Feira do Livro do Porto. A arte de fazer pelos livros o que foi feito pelas tripas

Feira do Livro do Porto. A arte de fazer pelos livros o que foi feito pelas tripas


Chegaram ao fim as feiras do livro do Porto e de Lisboa, e, se a capital continua a ser a grande montra deste sector, com mais do dobro dos pavilhões, em ano de pandemia, os Jardins do Palácio de Cristal receberam 100 mil visitantes, e os livreiros estavam radiantes com as vendas, num evento cultural…


Gostamos de voltar aos lugares que parecem só o pouso de aves migratórias, urdidos por entre a névoa, que tal como aparecem debandam, como estações rituais, esses mundos esporádicos que nos lembram os territórios infixáveis, movediços, que são próprios dos sonhos. Na nossa época, destituída de sonhos épicos, que substituímos por sonhos de pilhagem, como nos diz Alberto Manguel, a ilusão de imortalidade é criada pela tecnologia, e esta tendência foi agravada pelo período de confinamento e pelos constrangimentos que a pandemia nos tem imposto. “A Internet, e a sua promessa de voz e lugar para todos, é o nosso equivalente do mare incognitum, o mar desconhecido que atraía os viajantes antigos com a tentação da descoberta”, adianta Manguel, que há dias se tornou um dos poucos cidadãos honorários entre o contingente cultural que subsiste entre a fanfarra desta Ulisseia de desvarios encalhada à margem de todos os mitos e nenhum. Acontece que a realidade digital tem provado a sua volatilidade, e se se mostra “tão imaterial como a água, por demais vasta para qualquer apreensão mortal”, as suas qualidades notáveis, vinca o ensaísta argentino-canadiano, “permitem-nos confundir o inapreensível com o eterno”. Ora, os livros flutuam nestas águas como destroços de um naufrágio de uma ilusão fabulosa e antiga, a que seria possível “reunir num único lugar a nossa vicária experiência do mundo”, esse mito que se ergue a pouco e pouco, resgatado ao caos, numa descrição ordenada que permite à memória fantasiar com a ideia de ter engolido o mundo, ou, pelo menos, uma parte apreciável deste. Qualquer feira do livro, se a sua oferta for suficientemente diversificada, alimentará pelo menos a ilusão dos leitores que buscam reconstituir uma ideia do tempo como um espaço navegável, servindo-se desse ofício que permite trazer fragmentos de passado e, com eles, levantar um dique que segure a marcha avassaladora do presente. Manguel recorda-nos no livro “A Biblioteca à Noite” que a Internet, ao contrário do que se imagina, não significa o triunfo de todos os registos, não é a crónica insana e inflada dos mais penosos pormenores, não é um espectáculo do todo, mas deixa-se corromper da mesma forma que as bibliotecas materiais, lavrando no território digital os seus fogos, e à medida que o presente se expande, o passado não deixa de ser sujeito a efeitos de erosão e desgaste. Assim, 70% das suas comunicações duram menos de quatro meses, e “a sua virtude (a sua virtualidade) implica um presente constante – que, para os eruditos medievais, era uma das definições do inferno”, adianta Manguel. Este apaixonado da leitura defende que “todo o leitor existe para assegurar uma modesta imortalidade a um determinado livro”. Adiantando que “a leitura é, nesse sentido, um ritual de renascimento”. De algum modo, alargando esta noção, eventos que se repetem anualmente como as feiras do livro trazem os livros para o centro de cidades cada vez mais avessas ao comércio livreiro, que se distingue pela pacatez, por uma lentidão e demora que se têm visto expulsas das zonas nobres, marginalizadas, e com elas esses encontros num contexto livresco, num ambiente regido pelo dom da selecção, pela atenção a pormenores dignos de serem registados, essas ocupações de colecionistas, alfarrabistas ou trapeiros, essas zonas que retraçam velhas tradições e tempos cada vez mais reprimidos, esses espaços apátridas, carregados de despojos, essa textura que se liga ao próprio conteúdo das coisas. Esse mundo em desaparecimento acelerado, consegue reaver por algumas semanas a sua nobreza, como se aportassem de uma só vez frotas de navios perdidos, como se a uma realidade submersa e fantasmática fosse dada a oportunidade de, ciclicamente, voltar à superfície, relembrar um vínculo que se perdeu, um modo de reclamar a cidade na articulação entre os cafés, os jardins, as livrarias e tantos outros lugares sem taxímetro, frequentados por personagens que se esfumaram do nosso quotidiano, vultos sedentários ou errantes, isolados ou membros de alguma confraria buliçosa, as figuras que davam espessura ao próprio tempo, fundeavam nele as suas âncoras, longe desse frenesi que só produz confusão, náusea e um imenso cansaço.

