por Teresa Carvalho
Ao sopro do nome de “o mais italiano dos escritores portugueses”, há uma figura que se levanta, um poema que se nos estende e um carro que irrompe na estrada. Tem marca e modelo: um velho Fiat 500 ao volante do qual Antonio Tabucchi (1943-2012) chegou pela primeira vez a Lisboa, cidade cujo traçado das ruas acabou a conhecer como as suas mãos; corria o ano de 1965. A figura é Fernando Pessoa, que lhe ocupou a imaginação e a escrita e de cuja obra foi crítico e tradutor, e Tabacaria o poema, que num acaso de encontros foi achar num alfarrabista de Paris e o fez aportar ao nosso cais literário. Disse Álvaro de Campos que “fazer arte é confessar que a vida ou não presta, ou não chega”. Para Pessoa, poeta dos múltiplos “eus”, a vida não prestava nem chegava. Para Antonio Tabucchi a vida prestava mas uma era pouco. Ou porque o sonho, ou os projetos embalados por ele, extravasavam da moldura dos dias, ou porque se deixou atravessar por paixões que excediam as vivências, ou porque a própria literatura excedia a vida. Ou ainda porque, como escreve neste volume, “temos de pôr ainda mais caos dentro de nós para que possa nascer uma estrela dançante”.
Se Autobiografias Alheias, publicado em Portugal em 2018, é um título que escancara aquela insuficiência, o recém-publicado Estórias com Figuras, o último que o autor toscano publicou em vida, não é, a este propósito, um livro propriamente silencioso. Compõe-se de estórias breves que falam de imagens, sobretudo de imagens pictóricas – assinadas por nomes como Paula Rego, Graça Morais, Vieira da Silva, Júlio Pomar ou Costa Pinheiro – cujos protagonistas desadormecem, lançam-se da tela, agem por conta própria, convertem-se em personagens e intérpretes das suas próprias histórias, libertando-se, em fluxos musicais (adagi, andanti con brio, ariette – as partes de que compõe o livro) da imobilidade que as prende. E pode bem dar-se o caso de visitarem o autor. É o que acontece com o Sr. Pereira, já familiar aos leitores mais constantes de Tabucchi, que o escreveu no multitraduzido romance “Afirma Pereira”: “Mas agora era diferente […] Tinha-se passado do ex-vocare, ou seja de o chamar com a voz, ao con-vocare. Alguém convocara o fantasma, ao materializá-lo numa imagem. E agora o ícone de Pereira encontrava-se diante dos meus olhos, maciço, bem visível em toda a sua “pereiridade”. E o médium que tinha conseguido essa convocatória era o pintor Giancarlo Vitali.”
As estas figuras vêm juntar-se outras existências, os eus e os “comigos de mim” de que falava Álvaro de Campos, mitos, criaturas celestes, homúnculos, espectros, fantasmas gentis, comentadores de arte, arqueólogos, filósofos – tudo tratado com uma escrita ágil que não dispensa a ironia, nem sempre afável. Dir-se-ia que é um livro muito habitado que joga com as experiências de quem viu muito mundo, com estranhezas, sofrimentos, deslumbramentos, peripécias, ímpetos – tudo ligado por um fio de sentido a urdir-se por entre a erosão do sentido do mundo, logo, das linguagens que dizem e compõem esse mesmo mundo: as artes visuais, a música, a literatura, mas também os gestos, os comportamentos, os hábitos, a relação entre os seres, no quotidiano e na História. Tudo se desenvolve num processo de efeitos controlados feitos em parte da naturalidade exemplar do estilo, em parte do encanto do registo que, sem deixar de ser o da escrita, tem qualquer coisa de conversação só aparentemente amena com o leitor.
