1.«Para que aprendemos isso se isso não vai ter importância nenhuma na minha vida?», eis a frase “mais homicida” (p.30) que um professor pode ouvir, confessa o docente de História que não recorda a última vez que aprendeu a calcular o seno, o co-seno e a tangente – a que nunca regressou no resto da vida -, sabendo, saboreando ainda, porém, a sensação, a emoção, o prazer de acertar naquelas operações matemáticas. Esse hélas!, essa inusitada e inolvidável felicidade inerente a cada descoberta (novo horizonte de conhecimento alcançado, nas mais diversas áreas/disciplinas), exige persistência, demora, sintonizar com a apropriação daquela matéria/problema/questão pelo aluno: “ninguém nunca ensinou coisa nenhuma a ninguém. Tudo o que cada um de nós sabe, todo o acumulado de cultura que coligimos na vida, não passa de uma construção pessoal. Mesmo quando há uma epifania (…) e pensamos «nunca tinha pensado nisto» (…) estamos a processar e a digerir o que acabámos de conhecer. Esse é o momento da aprendizagem” (p.31). Apprehendere: trazer para dentro, tomar posse.
2.Pelo despertar da faísca, do interesse, de uma convocatória nem imaginada pelo destinatário, pela capacidade de falar não para setenta e seis ou oitenta por cento (do seu auditório), mas para uma inteira turma, pela intuição de seguir o rio de uma ingenuidade que há em cada qual, pela emoção que o atravessou e perpassou a aula, pelo colocar em causa da metodologia que prosseguia, mesmo quando bem-sucedida, o professor não apenas disponibilizou/deu com a chave que permitiu ao aluno a aprendizagem, como, sobretudo, foi membro de um corpo (escolar) com uma marcante folha de serviços: “nenhuma instituição em Portugal tem para apresentar no seu histórico tanto sucesso como o sistema público de escolaridade. São milhões os rapazes que entram nas escolas sem esperar nada dali e dali saíram fortalecidos, instruídos e esperançados, rompendo com décadas de exclusão social e cultural a que as suas famílias, geração após geração, haviam sido votadas. São aos milhões as raparigas a quem a escola e as academias proporcionaram uma dignificação que nunca mulher alguma obtivera antes de si. E muito deste sucesso é devido ao que estes homens e mulheres a que chamamos professores puseram de si mesmos nos dias, semanas, meses e anos passados com estes meninos e meninas” (p.28).
3.Não se confunda isto com um elogio fácil, em causa própria, pelo autor, Rui Correia, vencedor do Global Teacher Prize Portugal 2019, antigo external expert em educação para a Comissão Europeia e vereador da Câmara Municipal das Caldas da Rainha, em Cá dentro. O lugar da escola nos nossos miúdos (Guerra e Paz, 2020). O ensaísta é, igualmente, claro ao constatar que “a escola não é inclusiva” (p.28) – e não apenas, mas também, pela inevitabilidade de uma humana instituição não atingir a perfeição. Em realidade, “falhamos demasiado”. E em que falhou a escola e o professor que, com o recurso à segunda pessoa do plural, assim se inclui (mesmo que solidariamente), nesse não atingir (por completo) do desiderato pretendido (a saber, fornecer a cada pessoa jovem em formação os instrumentos necessários ao seu aplicar-se ao estudo das coisas, descobrindo quais as que o motivam a erguer-se, brioso e empenhado, nos futuros prometidos)? Eis o seu elenco: falhou a aula abúlica, burocrática, sem emoção, incapaz de acender a chama mínima no aluno; foi insuficiente a empatia do professor para com os “miúdos”; esteve aquém a curiosidade pela vida fora da escola dos discentes – que tanto condiciona o seu desempenho (no interior daquela); não houve, como devia haver, o espaço concedido ao singular, atenção ao que pode estar a despertar (em) cada um; assentou-se em um ensino excessivamente virado para a classificação em detrimento do conhecimento; não existiu, por parte da sociedade (incluindo os seus enlaces institucionais e legislativos), cabal e justa consideração pelo professor e sua autoridade, colocando-o, em definitivo, em causa senão em cheque, levando-o à exaustão, à desmotivação, à desistência mesmo; encarregados de educação fizeram notar-se por nunca terem ido à escola (sobretudo os que mais necessitariam de ali marcar presença)…
4.Não raro, reclamamos tudo da escola. Porque não ensina mandarim, árabe ou cirílico? Porque não reforça o ensino artístico? Porque não introduz ou robustece cadeiras de programação? Porque não há uma disciplina de História da Cultura? Porque não torna obrigatória uma disciplina de Literatura universal para a generalidade dos alunos? Porque não ensina desde cedo os rudimentos dos trabalhos manuais imprescindíveis à sobrevivência (em casa)? “A escola não serve para se ensinar tudo. A escola serve para garantir que as pessoas desenvolveram a capacidade de aprender tudo” (p.53). De resto, ao professor é acometido esse exercício de imprevisibilidade que deve conseguir construir em torna da sua aula, apresentando como único o que agora oferece ao aluno. Este, idealmente, recordará o que, afinal, já sabia, quanto gosta de aprender: “é indesmentível que todos gostamos de aprender. Não existe uma única pessoa no mundo que não goste de aprender. Pode é não gostar de ser ensinado. Ou da forma como é ensinado” (p.50).
