Poderia ser já um décor para o próximo filme de Basil da Cunha: uma esplanada improvisada num lugar onde pouco sobra além de uma parede de tijolos, ao fundo. Há um discurso nesta dança de cadeiras velhas desirmanadas. Mas só quem não conheça este lado da Reboleira, o lado em que, para lá daquele já há muito tomado por prédios, a Câmara da Amadora tem vindo a demolir casas. Não nos últimos meses, não durante a pandemia. Daí que ande já por aí Basil da Cunha às voltas com o que há de ser o seu próximo filme. Aqui na Reboleira, claro. Para o seu cinema não tem existido outro.
E esta sala de estar a céu aberto é o quê, afinal? “É o nosso escritório”, brinca falando a sério. Pediu ele próprio que nos encontrássemos aqui. Porque enquanto vai montando o puzzle de personagens que dará o seu próximo filme há outro que, depois de Locarno, em 2019, e do Indie Lisboa, neste mês de setembro, acaba de chegar agora às salas: O Fim do Mundo, chamou-lhe, e às múltiplas leituras deste título já iremos. Esse fim do mundo que retrata na sua segunda longa-metragem é a história de Spira, um adolescente de regresso ao bairro ao fim de oito anos numa casa de correção. Spira com os seus problemas, Spira com os problemas do bairro, Spira à procura de uma maneira de viver, Spira entre Giovanni e Chanti, a sua trupe – como os moradores deste bairro se tornaram ao longo dos anos na de Basil da Cunha.
Há que o seguir por estas ruas íngremes e estreitas acima à procura de alguns dos atores do filme. Acabaremos no quintal da casa de Iara, a miúda por quem o protagonista se apaixona – mas só na ficção apenas, esclarece ela. Neste jogo entre o que é real e o que a ficção inventa, são quase sempre ténues as fronteiras. O filho de Iara, por exemplo, era bem real, e cresceu entretanto. Tinha dois meses quando foi rodado o filme, foi para Iara um esforço hercúleo participar nele. Mas a relação com Basil, que com a mesma comunidade rodou já a curta-metragem Os Vivos Também Choram (2012) e a longa Até Ver a Luz (2013), ambos estreados em Cannes, vinha já de há anos.
Diego nasceu e o realizador trouxe-o para o filme – filme que de resto foi reescrevendo à medida que viu os protagonistas fazerem-se homens, e sem pena da história que ficou por contar. Assim funciona o seu cinema. “Tinha uma ideia de um filme épico, de uma explosão de uma retroescavadora. O filme era um filme sobre uns putos que salvavam o bairro”, que estava já em processo de demolição. Era um teen movie com retroescavadoras. E os putos salvavam o bairro enquanto os adultos estavam divididos entre eles. Não demorei assim tanto tempo a fazer o filme, mas os putos crescem bué rápido e ao fim de dois anos, olhei para eles… Reescrevi a história mesmo em cima da hora e durante a rodagem. Para eles”.
O resultado foi um filme na fronteira: à falta da inocência, escreveu para a perda dela. O seu fim num paralelo com o fim anunciado deste bairro. “Como já não podia fazer um filme sobre a inocência, fiz um filme sobre o fim da inocência, o fim do bairro e as lutas que esses putos travam. Isto é completamente diferente da ideia inicial, mas como o nosso cinema está interligado com a realidade temos de estar sempre a adaptá-lo”.
São raras as vezes em que Basil da Cunha fala no singular. Para ele, o cinema é isto: o gesto coletivo de retratar uma realidade a partir de dentro. “Escrevo para as personagens, pessoas que se tornam personagens. Tudo é escrito, todo o elenco antes de começar a escrever já está pensado. depois a escrita é tributária dessa realidade”, explica sobre o seu processo e sobre a razão pela qual, na dúvida, se muda a história, nunca os personagens. “Estás a ver o Cassavetes? O Cassavetes tinha uma trupe, uma família de atores, que é também o que eu tenho”.
Goodfellas ou um Ícaro com asas de fogo Difícil será perceber-se se Basil da Cunha descobriu a Reboleira ou se a Reboleira o descobriu a ele. Antes de começar a filmar aqui, realizou uma primeira curta-metragem, vivia ainda em Lausanne, na Suíça, onde era filho de imigrantes como são os filhos dos cabo-verdianos nascidos aqui. Depois aconteceu ter conhecido um dia uma miúda no metro e ter resolvido mudar-se para Portugal. À procura de uma casa barata foi dar à Reboleira, a um prédio demasiado perto deste bairro para que não começasse a filmar aqui. Também por aquilo que acredita ser o cinema – além do seu, aquele que sempre lhe interessou enquanto espetador.
