Flaming Lips. “A melhor música mostra quem somos e nem sempre queremos que o mundo o saiba”

Flaming Lips. “A melhor música mostra quem somos e nem sempre queremos que o mundo o saiba”


O mais recente trabalho dos Flaming Lips é uma fantasia sobre o que é crescer nos Estados Unidos. O mentor do projeto, Wayne Coyne, explicou ao i o que inspirou esta aventura.


Tudo começou com a morte do Tom Petty, em 2017. Este acontecimento levou Wayne Coyne, vocalista, guitarrista e fundador dos Flaming Lips, natural do Oklahoma, a imaginar qual seria o som de uma verdadeira banda norte-americana. O músico procurou responder a esta proposição no seu mais recente disco da sua banda, American Head, editado na última sexta-feira, e ao i, através de uma conversa por FaceTime.

A banda, que no virar do século lançou os seminais The Soft Bulletin e Yoshimi Battles the Pink Robots que viriam a influenciar incontáveis bandas de rock alternativo desde então, estudou autores como os Grateful Dead, os Eagles ou a música country, para poder musicar esta fantasia.

O disco pode sugerir uma glorificação a um país que está inserido num contexto sensível, com os movimentos Black Lives Matter, a devastação causada pelo coronavírus, ou as iminentes eleições norte-americanas, mas Coyne refuta a teoria e diz-nos que “propositadamente, nunca faria uma música com alguma referência direta ao Donald Trump” (apesar de, em 2006, na música Free Radicals, ter comparado George W. Bush a um “poor man’s Donald Trump”). “Espero que a nossa música atinja diretamente o coração dos ouvintes independentemente do ano em que for ouvida ou do presidente que esteja no poder”.

Uma das razões para terem criado este novo álbum, American Head, foi a morte do Tom Petty, porque começaram a pensar a que soaria uma banda americana. Mas esse acidente aconteceu em 2017, porquê lançar este álbum agora?

Não foi diretamente a morte do Tom Petty, mas ela motivou-me a ver Runnin’ Down a Dream [documentário realizado por Peter Bogdanovich] sobre o início da sua carreira e recordei-me que eles passaram pelo Oklahoma numa altura em que o meu irmão mais velho possivelmente podia ter-se cruzado com eles. Ele vendia drogas e é muito provável que tenha vendido quaaludes ao Tom Petty. Isso fez-me a mim e ao Steven [Drozd, multi-intrumentista e compositor da banda] pensar em tornar-nos na versão fantasiosa dessa banda e imaginar como seria a música que fariam. Apesar de não acreditar que soamos como o Tom Petty há definitivamente alguns elementos de cantautor nestas músicas. A música americana, para mim, soa muito a esse tipo de músicos. Essa seria a ligação. Adoro o Tom Petty, o acidente dele foi uma grande surpresa. Tínhamos acabado de fazer um concerto em Austin e ouvimos a notícia no início da viagem. Foi inacreditável. Já tínhamos algumas canções planeadas antes da sua morte, como Mother I Have Taken LSD e Dinosaurs on the Mountain, e começámos a colocá-las de lado e a questionar-nos o que seriam estas músicas sobre as nossas mães e infâncias. Não sabemos bem o que é que somos, há bandas como os Rolling Stones em que sabemos o que esperar. Nos Flaming Lips, não sabemos o que fazemos e por vezes sentimo-nos como uns totós.

Para alguém que não é americano, quais são os elementos que tornam este disco um álbum americano de uma banda americana?

Eu e o Steven fizemos um esforço para compreender bandas como os Eagles, Tom Petty, os Grateful Dead, a música country, que parecem mais americanas. Somos influenciados por muita música, seja inglesa, japonesa, mas nunca pensámos sobre isso. Somos uma banda da Região Centro-Oeste dos Estados Unidos, mas nunca pensei que soássemos a isso. Neste disco, existem harmonias que o Steven faz que se assemelham aos The Carpenters. Antes de fazermos este álbum iríamos pensar, “isso soa demasiado a The Carpenters, não devíamos fazer isto”. Existem compassos de tempo que se assemelham a baladas de Eagles, algo que nunca faríamos de propósito, mas neste álbum pensámos: “Ok, agora vamos fazer isto”. Mas não acho que seja isso que faça este álbum soar americano. Acho que os elementos de narrativa e os arranjos do Steven nos permitem dizer que estamos a contar uma história tipicamente americana. Penso que cantar sobre as nossas mães, drogas e motas soe bastante a uma história americana nos anos 1960, apesar de poder ser uma história que pode ter acontecido em qualquer lado.

Existe uma atitude americana também pela forma como descreve a sua infância nos subúrbios deste país. Será que é daí que surge essa sensação em vez da instrumentação?

Temos a sorte de ter viajado por todo o mundo, especialmente na Europa, que tem uma longa linhagem em termos de antecessores. Existe uma paz e gentileza quando viajamos pela Europa que não existe nos Estados Unidos. Aqui são uma cambada de egoístas que só querem fazer a sua própria cena, mais depressa e melhor do que todos os outros. Temo que seja americano nesse sentido, por isso, tens provavelmente razão. Esse aspeto está implicado na música americana. Se tivermos sorte estamos tão imersos [na cultura americana] que nem sequer nos apercebemos disso, acho que isso é o melhor que pode acontecer na arte. És apenas tu e não o podes esconder.