Se o professor se confronta com a angústia das distracções discentes e, bem assim, da relação que estas podem ter com as limitações com que expandiu esse espicaçar que sempre persegue é por compreender, melhor do que ninguém, que aquela chispa pelo saber é o sagrado que lhe foi confiado: “ser professor é a profissão mais sublime do mundo” (p.50), “não há profissão mais honorável do que a de professor” (p.101).
5.Faltam, hoje, adverte Rui Correia, os professores-estrela que outrora agigantavam escolas com suas manias e brilho, seu desdém pelas rotinas e uma impressão digital feita de avanços que se tornavam modas, geravam burburinho nos rapazes e raparigas a borbulhar e agitavam cidades e campos (era o estilo, a verve, a dinâmica, a exigência, o vocabulário; espírito vivo, poderoso e sedutor; uma inspiração, p.111). Desde logo, falta, agora, o tempo (e, com ele, a liberdade) de ousar, ir contra a corrente, inventar, romper grilhetas e burocracias. Permita-se ao professor, não funcionário, essa possibilidade de vida intensa, ele que era encontrado, décadas atrás, pelos seus alunos, no cinema, no teatro, a dizer poesia ou apresentar os próprios livros. Excessivos (?), desconcertantes (?), ainda assim, ou talvez por isso, referências maiores, tais professores – necessários com maiúsculas.
Rui Correia quer saber de tudo, quer que se saiba (de) tudo, a concepção renascentista do conhecimento continua válida e a escola, sim, é para formar gente culta, homens livres. O valor do conhecimento, do saber, da cultura, do intelectual, do académico é o resgate de que a nossa época carece com uma urgência que não pode ser exagerada: “que interesse tem que alguém seja culto? Que reconhecimento é proporcionado a uma mulher ou um homem culto? É indispensável recuperar esta vantagem óbvia que resulta de se saber coisas. E publicitá-la. E celebrá-la. Os nossos miúdos têm de conhecer as benesses reais, pragmáticas, que resultam de não serem ignorantes. É preciso dar a conhecer os milhões de episódios em que a ignorância foi a causa primeira para a história universal da decepção e da estupidez. E não faltam exemplos. Não saber falar bem, não perceber o que se passa à nossa volta, poder compreender um livro, um filme, um jogo, uma canção, uma letra de uma canção, um poema, um edifício, uma festa popular, uma efeméride, uma regra, uma teoria, um bailado, um cálculo, uma pintura, uma fotografia, um prazer, uma gargalhada ou uma lágrima, no fundo compreender que podemos passar pela vida sem sequer entender aqueles cenários quotidianos, existenciais, que percorremos. Morrer sem sequer começar a perceber o mundo onde nos movemos. (…)
Perceber que fazer rimas para um rap é mais fácil se tivermos um domínio de gramática e de literatura. E de biologia. E de culinária. E de carpintaria. E de esperteza de rua. A escola ajuda a poupar tempo e a quebrar solidões escusadas. O melhor serviço que podemos prestar à escola é nunca a encarar como o único lugar onde se aprende. (…) Viver para ver viver os outros é intolerável. E (…) querer saber contribui activamente para sermos mais e melhor aquilo que somos. Mais livres, menos escravos e mais donos de nós mesmos. Mais musculados, mais tolerantes, mais solidários, mais humanos, com mais saúde e mais felizes. E (…) isso faz-se pela cultura. (…) É imprescindível a afirmação da dignidade de saber rigorosamente tudo. Porque nada é indigno de aprendizagem. Saber de tudo é uma pulsão que deve assistir a todo o indivíduo culto. A perspectiva renascentista do conhecimento nunca será ultrapassada. Saber bastante de quase tudo é um desafio aliciante. (…) Saber tudo sobre rigorosamente tudo. Não porque desse conhecimento resulta uma boa nota, mas porque esse conhecimento resulta. E o mundo é o manual. Nenhuma outra razão valerá tanto como acordar de manhã para ir saber mais. (…) Mas como pomos os nossos jovens a querer saber numa sociedade onde a futilidade superabunda e o convite à apatia e à indolência é tão sedutor? Como se confere realidade e prestígio ao conhecimento num mundo onde a ignorância – ou a sua aparência – não parece causar qualquer inconveniente? Aprender para quê? Só há uma forma de o conseguir. É preciso que o saber apresente uma qualquer materialidade. Uma vantagem indesmentível. Que seja significante para quem aprende. Que quem aprende reconheça no seu quotidiano as regalias de saber mais” (pp.51-53).