Com as artes, e sobretudo com a pintura, domínio da expressão inter-artística bastante relevante numa obra com propensões ecfrásticas, manteve Tabucchi uma relação sólida. Essa relação, com variações de nitidez e de intensidade, pauta-se pela volubilidade. Apetece mesmo falar de poligamia artística, um sistema de união com mutáveis protagonismos, pouco propensa a hierarquias rígidas, de modo a evitar graduar um amor que, à partida e em cada momento, seria sempre máximo, deixando entender que nenhum outro valor, entre os que o seu trabalho literário envolve, se sobrepõe ao da liberdade da criação. Nesse irrestrito exercício de liberdade, cabem tanto pintores como Velázquez, cujas Meninas lhe ofereceram O Jogo do Reverso (contos, 1984) como os artistas plásticos portugueses contemporâneos. Fidelíssimo à pintura, a obra do autor de Nocturno Indiano abre-se à sedução da fotografia, da música, da sétima arte ou mesmo da dança, com a qual mantém um relacionamento mais ocasional.
A sua relação com as artes faz-se anunciar em alguns títulos (Requiem, o único escrito diretamente na língua de Camões) mas também nas portadas dos livros, como é o caso deste Estórias com Figuras, que exibe na capa uma figura de um quadro do pintor italiano Valerio Adami, A hora do sono do menino (1993). Trata-se de “uma mulher a dormir enroscada numa poltrona enquanto que uma Morte com um chapéu largo de bandido arrasta uma criança em direção a uma colina assinalada por um cipreste.” As descrições são sempre parciais, mescladas por inquirições, conjeturas, comentários que criam um hiato entre o objeto visual de referência e o discurso: “um comentador aproxima o sono da morte, da qual seria um irmão pequeno […] e isso convinha à minha conjugação, porque baixava de nível a morte, tirando-lhe um pouco do seu estatuto nobre num pequeno sonho”.
De um modo geral, os momentos descritivos não aspiram a uma minudente exaustividade, nem tão-pouco ao colorido: mais do que copiar cada quadro ou cada figura, mimar-lhe a plasticidade, trazê-los, na nitidez absoluta dos seus traços, ao nosso olhar, Tabucchi quer penetrar nos seus recantos, para ver mais e mais profundamente, acercar-se das molduras do quadro e irromper pela periferia, até alcançar zonas até aí desconhecidas. A estória Uma janela sobre o desconhecido é bem um exemplo de que as imagens funcionam como uma espécie de deixa geradora da narrativa, um pretexto orientador para a sua desassossegada musa, capaz de elevar as estórias para esferas de incandescência visionária. Um curandeiro na cidade à borda d’ água, texto que se faz acompanhar de uma reprodução do quadro O Advogado (1999), de Júlio Pomar, mostra bem que a subjetividade da impressão e a vontade narrativa suplantam o registo descritivo.
O formato comum da vizinhança imagem / arranque narrativo a cada dupla página alimenta a insinuação de um desígnio plástico que não está, pois, nos planos de Tabucchi. Ao previsível Tabucchi prefere o imponderável. O escritor italiano deixa a obra de arte interferir com o texto sem impedir que este seja outra coisa, de perseguir a sua própria autonomia, a desenvolver-se para outras áreas, muitas vezes bem distantes do ponto de partida. Estas estórias não são cópias verbais de objetos de arte visual, não ficam limitadas ao campo de visão que cada um impõe: avançam, movidas pela inquietação do autor, extravasam das molduras e partem à conquista do espaço que a superfície estreita dos quadros lhe nega. Quando se trata de espaço, Tabucchi testemunha uma clara preferência por interiores, universos íntimos escavados em profundidade. A literatura não era para o autor “como um trem que corre em superfície e, sim, no subterrâneo, que não se sabe aonde vai, nem o percurso, e de vez em quando chega à superfície.” O que é notável é que as interferências culturais ou intertextuais não carregam de erudição o livro, pelo contrário, são o combustível dele.
Fosse este admirável livro uma tela, um provável tríptico no qual Saturno, com o seu séquito de penumbras, de emblemas cinzentos e divisas negras, teria certamente um papel a jogar, e dispensaria a inscrição Antonio Tabucchi pinxit no canto inferior direito. E talvez dispensasse também o nome de Maria da Piedade Ferreira na primorosa edição. O cuidado editorial falaria por ele.