Desde que a autarquia liderada por Rui Moreira tomou conta das operações, a Feira do Livro do Porto passou a inserir-se nos jardins do Palácio de Cristal, e, ao invés de ocupá-los simplesmente, estrangulando o espaço, margina-o, de forma leve, espaçada, aberta, descentrada. Por sua vez, a de Lisboa, no Parque Eduardo VII, torce os nós, alardeia a cada edição que são mais os editores, mais os pavilhões, mas as dores de crescimento produzem já uma certa tontura, e segue urdindo aquela malha tensa, entorpecedora para a vista, com os pavilhões dispostos como num arquivo, invisíveis de tantos ângulos, tapados, espremidos. No confronto entre as editoras e grupos editoriais que ocupam vários pavilhões, algumas criando zonas próprias, arquipélagos que se autonomizam, a sensação com que se fica ao passear pelo recinto é que, na evolução das últimas décadas, tem vindo a decorrer uma espécie de batalha naval, e se antes o espaço era mais uniforme, com pequenas embarcações cujas modestas tripulações não se cansavam de remendar as redes, numa mostra bem mais vibrante, em que os livros antigos e em segunda mão tornavam muito mais gratificante a tarefa do caçador de tesouros, hoje, dominam as montras estáticas, com as novidades da estação em destaque, e o olhar corre por ali em vez de garimpar a selecção de cada uma das bancas. Para isso, o acesso mais democrático dos livreiros e editores aos pavilhões é um aspecto decisivo, contraposto ao leilão em que se vai elevando a parada e excluindo as explorações mais modestas e, tantas vezes, mais empenhadas e fantasiosas. Se a feira de Lisboa é cada vez mais um reflexo do mercado, evidenciando aqueles grupos que têm já uma posição dominante no sector, a feira do Porto, que foi refundada, com a autarquia a tomar conta da sua organização de “fio a pavio, desde a burocracia toda ao processo de selecção, etc.”, diz-nos Nuno Faria que foi pensada como um encontro literário. Desde há pouco mais de um ano à frente do Museu da Cidade (“museu rizoma, à escala da cidade do Porto”), Faria refere que a forma como a Feira do Livro passou a guiar-se pela estratégia de articulação das várias propostas do município prende-se com uma necessidade de refundação completa da vida cultural portuense, a qual, “durante 12 anos, no magistério de Rui Rio, foi completamente negligenciada e destruída”. “Houve quem dissesse que era mais fácil construir a partir das ruínas, mas a mim parece-me que isso não é, de todo, verdade”, vinca Nuno Faria.

“Há um esforço para que neste lugar emblemático da cidade as interacções vão muito para lá dos aspectos comerciais. O livro mantém essa centralidade, desencadeadora da sua própria fauna e flora, entre livreiros, leitores…” O que distingue a Feira do Livro do Porto, garante Faria, é ir para além da geral traficância, propondo uma experiência de contemplação, até pelo projecto sonoro que, numa abordagem parcimoniosa, anda de volta do silêncio, e honra-o com um claro destaque. Também a oferta cultural não é um atasqueiro, uma simultaneidade de ‘eventos’ que deixa aquela sensação de formigueiro na vista de quem consulta o programa que, depois, surge como uma sucessão despegada de propostas, tantas delas nesse registo tão característico da nossa vida cultural que é o da improvisada rebaldaria.

O que é preciso é criar osso, essa estrutura que reside debaixo das coisas e lhes dá forma, que ampara os músculos, e, nesse aspecto, Nuno Faria diz que o propósito foi não só ter diversidade mas explorar o que é isso de um regime democrático, que exige a integração de várias franjas, camadas sociais, uma expressão tão ampla quanto possível das existências que dão relevo à vida dos livros. Isto só é possível porque o preço que é pedido a cada um dos participantes se cifra numa quarta parte daquilo que é pedido pela APEL em Lisboa. E, para ajudar livreiros e editores a fazerem frente à pandemia, e à “situação de agonia em que muitos se encontram”, apenas lhes foi pedido 20% dos 500 euros que custa cada pavilhão à cabeça, com o resto a ser pago no fim. Para o responsável da organização, a feira é pensada como um evento popular, o que não exclui um certo requinte. E o facto é que os livreiros que consultámos se mostraram muitíssimo satisfeitos com as vendas, ao passo que em Lisboa os colegas se mostravam desapontados no final da 90.ª edição da feira, tendo esta tido um arranque excepcional, com um primeiro fim-de-semana muito concorrido, para logo de seguida despencar.