A sua banda lançou este disco, sobre a vida nos Estados Unidos, numa altura em que o seu país está a passar por uma fase bastante sensível, por exemplo, com as manifestações de Black Lives Matter. Este disco não pode ser mal interpretado, como uma glorificação ao estilo de vida americano?

Na música dos Flaming Lips, quando somos capazes de canalizar o que achamos ser a verdadeira conquista da música mais bela, acaba por ser mais profunda do que a presidência do Trump e tudo o que o rodeia. Espero que a nossa música atinja diretamente o coração dos ouvintes independentemente do ano ou quem for o Presidente. Lembro-me quando a minha mãe estava a morrer, em 2004, são alturas em que ninguém quer saber quem é o Presidente ou o estado da economia, isso não interessa porque o teu mundo tornou-se saturado com toda uma outra dimensão. A música também é capaz de fazer isso. Ela flui pela nossa mente e desbloqueia coisas bastante profundas que não temos acesso. Acho que é por isso que somos tão atraídos pela música. Acredito que a música nos permite estas duas condições ao mesmo tempo. Eu nunca, propositadamente, faria uma música que teria alguma referencia direta a Donald Trump. Nunca quis saber quem era o Presidente. Nunca esperei que nenhum político me dissesse como deveria viver. Acho que se há alguma coisa que o Donald Trump provou é que a América está bem sem um presidente. Mas consigo perceber como, ao chamar o nosso álbum American Head, poderia soar a um statement sobre [essa glorificação]. Para nós, o Trump vai e vem, mas a música que nos toca na alma vive connosco para sempre. Conheço música dos anos 1960 que estou sempre a ouvir e nem me passa pela cabeça quem era o presidente ou o que se estava a passar na altura.

As músicas deste álbum tem um tom bastante nostálgico, especialmente quando fala sobre a sua infância, o que o motivou a regressar ao passado?

Foi uma forma de eu e o Steven voltarmos a escrever músicas com uma base de folk. Durante algum tempo estivemos a experimentar outro tipo de sons e composições. Não nos sentávamos e escrevíamos músicas, havia muitas alturas nos últimos álbuns em que não queríamos escrever músicas baseadas em progressões de acordes e melodias. Existia um som que achávamos interessante e transformávamos numa música. Tudo nos influencia, tudo aquilo que nos surge na vida, e que nos abre os olhos para uma nova perspetiva. O Steven também é assim. Criámos um podcast há uns anos, Sorcerer’s Orphan, onde falamos sobre as músicas que marcaram a nossa carreira e sobre o que elas significam, ajudou-nos imenso. O Steven não gosta muito de se abrir num formato público sobre a sua família – existe muita tragédia e coisas horríveis, não o culpo. Ele não costuma falar sobre a sua infância por isso canalizou-a para a uma versão abstrata e fantasiosa e eu sou o tipo que pode cantar sobre isso. 

Recentemente, foi pai pela primeira vez. Isso não terá motivado o tema da infância?

Ter um filho é maravilhoso. Tenho imensa energia e estou aliviado por poder ter uma pequena criatura que possa lidar com toda a minha energia extra. Agora vou deixar de fazer dez álbuns por ano, porque ele vai oferecer-me um local para o qual dirigir esta energia.

Estava a falar do seu podcast, acho que é uma das melhores formas para as pessoas conhecerem o trabalho dos Flaming Lips.

Acho que é um podcast maravilhoso e se és fã dos Flaming Lips oferece-te muitos pormenores e detalhes. Nós somos bastante únicos nesse aspeto porque produzimos toda a nossa música e eu tenho todas as gravações dos nossos álbuns, nem muitas bandas podem dizer isso, porque tem produtores e editoras que possuem todo o seu catálogo. Por isso, se quisermos fazer um episódio sobre uma música que fizemos há 20 anos, eu tenho as diferentes faixas dos diferentes instrumentos para usar nos episódios.

Recentemente ouvi o episódio sobre a faixa Do You Realize?? e foi interessante ouvir as diferentes fases de construção que a música passou.

Adoro quando ouço outros artistas a dissecarem as suas canções porque nem sempre percebes o que se está a passar. Às vezes até nós ficamos surpreendidos com as nossas próprias músicas porque já passou tanto tempo desde que as ouvimos dessa forma que nem acreditamos no que se está a passar. Adoro recordar o nosso trabalho e perguntar ao Steven: “O que é que estávamos a pensar?”, é um processo muito divertido. 

Uma das músicas que mais gostava de ouvir a ser dissecada era a One Million Billionth of a Millisecond on a Sunday Morning, será que algum dia existirá esse episódio?

