Henry Miller. Cartas que se podem beber de um só trago

Henry Miller. Cartas que se podem beber de um só trago


As Cartas a Anaïs Nin, de Henry Miller, escritas ao longo de quinze anos (1931 – 1946) e reunidas neste volume da Difel, dão ao leitor a oportunidade de mergulhar a fundo na sua relação com a também escritora Anaïs Nin, sua amiga, amante e confidente, mas com eles também vamos ao encontro de outros escritores, livreiros,…


Desengane-se o leitor que julga que irá encontrar laivos de fogo ou de sensualidade escabrosa nestas cartas, desengane-se mesmo, porque não é nada a respeito de erotismo ou de sexo explícito que aqui vai comungar. Miller que em 1934 escreveu em Trópico de Câncer, «Todo aquele mistério sobre o sexo, e depois descobrimos que não é nada – apenas um vazio» vem a revelar nestas cartas com Nin tudo, menos esse e qualquer outro vazio.

Em toda a correspondência andamos a par e passo em Paris, na Villa Seurat com Fraenkel, Durrell, Buñel, Osborn, Lowenfelds, Putnam, Cendars, ou mesmo críticos influentes como Paul Rosenfeld, Wilson, Herbert Faulkner West ou Kahane, o seu primeiro editor, proprietário da editora Obelisk Press que também editou Nin.

Mas Paris não foi propriamente sinónimo de facilidades ou de comodismo, pelo contrário, através deste registo transparente, apercebemo-nos da luta que foi para Miller estrear-se no circuito literário, as dificuldades económicas, a sua sobrevivência em Clichy a dar aulas de inglês num colégio gélido e cinzento afastado de June Smith, a sua segunda mulher, com quem também Anaïs manteve uma relação homossexual, relação essa que foi relatada no seu diário íntimo em 1931. Foi precisamente neste ano que os três se conheceram, e que Nin embora fosse casada com Hugh Guiler, se apaixona por June, mas é com Miller que a relação se manterá cúmplice e solidamente intelectualizada por muitos anos.

Ao contrário das cartas compiladas neste livro, é no diário de Nin que damos por um Miller altamente sexual quando lemos (p.177) numa carta redigida em Agosto de 31 «Quando voltares vou dar-te um banquete literário de sexo – ou seja, foder e conversar e conversar e foder. Anaïs, eu vou abrir as tuas entranhas. Deus me perdoe se esta carta alguma vez for aberta por engano. Não consigo evitá-lo. Quero-te. Amo-te. Tu és comida e bebida para mim, és todo o raio da máquina da vida, deitar-me em cima de ti é uma coisa, mas aproximar-me de ti é outra. Sinto-me unido a ti, um só contigo, pertences-me. (…) Estou aqui sentado a escrever-te com uma tremenda ereção. Posso sentir a tua boca macia fechando-se sobre mim, a tua perna apertando-me com força, voltar a ver-te aqui na cozinha levantando o vestido e sentando-te em cima de mim e a cadeira a andar pelo chão da cozinha fazendo tamp, tamp.» Não há nesta coletânea,  com este teor eufórico, uma única carta assim, há pelo contrário uma veneração mútua muito mais romantizada e amena(p.112) «Quem caminhar até ao fim contigo, quem consiguir fazê-lo alcançará algo de inteiramente novo, algo que nada tem de pragmático, que é, alegra-me afirmá-lo, perfeitamente não real.»;(p.55) «Se tu não me mostrares um quase nada deste mundo, dou em doido.» ou ainda (p.101) «Para onde quer que me volte, vejo sempre aquilo que fizeste de mim. Tu habitas nestas paredes.»

São muitos os mundos que vamos habitando nesta viagem epistolar vertiginosa. É na verdade uma viagem vertiginosa sim, vertiginosa e colorida. São cartas abertas, francas, quase líquidas. São cartas que se podem beber de um só trago sem nos desviarmos da própria sede, porque em todas há um fio que não nos deixa sair do trilho, e esse fio, é a literatura, e é só por ela que Miller soberbamente se entrega.

Embora tenham sido tempos árduos esses vividos pelos dois em Paris nos anos trinta, é notória em cada testemunho a perseverança estonteante de Miller em ultrapassar cada adversidade que se lhe impunha, ou pela falta de dinheiro, ou pela falta de oportunidades ou pela falta de críticas, boas ou más. Segundo Gunther Sthulmann foi Blaise Cendars que mostrou antes de todos, um fervoroso reconhecimento público, porque segundo ele, na introdução que faz ao presente livro (p.20) «Em Maio de 1934, Miller e Anaïs estavam cansados das vacilações de Kahane.» e finalmente (p.22)«Após anos de frustração, após dez anos de séria prática artística, conseguia ser publicado e outros escritores (Ezra Pound, Katherine Anner Porter, T. S. Eliot) começaram a dar pela sua existência. Miller escreveu centenas de cartas «a todos e mais alguns», tentando que o livro fosse lido e criticado.» Mas Miller nunca desiste, e numa destas cartas chega mesmo a dizer (p.113) que «O livro que se escreve é a pele velha de que nos vamos libertar. O livro importante, a nova pele, é sempre o não nascido ou então, pelo menos o não visto.»

