Giuseppe Cambiano. O prazer da filosofia

Giuseppe Cambiano. O prazer da filosofia


 A Itália foi sempre uma terra de filósofos. Entre os mais conhecidos dos séculos XX e XXI permito-me destacar, por ordem cronológica de nascimento, Nicola Abbagnano (1901-1990), Ludovico Geymonat (1908-1991), Norberto Bobbio (1909-2004), Emanuele Severino (1929-2020), Gianni Vattimo (n. 1936), Giorgio Agamben (n. 1942) e Nuccio Ordine (n. 1958). Acrescento agora, depois de ler Sete…


Um bom mestre tem, em geral, bons discípulos. Abbagnano estudou em Nápoles, mas foi durante longos anos professor da Universidade de Turim. Inserido na corrente do existencialismo, que procurou renovar, testemunham a sua preocupação pedagógica uma monumental História da Filosofia (Presença, 14 vols.) e uma História da Pedagogia (Livros Horizonte, 2 vols.). Tem ainda um Dicionário de Filosofia publicado no Brasil (Martins Fontes). Por sua vez, Cambiano (n. 1941), nascido em Turim, licenciou-se nessa cidade em Filosofia em 1965, com uma tese orientada por Abbagnano. Ensinou aí História da Filosofia Antiga até se mudar em 2004 para a Escola Normal Superior de Pisa, onde se aposentou, tornando-se emérito em 2011. O seu foco foi sempre a filosofia antiga, em particular Platão e Aristóteles. Interessou-se pela ciência na Antiguidade Clássica (Euclides, Arquimedes, Galeno, etc.) e pela representação da polis grega na modernidade. Sócio da Academia dos Linces, uma instituição que remonta ao tempo de Galileu, dirige a revista internacional Antiquorum Filosofia. À semelhança do seu mestre, tem também uma História e Antologia da Filosofia (com Massimo Mori, Edições Escola Laterza, 3 vols.). É autor de vários outros livros, dos quais Sete razões para amar a filosofia é o último e talvez o mais dirigido ao grande público.

A quem se dirige este volume? Logo a abrir a sua curta introdução o autor esclarece: “dirige-se, em primeiro lugar, aos jovens que se aproximam, ou pretendem aproximar-se, do estudo da filosofia, mas dirige-se também a todos saqueles que se sentem curiosos em relação à actividade que dá pelo nome de filosofia”. Não, não é uma história, nem um condensado de filosofia, mas sim um convite à entrada nessa disciplina, uma comunicação do prazer que é a filosofia. Eu já fui um jovem – devo dizer que as minhas melhores notas no secundário foram a Filosofia e que, mais do que o calhamaço do Bonifácio por onde tive de estudar sem ter feito mal a ninguém, seduziu-me o livro Le Problème de la Connaisance de  Paul Foulquié (PUF, 1964, ainda guardo o livro), que um jovem professor de Filosofia no Liceu Normal de D. João III em Coimbra escolheu para iniciar os seus alunos na arte de pensar. Tenho algumas dúvidas sobre a possibilidade de um professor de hoje usar, livremente, nas suas aulas, um livro estrangeiro para estimular os estudantes… Hoje, que sou menos jovem, continuo a interessar-me pela filosofia (é uma maneira de me manter jovem), procurando ler os livros de divulgação que vão saindo nessa área. Neste âmbito admiro o trabalho de Desidério Murcho, professor de Filosofia na Universidade de Ouro Preto (Brasil), e de Aires Almeida, professor de Filosofia numa escola secundária em Portimão, na direcção da coleção “Filosofia Aberta” da Gradiva, que já vai no n.º 40  (é aproveitar os saldos, nas feiras do livro de Lisboa e Porto ou on-line). Mais antigas, as Edições 70, do grupo Almedina, nascidas no ano que o próprio nome indica, prosseguem hoje, volvidos 50 anos, um caminho de espalhamento de cultura também admirável, pelo qual lhe devemos estar gratos. Nas suas colecções de filosofia (Biblioteca Básica de Filosofia, Textos Filosóficos) ou fora delas têm publicados excelentes livros como a trilogia que ainda há pouco elogiei, nas páginas do jornal I, dos Elogios que o médico italiano Lamberto Maffei fez à Lentidão, à Palavra e à Rebeldia.
Depois do louvor, deixo duas críticas à editora. Em primeiro lugar, a capa é muito déjà-vu e pouco atraente.  Está preenchida pela bem conhecida representação de Rafael da Escola de Atenas, numa Stanza do Vaticano (passam este ano 500 anos sobre a morte de Rafael; as comemorações estão muito prejudicadas pela pandemia, designadamente com o fecho ao fim de quatro dias de uma grande exposição em Roma). As capas do original italiano (Il Mulino, 2019) e da tradução espanhola (RBA, 2019) parecem-me bem mais originais. E, em segundo lugar, a divulgação do nome do tradutor – José Serra, o mesmo dos Elogios de Maffei – em letras muito pequenas na ficha técnica, o que menoriza o seu trabalho. 