Vamos ver o que podemos fazer [risos]. Foi bastante louco criar essa música naquela altura do rock independente na América. As pessoas vem ter connosco e dizem: “Não acredito que faziam música assim, já ninguém faz música assim”, mas nós achávamos que éramos os maiores cromos de sempre e tínhamos alguma vergonha dessa música. Com o passar do tempo ficámos contentes porque é isso que a música é. Pode ser embaraçoso quando te permites ser tu próprio. Estás sempre a tentar ser fixe e a impressionar pessoas e às vezes a música não nos permite ser assim. A nossa melhor música mostra quem realmente somos e nem sempre queremos que o mundo o saiba. Quando a fizemos adorámos a música, mas as pessoas diziam que parecia “rock clássico de amadores”. Em parte ficávamos: “eu sei, isso não é incrível?”. Sempre achámos que era esse o nosso grande presente para a humanidade. Éramos amadores, mas por alguma razão tentávamos ser os Pink Floyd. Acho que tudo isso a torna mais engraçada. Não há nada pior do que alguém que se leve tão a sério e que ache que vai mudar o mundo. O mundo está perfeito como está e a música não muda o mundo, ela pode mudar o nosso interior, mas não muda o que está por ai. O mundo é um local duro, repleto de corrupção, mentiras e a música não é sobre isso. Pôr a música contra o mundo não é justo, a música está aqui para nos ajudar, não para mudar o mundo.

A certa altura falou sobre o medo de revelar o seu verdadeiro eu. Não tem medo que ao cantar sobre vender droga ou fazer parte de um gang de motoqueiros possa ser interpretado por uma geração mais nova como foleiro?

Existe essa possibilidade, mas isso faz parte de ser músico. Se não vais ser autêntico ou honesto ninguém te vai querer ouvir. É fácil perceber quando as pessoas estão a exagerar. Não estou a cantar para ninguém neste disco, estou mais a contar uma história para mim mesmo, quase como se fosse uma oração. Grande parte das músicas deste disco são uma combinação de coisas que me aconteceram ao longo da vida e na do Steven. Estamos a combinar todas estas cores num quadro. Mas existem coisas piores no mundo do que sentirmo-nos embaraçados pela música que criamos, isso não é nada e acho que é divertido ficar um pouco chocado sobre o que dizemos sobre nós próprios. Alguns artistas não adoram nada mais do que ouvirem-se a falar e a cantar, mas nós não. Ficamos felizes por as outras pessoas gostarem, mas não a posso ouvir durante demasiado tempo.

Apesar de este álbum ser o vosso disco mais terra-a-terra, ainda existem músicas com as marcas distintivas dos Flaming Lips, como os títulos abstratos como Flowers on Neptune 6 ou Dinossaur on the Mountain. Isto foi uma forma de reafirmarem a vossa identidade apesar dos temas diferentes?

Não olho para este álbum como mais terrestre. Acho que as pessoas se habituam ao lado mais estranho dos Flaming Lips. Essas decisões acontecem quando acho um título aborrecido e tento inventar algo diferente, ou vice-versa e tenho que arranjar algo mais convencional. Por vezes os títulos também são evidentes, por exemplo, Will You Return / When You Come Down, está ligado diretamente ao que é a música e não tem que ter outra camada por cima do significado. Muitas das músicas são assim. Refiro sempre a Hey Jude dos Beatles neste exemplo, é o título e o que recordas da música, não é necessário mais nada. Mas algumas das nossas músicas são tão abstratas que o título pode ajudar o ouvinte a decidir o seu significado. Às vezes nem sequer sabes porque é que o escolheste, é apenas aquilo que criaste, nem sabes se aquilo expressa algo para além que foste tu que a criaste. Mas acho que nunca simplificaríamos algo para aquele gajo que vai a caminhar na estrada o possa perceber. 

Os Flaming Lips são conhecidos pelos seus espetáculos grandiosos, por exemplo, com o disco anterior, The Kings Mouth, criaram uma instalação de arte. Tem alguma coisa planeada para este disco?

De momento ainda não sabemos. No próximo mês vamos tentar fazer concertos com as nossas “bolhas espaciais”, onde nós e a audiência vamos estar dentro de bolhas gigantes. Existem duas salas de espetáculos em Oklahoma que achamos que vão aceitar o espetáculo e vamos tentar perceber como é que vai funcionar com todas as novas regras para a covid-19. Queríamos pensar em algo especifico para estas músicas novas que as distinguissem das anteriores. Sinceramente, acho que o coronavírus nos ajudou a não ser tão loucos. Se queres ouvir uma música que te toca no coração, não vais queres estar a levar com lasers, confetes o tempo todo. Pode ser muito divertido estar completamente fora da cabeça, mas às vezes é bom estar apenas em cima de palco a cantar uma canção sem tanto fogo de artifício. Fizemos alguns concertos com a Orquestra Sinfónica do Colorado e não tínhamos confetes, espetáculos de lasers… muitas das canções soaram mais poderosas porque éramos apenas nós em cima de palco a interpretá-las. Foi uma experiência recompensadora que nos fez perceber que há momentos em que devemos apenas deixar a audiência ouvir a música e outros em que eu tenho que estar a conduzir um unicórnio gigante.