera de se relacionar com o corpo branco em território branco. Mas essa reparação histórica não acontece ainda. Ainda não aconteceu no filme. Os filmes não têm de ter o propósito de apresentar soluções, mas é importante quando levantam questões. Como é que as pessoas aqui têm essa oportunidade de gerir riquezas que não são delas? E como é que continuam, com a maior displicência e com a maior naturalidade, a querer usurpar coisas que não são delas?

Essa questão de que falaste é muito simbólica: quando eles os três chegam a Lisboa, os corpos deles já não são os mesmos corpos. Como diz o Matamba: “Desde que chegámos a esta terra só cagamos merda. Merda, como toda

a gente”.

IZ — Ficam corrompidos. É essa podridão. Há essa ideia de que Portugal ou os territórios europeus são melhores para viveres, mas para aqueles corpos não é, de certeza. O cinema também perpetuou várias imagens sobre o que é ser-se um corpo negro, que tem a ver com a perspetiva de quem conta a história, a perspetiva de quem a escreve, a perspetiva de quem a produz, a perspetiva de quem a distribui. E as pessoas não se questionam. Baseiam-se em factos históricos contados por determinadas pessoas que são sempre as mesmas e não conseguem ter a capacidade nem a humildade, os artistas que se dizem super sensíveis, de entender que essa história foi contada num determinado contexto e com determinados poderes. É preciso mudar essas perspectivas, mudar essa forma de pensar o nosso passado e de o reproduzir em objetos artísticos. Porque o cinema também é responsável pela forma como tudo o que de positivo associado a corpos negros foi adaptado para uma coisa branca: Cleópatra, Nefertiti…

FB — Os filmes históricos…

IZ — … sempre colocados no corpo branco. Há um fetiche em perpetuar a imagem do negro africano destruído, pobre, escravo e sem capacidade intelectual. Há uma pretensão e há um fetiche em reproduzir isso.

Há uma explicação cultural, ritualística, para isso, mas isso não retira o peso simbólico a esta ideia de “white face” que encontramos nas personagens negras de Um Animal Amarelo.

FB — Fiz algumas viagens a Moçambique já no contexto do filme. Em pesquisa e falando com as pessoas nos tais lugares onde eu chegava e falavam “você não é tão branco… já conseguimos conversar com você”. Mas viajei muito por Moçambique por causa do filme, e reiteradamente em parte do artesanato, nos trabalhos em madeira, em pedra, porque fui mesmo para os vilarejos pequenos, me vinha sempre essa ideia, essa informação de que essa relação de pintar o rosto com pigmento branco estava relacionada com a ideia da conversa com os espíritos, com a ideia da morte. A palidez como morte, a hipótese de falar com outro plano. E dentro desse meu gesto meio antropofágico de ir assimilando essas cosmogonias todas, misturei essa premissa com essa ideia já tragicómica, dentro da estrutura fabular do filme em que eles teriam esse sonho ou esse projeto de encontrar um explorador branco, como eles dizem, um Indiana Jones, que o cinema reproduz como um gajo que vai descobrir tesouros que os locais não teriam capacidade de gerir. E ele aparece. Queria jogar com o questionamento do próprio corpo branco. Porque uma das questões é que o corpo branco — falando como brasileiro, homem branco, miscigenado mas colocado no lugar de poder desse homem branco — costuma não ser pensado.

No sentido de não questionado, sim.

FB — É o famoso zero absoluto central que acha que não existe porque não precisa de ser pensado enquanto tal. Uma das questões presentes enquanto fazíamos o filme era esta ideia de que precisamos desconstruir o lugar do homem branco. E eu ficava ali e pensava: “Eu acho que a gente precisa um pouco construir esse lugar”. De onde é que ele veio, o que é que ele fez, porque é que ele está ali, que lugar foi esse de poder que ele conseguiu historicamente? Isso é que é muito pouco falado. Quem é essa figura do branco intelectual brasileiro? Quem é essa pessoa? Quais são as suas origens? Para mim isto é muito claro enquanto pessoa da periferia que chega no Leblon, bairro de elite, e pensa: essas pessoas aqui, pessoas mais ou menos afáveis, são todas herdeiras escravocratas. Não tem jeito de fugir disso. Quer dizer, tem: há 100 anos que o Brasil tenta não falar disso. No Fernando tentei criar uma amálgama desse imaginário, com esse carregar de todas essas mortes ancestrais desse lugar de poder desse corpo branco que de uma maneira fabular e antropofágica os personagens moçambicanos absorveriam para dentro das efabulações deles falando: esse gajo talvez represente a morte, a espiritualidade, alguma coisa que transcenda. Aquela pessoa patética, ridícula, aquele cineasta à deriva podia ser esse lugar que era ao mesmo tempo uma ameaça e uma possibilidade de conexão ancestral. Uma das coisas que se fez no Brasil historicamente foi transformar o imaginário das culturas africanas e dos corpos africanos negros em alguma coisa que foi absorvida na sociedade culturalmente mas sempre num lugar de um certo exotismo. Quis fazer essa inversão: e se o corpo branco fosse colocado num lugar, exótico, mágico, e se lidasse com ele nesse lugar com o desconforto e as questões que se levantam aí?