“Venho para cá e o que é que eu vejo? Exatamente o mesmo que na Suíça: vou ao cinema e vejo atores, atores que não são parecidos com as pessoas que me rodeiam. Sempre achei que as pessoas que me rodeavam tinham um potencial cinematográfico do caraças, como os protagonistas dos meus filmes preferidos, dos buddy movies dos primeiros anti-heróis americanos. Gajos bêbados, que fumavam, que tinham problemas com as mulheres, filmes com protagonistas parecidos com a malta que eu conhecia, personagens que sempre achei que mereciam estar na tela”.
Filmes tipo Goodfellas. “É um filme que vejo se calhar uma vez por mês, mas só vejo 70% do filme, os primeiros 70%, porque o Scorsese tem aquela mania de merda de trazer o moralismo para o filme. É sempre sobre alguém que sobe, depois as asas queimam e o gajo cai. Há sempre um lado moralista que detesto. O que acho engraçado são os momentos da vida desses gajos. Quando ele traz o moralismo já acho que não tem graça nenhuma”.
Daqui não se estranha que não se encontre esse moralismo em O Fim do Mundo, que descreve como “uma chapada sem mão”, e não chega a completar a frase, mas acrescenta: “Acho que este filme não tem moralismo mas também não mente sobre o que é a realidade. Uma realidade que acho que as pessoas têm que ser capazes de suportar. Ninguém escolhe ser isto ou aquilo: as pessoas estão na luta”.
E voltamos à forma de trabalhar de Cassavetes. Não haveria outra forma de retratar a realidade das margens com a crueza com que Basil da Cunha a retrata. Enquanto um bairro se desmorona, há três miúdos que se fazem à vida pela pequena criminalidade, julgando não haver para eles outro caminho possível. “Quando estávamos em Locarno o Chanti disse que o filme mostrava aquilo que eles são e que muitas vezes não queriam ser. Sobre aquilo que a vida os obriga a ser”, recorda sobre as palavras de um dos protagonistas aquando da estreia internacional de O Fim do Mundo. “Então, acho que é um filme com carinho, humanidade, com muito amor pelas personagens. Quem vê o filme vê essa humanidade, acho que não há como não ver”. E acrescenta: “A partir daí, não vamos esconder aquilo que existe. O filme é um documento sobre uma realidade que está na sombra e que reflete o que se passa quando as pessoas não encontram outras soluções”.
Iara, por exemplo, fala-nos sobre o seu amor pelo bairro mas sobre como gostava de o deixar, só para que o seu filho crescesse num lugar com outras oportunidades. Acredita também que se a sua família não se tivesse mudado de Oeiras, onde chegou a viver, para a Reboleira, onde passou boa parte da vida, talvez tivesse continuado os estudos que interrompeu assim que foi mãe.
E torna: “Quando o puto diz que não é atrás do computador que vai fazer guito eu concordo. É uma ilusão que temos isto de pensarmos que por estarmos todos interligados tudo é possível. Sabemos bem que isso não é a realidade. Esse puto acredita por exemplo nos códigos de valores dos bandidos à moda antiga, valores que para mim são muito mais respeitáveis do que valores que por aí se defendem hoje em dia”. Talvez uma afirmação assim careça de uma clarificação, e o realizador explica: “Acredito muito mais na visão que ele tem do mundo, porque não quer ser escravo de ninguém. Enquanto houver desigualdade no acesso ao trabalho, à habitação, enquanto houver repressão da polícia e racismo…” Enquanto tudo isso existir talvez seja difícil dar-se com um vislumbre de luz. “Acho que eu faria o mesmo. O filme mostra essa realidade, que é dura, mostra as dificuldades, mas também tenta ir buscar a comédia, a poesia e a esperança que há nas pessoas”.
De forma quase paradoxal, assim convivem em O Fim do Mundo um misto de resignação e de revolta contra um sistema que quase sempre exclui, raramente agrega, com uma mensagem de esperança no aparente impossível. Uma esperança poética quase, como a sequência final em que, num enterro fúnebre, Basil da Cunha percorre um a um os rostos dos moradores do bairro, frente às suas casas. “Achei na altura que era o último filme que ia poder fazer cá. Estava a ver o bairro a desaparecer e como todas essas pessoas eram pessoas sobre as quais queria escrever histórias decidi pô-las todas lado a lado. Acho que se vê nas caras que contam mil histórias”.