Nestes temas da consciência, sobretudo quando exposta em público, há um mínimo ético a ser cumprido e cada um deve anunciar ao que vem. Começo pela declaração de interesses: sou um produto da escola pública, da primária à faculdade. E mesmo depois de esbulhada a licença para aprender sozinho beneficiei, e muito, da escola pública de outros Estados. Para maior enquadramento social e económico da coisa, fica o leitor a saber: integrei a geração que assistiu ao primeiro grande alargamento do tempo passado no ensino pela maioria da população, ainda antes de todo o percurso secundário ser tornado obrigatório e com o último destes anos poeticamente denominado como “ano propedêutico” (foi um gap year avant la lettre, tal era a leveza das corveias escolares e a liberdade dada ao estudante para não estudar). A universidade que me acolheu ao nível da licenciatura, muito mais ampla na frequência do que antes do 25 de Abril, não era ainda massificada e tinha uma diversidade geográfica, social, económica e étnica que nos enriqueceu a todos, mesmo aos que, e foram muitos, procuraram rapidamente fora da faculdade ou mesmo da universidade outros caminhos. Era também uma universidade low-cost (na perspectiva das paternidades pagantes), com propinas de valor simbólico, se bem me lembro na zona dos 1200$00 por ano (€5,99, dez bicas dos dias de hoje), e procurada por todos os filhos e netos dos que por lá já tinham passado, mas também por aqueles que numa família ou numa aldeia chegavam pela primeira vez ao ensino dito superior. A universidade estava concentrada em Lisboa, Coimbra e Porto, pelo que para estas cidades, sobretudo a primeira, convergiam alunos de todas as regiões do país e também os vindos da diáspora portuguesa.
Tenho a escola pública como garante de igualdade social. Continua a ser o maior e melhor ascensor social. Para muitos, é quase sempre o único. A importância do papel social da escola pública nos tempos de cólera (e de pandemia) aumenta desmesuradamente. Não há computadores, smartphones, internet e aulas à distância para todos. Para muitos alunos há só distância, e cada vez maior.
A escola pública é uma tarefa constitucionalmente cometida ao Estado. Mas não se esgota na criação de “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população”. A escola pública implica ensino público, isto é, conteúdos que sejam um reflexo dos valores constitucionais. É perfeitamente possível, ao abrigo da liberdade de expressão (e do seu antecedente lógico mas tantas vezes ausente, o pensamento), discordar dos conteúdos do ensino público. Para os criacionistas, deve ser insuportável ver os seus filhos desde tenra idade sujeitos à endoutrinação pelos apóstolos da teoria da origem das espécies. Como se pode exigir a um pai terraplanista que um professor (um professor, meu Deus!) incentive a amorosa criancinha à leitura titubeante de um livro de história dos feitos de Fernão de Magalhães, celebrando a redondez do planeta?
Para os defensores da liberdade de pensamento resta o ensino particular, de preferência o home schooling, tendência em alta nos EUA ainda antes de a pandemia o ter tornado obrigatório.
Desconfio muito da tentativa de equiparação das aulas de Religião e Moral de má memória às de Educação para a Cidadania. Também não me custa admitir que o Estado deva ter juizinho na leccionação dos concretos conteúdos das aulas do ensino público e, como tal, obrigatório.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990