Com os seus 120 pavilhões, o Porto recebeu este ano 100 mil visitantes ao longo de pouco mais de duas semanas – bem menos do que a APEL estimava receber, tendo indicado que esperava o mesmo número de visitantes dos últimos anos (perto de meio milhão de pessoas, a fazer fé nas suas miríficas projecções). O Parque Eduardo VII viu diminuir residualmente o número de pavilhões face à edição do ano passado, mas o número de participantes aumentou, com os livreiros e editores a beneficiarem de uma redução de dois terços no custo dos pavilhões, mesmo assim um valor um pouco acima daquele pedido pela organização da feira do Porto.

Outro sinal distintivo entre as duas feiras andava no ar. Em vez da voz que soa sobre as cabeças latindo a programação, avisos e anunciando os escribas de plantão, alguns presidindo a essa missa em fila indiana, assinando autógrafos, e outros com aquele ar suplicante, de quem atira o olhar à sua volta, aguardando que algum leitor compadecido morda o pobre isco e se deixe puxar, no Porto foi criada uma rádio, com o já aludido projecto sonoro a dividir-se entre leituras pontuais, gravações de sons de naturezas exóticas, artifícios que expandiam o horizonte interior, com o jardim a ser transportado por uma série de sugestões estranhas, inusuais, intervenções que, não apenas não mascam os nervos, como ajudam a criar uma atmosfera.

Já na conversa com os livreiros presentes na feira do Porto, vários referiram a predominância de leitores jovens, e fosse Arnaldo Vila Pouca, da Flâneur, ou Miguel de Carvalho, cuja livraria leva o seu nome, ou mesmo César Santos, cuja livraria e editora – a Booki – é especializada em livros técnicos, garantem que uma surpreendente maioria de visitantes que lhes compram livros andam pela casa dos vinte anos. Miguel de Carvalho diz que 80% das suas vendas foram a leitores bastante jovens, e adianta que não lhes preocupa que os livros estejam nas melhores condições, mas que sejam baratos. “É para ler que os querem”, afiança. Por seu lado, Arnaldo já não se espanta, e vinca que o que foi fazendo o sucesso da livraria que criou com Cátia Monteiro há cinco anos foi a capacidade de estabelecer esse vínculo com essa essência em movimento, a juventude. Já sabemos que se trata de um persistente mito, “uma idade falsificada ou um feitiço”, nas palavras de Paul Nizan. O autor do “Adém, Arábia”, recentemente reeditado pela VS Editor, e que arranca com uma das mais célebres e desoladoras frases da literatura moderna: “Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida.” Mais tarde, Nizan seria um dos mais ferozes na hora de julgar a juventude, considerando-a uma idade artificial, que foi e é fabricada, afirmando que é, por excelência, a idade do inautêntico. O certo é que a juventude dos nossos dias não se confunde já com aquela que teve vinte anos há um século, a dos filhos transviados de burgueses, que um desvio “leva para fora dos caminhos do comércio”, para as profissões de “criadores de álibis”. A geração que vive hoje a sua juventude desperta para um mundo assombrado por uma série de ameaças existenciais e que não lhe dá margem para viver plenamente “esse grande tédio abstracto”, na expressão de Sartre. Segundo este, a leviandade sinistra e a agressiva futilidade que caracterizou aquela geração devia-se a tantos desses jovens não terem encargos nenhuns e serem irresponsáveis por natureza. Esse é um luxo a que, hoje, nem os “jovens burgueses” se podem dar, a menos que estejam de tal modo investidos em alienantes noções de empreendedorismo, na busca constante do lucro, ou nalguma forma de frivolidade, dedicados a divertimentos desses que procuram guardar uma distância de segurança face à própria realidade. Mas não é esse o retrato que se retira passando algumas horas na Feira do Porto, vendo como os jovens vasculham entre murmúrios as estantes, como se dirigem aos livreiros para pedir Proust, Musil ou Camus, como o sucesso da secção de filosofia, composta em boa parte pelos clássicos da Guimarães, e que Miguel de Carvalho se lembrou de trazer da Figueira da Foz se tornou motivo de conversa, com Duarte Pereira, da Livraria Snob, parceiro num amplo pavilhão que partilhavam, a gabar-lhe a ousadia que saiu recompensada. Assim, se há muito se diagnosticou um desmoronamento da juventude, começam a despontar certos, curtos sinais de que a consciência começa a reclamar algo mais que uma adolescência eterna e miserável, até porque, face ao mundo que irão herdar, aos jovens não basta hoje que vivam na aparência da boa vontade. Para que lhes seja possível resgatar o planeta aos excruciantes abusos a que está submetido, têm de se assegurar que contrariam a acusação de Nizan de que “a juventude é a idade do ressentimento”. Tornou-se uma questão de sobrevivência a de garantir que no fundo da sua política não há apenas metáforas e gritos, mas uma esperança indestrutível, animada pela grande cólera daqueles a quem é prometido um sofrimento absurdo se nada for feito para reconstruir um mundo que desaba.