6.O professor Rui Correia, que considera que o primeiro ciclo está a tornar-se o Secundário dos pequeninos (“condicionado por uma visão que pretende transformar crianças de seis, sete, oito anos em alunos profissionais com currículos intensos, apresentando conteúdos claramente excêntricos em tempo e complexidade, ministrados por professores que se veem estreitados na sua acção”, pp.46-47) sublinhando que, por sua vez, o Secundário propriamente dito, enquanto se mantiver exclusivamente centrado na nota, não conseguirá nenhuma inovação pedagógica – registando, neste contexto, que o Secundário sustenta “financeiramente todo o processo de admissão à universidade. E as universidades lutam com apertos financeiros que não lhes permitem estabelecer outra prática” – sabe, empírica e cientificamente, que a atenção dos alunos dura 15 a 18 minutos (p.59) pelo que a pausa, a quebra, a distracção fazem parte do processo de aprendizagem (p.64), foi o responsável, na direcção de uma escola, por gerir e mitigar todas as incidências disciplinares graves. Histórias às centenas. E “se alguma conclusão posso assinar (…): em nenhum – leia-se com atenção -, em nenhum destes casos de «rebeldia» e «desmando» eu vi mais do que uma justificadíssima necessidade de amor. Amor, sim. Julgue-se a asserção poética, lírica, ingénua ou mesmo incauta, mas aquilo que posso comprovar – e não me encontro só nesta percepção – é que raros são os casos em que um processo formal de punição redunde num qualquer resultado positivo. Pelo contrário, estudei na altura o grau de reincidência dos casos mais graves de «indisciplina» na sua relação com o tipo de «punição» administrada, e essa taxa de reincidência era constantemente alta. Abreviando: a rebeldia não é um problema. O problema está em não sabermos o que fazer com essa rebeldia. A rebeldia interessa à escola como elemento de ruptura com o instituído. A escola tem de procurar encontrar uma solução criativa e funcional para o lugar da rebeldia. Não com a intenção de a reduzir a um exercício de condescendência, mas de a encaminhar e nortear para um espaço de afirmação produtiva desse cunho”. Muitas empresas olham já, com preeminência para quem «pense fora da caixa”, o diretor de escola constituiu um conjunto de professores para orientação do aluno e lhe “fornecer tarefas significativas adequadas aos interesses do estudante. De curta e longa duração. Em articulação com a comunidade, transformámos rebeldes para quem a escola nada significava em cabeleireiros rebeldes, coudeleiros rebeldes, ceramistas rebeldes, marceneiros rebeldes e mecânicos rebeldes” (pp.149-150).
7.Discurso comum, repetido, mas indiscutido, transformado em bordão para trazer (ao café): a escola ficou pela revolução industrial, continua na mesma. Pois que não, evidentemente, contrapõe, sem medo, Rui Correia; a escola foi, antes, das instituições que mais evoluíram e se adaptou aos tempos: “não temos escolas nem estádios suficientemente grandes para albergar todos os treinadores e professores de bancada. Fala-se muito de educação e os mais falazes são aqueles que não entram numa escola há décadas e julgam que a escola não evolui. É um erro crasso. A escola é provavelmente a instituição que mais se adaptou aos novos tempos, sobretudo quando a comparamos com outros sistemas da administração pública” (p.41). Sendo que, e ao mesmo tempo que isto sucede, a escola “consegue conservar uma estabilidade e uma solidez perante o vendaval que constantemente a fustiga” (p.54).