O sete é um número com uma aura de misticismo, que já vem da Antiguidade: havia sete maravilhas do mundo antigo, sete sábios da Grécia, sete cabeças da Hidra de Lerna e sete colinas de Roma.  Também surge nas artes (sete artes, sete cores do arco-íris, sete notas de música) e na religião (sete pecados mortais).  Quais são os sete razões por que devemos amar a filosofia? Elas estão expressas nos títulos dos sete capítulos do livro: “Fazer perguntas”, “Usar palavras”, “Procurar respostas”, “Apreciar a discordância”, “Abrir os horizontes”, “Compreender os outros: outros tempos”, e “Compreender os outros: outros mundos”. 

Perguntaram-me há dias se a filosofia era uma ciência e eu respondi que não. A filosofia é mais do que uma ciência, até porque interroga a própria ciência. É um pensar mais além. Este livro é muito claro sobre isso no Cap. 5, “Abrir os horizontes,” onde se diz que a filosofia e a ciência se identificaram no mundo antigo, mas que seguiram depois caminhos autónomos. Hoje é preciso que se reencontrem, embora mantendo as suas identidades. Hoje, como diz Cambiano, “as ciências. cada uma delas, são fonte contínua de perguntas para os filósofos” (p. 118), isto é, há questões a que a ciência não pode responder com o seu método, apesar do enorme poder deste. Mas, mais do que isso: “É a própria ciência, enquanto tal, os procedimentos que a caracterizam, que coloca interrogações aos filósofos.” Prossegue o autor: “Filosofia e ciência não são alternativas uma à outra, ambas são movidas pelo amor ao conhecimento, ambas nascem da exigência de fazer perguntas e de tentar encontrar respostas” (p. 120). E adiante: “O espírito científico e o espírito filosófico (e, mais em geral, humanístico), embora tenham formas diferentes e diferentes modos de expressão, em última instância perseguem objectivos análogos: despertar, construir e reforçar o chamado espírito crítico, em que ‘crítico’ significa precisamente capacidade de discriminar. Mas isto só é possível se as mentes não estiverem completamente escravas daquilo que é obvio, de crenças exibidas como se fossem verdades ‘naturais’: o mundo não é apenas como aparece” (p. 125; escrevi “objectivos” pois, embora o livro use o novo acordo ortográfico, eu não).

O livro está cheio de exemplos literários que ilustram as ideias expostas. Encontramos aqui não tanto os clássicos da Antiguidade, mas sobretudo, o que talvez seja surpreendente para um investigador de Estudos Clássicos, muitos exemplos da literatura universal, incluindo a contemporânea, com especial ênfase para a italiana. Só um professor com meio século de carreira e sobretudo um grande leitor pode ter a bagagem que Cambiano revela neste seu livro: são referidos ou mesmo citados monstros sagrados como Shakespeare, Cervantes e Goethe, mas também outros grandes clássicos como, por exemplo (alinho-os pela cronologia do nascimento), Rabelais, Sterne, Tolstoi, Carroll, Twain, Svevo, Proust, Kafka, Woolf, Montale e, já nascidos no século XX, Yourcenar, Levi, Bradbury, Calvino, Enzensberger, Roth (Philip) e Franzen. Enfim, é um festival de referências literárias, embora apareçam também cientistas como Galileu, Einstein e Heisenberg. Curiosamente, e apesar de toda a profusão de citações, o livro de Cambiano não tem qualquer bibliografia.

Na Introdução, o autor cita Bertrand Russell, o grande matemático, filósofo e divulgador da filosofia (um dos meus passatempos é ir aos alfarrabistas e comprar todos os livros que encontre dele – e tem muitos e bons – a menos de dois euros). Segundo ele, o homem sem filosofia “passa pela vida fechado nos preconceitos ditados pelo senso comum, pelas opiniões mais comuns do seu tempo e da sua terra e pelas convicções criadas na sua mente sem a colaboração nem o consentimento da vontade e da razão. Para semelhante homem, o mundo tende a tornar-se definido, finito, óbvio.” Em contraponto, Cambiano transcreve um poema escrito em 1940 em dialecto romano por um autor obscuro, Trilussa: “Assim que entrou na floresta virgem / o Professor de Filosofia,/ todos os macacos desceram das árvores/ com a intenção de o expulsar./ Mas o Homem disse: – Não é possível/ que eu volte a ser filósofo/ numa sociedade cheia de ardis/ em que a Acção engane o Pensamento./ Hoje, o que conta são os músculos:/ Com a razão não se faz um chavo…/ Melhor ser macaco!/ – E o pobre filósofo/ Trepou por um coqueiro acima.”
Talvez o exemplo maior da força das perguntas que tanto a ciência como a filosofia fazem, se encontre no Cap. 1. Trata-se de uma história contada por Primo Levi, o químico e escritor que sobreviveu ao Holocausto. Cheio de sede, Levi agarrou um sincelo fora da janela da sua prisão para sorver a água. Logo um guarda lho arrancou da mão com brutalidade. “Warum?” (Porquê), perguntou Levi. Resposta do guarda, empurrando-o: “Hier ist kein Warum” (Aqui não existe porquê).  A nossa liberdade – no fundo, a nossa existência – manifesta-se na incessante colocação de perguntas e na procura de respostas.