No balanço da sua actividade, outro aspecto em que coincidiram os livreiros com que falámos foi no reconhecimento da importância de se travar essa desenfreada fuga em frente dos descontos constantes. Os livros estavam com descontos que começavam nos 20% e iam muitas vezes até aos 50%, mas isso não impedia que os livreiros fossem questionados sobre se não tinham uma secção de saldos. Ou seja, se muitos visitantes perguntavam por este ou aquele autor ou título, não faltavam também aqueles a quem só interessam os livros enquanto pechinchas. César Santos denunciava o ambiente desolador que a política de descontos sistemáticos está a gerar, e que não tem paralelo em nenhum outro sector. Além do ridículo de, no cálculo do preço de capa, a maioria das editoras inflacionarem logo os 10% que a generalidade das livrarias abate logo à partida, tudo o que não sejam novidades (livros com menos de 18 meses) está sujeito a um número infindável de campanhas, o que cria no leitor a impressão de que, se tiver pressa, caso não aguarde para que a maré inflacionária baixe, passará por tanso, pagando até o dobro do preço por um título que, semanas mais tarde, poderá figurar nalguma montra liquidatária. Nesta correria insana, os livros aparecem como produtos imensamente nervosos em relação ao seu valor, e nunca isto é mais evidente do que nas feiras, e sobretudo nas bancas dos alfarrabistas e livreiros independentes, em que se assiste amiudadamente a situações em que os livreiros são sacudidos, empurrados para sessões de regateio que dão a sensação de que se trata de uma transacção feita num mercado grossista. Um episódio caricato a que assistimos, opunha aos livreiros um ex-ministro da Cultura que se fixava na escolha dos livreiros-alfarrabistas: fato e gravata, aquele ar de eminência próprio de um desses donos dos grandes escritórios de advogados, elevando uma pilha de livros em poucos minutos e com uma certa displicência, para depois chamar a si o livreiro, perguntar o preço e oferecer-se para pagar um pouco mais de metade do valor pedido. Tudo feito com aquele sorrisinho arreganhado de quem finge uma certa afabilidade e confiança quando, na verdade, procura constranger o livreiro que está ali há horas, de pé, e tem de aturar de tudo, até a avarícia desses que erguem as suas bibliotecas como monumentos de desdém, pedindo atenções sobre livros já em saldos, e a homens para quem baixar o preço, em muitos casos, é um cálculo de sobrevivência. O desconto não foi feito e, depois desta cena, o livreiro confidenciava a falta de paciência para o ex-ministro, que o levava a alhear-se quando por ali passava, interessado em saber o que havia de novo. “As novidades que trouxe já foram vendidas”, ouvíramo-lo replicar um quarto de hora antes.

O que ilustra este episódio como tantos a que assiste quem quer que se demore pelos pavilhões é a forma como o mercado dos livros tende hoje a compensar sobretudo os leitores desapaixonados, os cínicos, aqueles para quem tanto dá levar este livro ou aquele, pois tudo corresponde a um mero capricho, intrigas ténues: um jogo. E a indústria que tomou conta do sector, e que alimenta esta desconfiança de que um livro vale sempre menos do que o preço marcado, e que parte sempre inflacionado para percorrer, então, essa via humilhante até acabar vendido ao peso, esta indústria castiga os seus últimos entusiastas, pois se finge beneficiá-los, baixando os preços, o que consegue ao fim e ao cabo é desvalorizar sucessivamente espécies cuja sobrevivência está vinculada a esse prestígio de não se olhar para os livros como volumes de papéis sujos de tinta, mas como instrumentos que, no seu labiríntico interior, nos ensinam a reconhecer o que há em nós que merece continuar vivo mesmo quando estivermos mortos, pois, como afirma Stefan Zweig no memorável final de “O Mendel dos Livros”, “os livros só se escrevem para, depois de deixarmos de respirar, unir os homens e defender-nos perante o inexorável reverso de toda a existência: a transitoriedade e o esquecimento”.