Uma escola onde novos espaços arquitecturais serão necessários, em que a natureza, os elementos, o risco estejam presentes e se atenda, verdadeiramente, aos alunos com necessidades educativas especiais. Escolas onde a partilha de novas metodologias é uma realidade – sendo que “não existe nenhuma forma correcta de dar aulas” (p.64) -, os copos-semáforos são exemplo de estratégia para renovado foco, e em que quem lecciona não se torna enfadonho (o que torna enfadonha a aula? As mesmas estratégias de lecionação, p.102): “um educador que transporta para dentro de uma sala de aula uma perspectiva existencial que assenta na negação da sua escolha de vida só por postiço artifício pode oferecer aos seus estudantes o encantamento que o prazer de viver e de saber coisas tem de proporcionar. E, repita-se, é para isso que lhe pagam” (p.102).
Para que o professor se sinta feliz, por certo não dará a aula como o fazia 20 anos antes, mas terá, adicionalmente, de se sentir confortável e confortado pela comunidade, acabando-se, de vez, com o escândalo anual das agressões de docentes, por pais, familiares de alunos com que damos de frente, a cada passo: “está hoje documentado um nível de desmotivação junto dos professores que não conhece paralelo com outros momentos na história da escola pública em Portugal. A quantidade de docentes que abandona o ensino, mesmo com substanciais reduções das suas pensões de reforma, é um indicador alarmante dessa desmotivação” (p.101).
8.Numa obra acerca do “lugar da escola nos nossos miúdos”, composta por vários capítulos titulados pelos materiais que acompanham os alunos (régua, calculadora, borracha…) – até porque, sublinha o autor, os professores são também, ao longo do ano letivo, em diferentes momentos, alunos dos alunos -, estes, antigos discentes de Rui Correia, prestam o seu testemunho: o gordo, desde a primária, humilhado em função da sua aparência física mas resgatado por um acidente que o levou à cama de operações e a uma solidariedade de uma turma que o passou a respeitar, até à aluna que pedia ir à casa de banho, no primeiro ciclo, para ir chorar a ida do pai para Angola em tempo de troika. A escola que não soube da morte de um familiar muito próximo, de um caso oncológico de outro parente íntimo da mesma aluna, em um curtíssimo intervalo de tempo, aluna que deveio em uma incompreendida quebra na sua performance escolar. Os textos destes antigos alunos do autor de “Cá dentro” não são odes nem elegias, contém as luzes e sombras da passagem de um tempo emocionalmente imenso na vida das pessoas.
9.Alguns dirão que a inovação pedagógica é fundamental para a melhoria dos resultados lá onde o autor considera que não é possível essa criatividade enquanto tudo decorrer em função das notas – prossegue, em nossos dias escolares, o recordar de uma matéria durante 2 ou 3 horas, mesmo que com o melhor dos resultados naquele concreto teste, e o imediato/sucessivo desvanecer da mesma (e quando permanece não é porque a escola haja criado esse continuum de um primado do eros do/no conhecimento; quanto ao mais, as universidades ligam-se mais a empresas do que ao Secundário, destaca Rui Correia); notar-se-á como o conhecimento da vida extra-escolar de cada aluno faz fronteira com uma dimensão de privacidade/intimidade deste e sua família cujo adequado balanceamento/sopesar nem sempre se afigurará rigorosamente simples; chamar-se-á, porventura, a atenção para que a alegação da relação imediata entre cultura e solidariedade, um humano culto igual a “mais humano” – quando, sobre o século XX, G.Steiner nos deixou páginas definitivas sobre a relação entre barbárie e cultura – não estaria demonstrada (o problema é que o inverso, não procurarmos cultivar-nos, não nos trará essa solidariedade ao espírito e ao corpo, e não podemos viver, como dizia Dante citado pelo mesmo Steiner, “come bruti”); e, como o autor antecipa quando se debruça sobre os rebeldes, as almas mais viris descortinarão traços de romantismo (a centralidade do coração é requisitada desde o instante inicial do ensaio) em algumas das suas páginas. E, no entanto, cremos que ao livro calham bem, pelos incisos e provocações que quisemos sublinhar no que vimos de dizer, as palavras de Álvaro Laborinho Lúcio, em Prefácio, que o aponta “magnífico. Do melhor que tenho lido”, uma reflexão sobre o professor “capaz de compreender e viver na diversidade, seguro das suas dúvidas, capaz de interrogar e de se interrogar, sóbrio no seu conhecimento e humilde perante a extrema complexidade que define a sua relação com os alunos”, ali onde se juntam “o «juramento» deontológico do mestre e a crença ingénua de cada discípulo” (p.13).