Dei-me conta que este ano foram muitas as correspondências que li, Boris Pasternak-Rilke-Tsievatieva; Sophia e Sena; Sena e João Gaspar Simões; Cesariny e Alberto de Lacerda; cartas de Kafka para Milena; cartas de Cesariny para Frida e Laurens Vancrevell, para Ségio Lima. Dei-me conta que é no registo epistolar que me sinto mais convertida à leitura, como a uma lareira numa noite chuvosa de Dezembro, e porque será? Fácil, porque neste registo a distância e a impessoalidade são automaticamente afastadas a um canto. É talvez somente neste registo que o leitor se sente mais calorosamente abraçado pelos autores, pelas suas ideologias, medos, dissabores. Embora aqui apenas tenhamos a possibilidade de ler as cartas de Miller, inconscientemente adivinhamos as respostas de Nin, a amizade, o respeito, a admiração, a entreajuda, mas também o contraste abissal do modus vivendi que na realidade nunca os separou.  Anaïs Nin é uma mulher rica, que mora numa casa de sonho em Louveciennes. É Anaïs quem lhe manda os livros que lhe fazem falta; lhe oferece um candeeiro para que ele possa escrever à noite;lhe financia o seguro contra qualquer possível risco financeiro aquando da edição do seu primeiro livro O Trópico de Câncer, cuja circulação comercial esteve interdita durante muitos anos; lhe oferece em Paris uma máquina de escrever, porque Miller não tinha um cêntimo para comprá-la a pronto ou sequer às prestações, e Anaïs não faz mais nada senão oferecer-lhe a sua própria máquina. Esta, a meu ver, foi logo o primeiro testemunho de generosidade entre os dois, mas há muitíssimas mais provas de generosidade no desenrolar destes anos. Os dois são extremamente dedicados um ao outro, entreajudando-se no árduo e demorado processo das edições, lendo-se mutuamente e enviando sugestões de outras leituras, manuscritos de livros ou de artigos para revistas onde Miller escrevia, na Phoenix, This Quartier ou na Partisan por exemplo. Os dois comungam as mesmas ideias sobre a vida, o surrealismo, a arte ou o cinema, e mesmo quando não estão de acordo por alguma razão, é visível uma tentativa cordial de convencer o outro, como se pode ler aquando de Nietchze de quem  Anaïs não é grande fã (p.75) «A respeito do Nietzsche, não, não tens razão nenhuma. Tens de mudar de opinião. Nietzsche é um grande homem e a linguagem dele, longe de ser fátua, é soberba, magnifica. Começa por ler o Anticristo, e a seguir Para lá do Bem e do Mal. Não, eu adoro Nietzsche.» A propósito de leituras, Miller escreve-lhe muito sobre o que retém de Joyce, Rilke, Mann, Keith, Maryse Choisy, Gide, Saint-Éxupéry, Villon, Nerval, Duhamel, Proust, mas o escritor que mais o magnetiza, é sem dúvida alguma D. H. Lawrence.

Miller é obcecado por Lawrence. São raras as cartas em que não o menciona. O próprio Kahane, o editor de Miller, sabendo deste seu deslumbramento, pediu-lhe que antes de editar o primeiro livro, escrevesse uma pequena brochura sobre ele, mas essa pequena brochura acabou por dar forma a um extenso manuscrito “The world of Lawrence”. A respeito do The Crown, ensaio de Lawrence no seu livro Reflections on a death of Procurpine and other essays emprestado por Anaïs, ele escreve (p.116) «Podia ter abalado o mundo…mas, quem é que, infelizmente tinha ouvido falar do The Crown a não ser uns poucos de eleitos? Está aqui a semente de todos os escritos de Lawrence, e muito mais até do que a semente. É o místico no seu mais alto grau. Estou mesmo apaixonado. Peço-te, por amor de Deus, que nunca te desfaças deste livro. É o teu maior tesouro de Lawrence.» ou ainda na mesma página «Preciso de muitas mais coisas sobre Lawrence: do livro de Murry e do livro de Colin e mesmo do Mabel Dodge Luhan, se ainda o tiveres. Vou tentar estudá-lo sob todos os ângulos possíveis; preciso de todos os factos e interpretações possíveis. Provavelmente nunca mais torno a falar dele na minha vida. Tenho de me limpar dele de uma vez por todas.» Mas Miller nunca se limparia de Lawrence e a sua influência seria ímpar na sua própria revelação. Prova disso mesmo, é um ensaio de Miller acerca do filme de Buñel, L’Âge d’Or cujo argumento foi escrito por Dali, em que o próprio Miller confessa a Nin que nele vagueiam vestígios de Lawrence (p.80) «Não sei se consegui costurá-lo solidamente.» Como com Nietzsche, Miller vai tentar convencer Anaïs a render-se a Lawrence (p.117) «Ele é superior ao que eu sempre sonhei. (…) Não conheço nada que seja mais importante. Estou de acordo contigo: Lawrence não vai ser compreendido nos próximos cem anos. Nem talvez depois. A direção que as coisas tomam é no sentido contrário. Ele sabia-o. Mas não desanimou. Permanece firme como uma rocha e desafia o tempo. (…) Mas tudo isto pode parecer incompreensível. Espera. Vais ver. Vais aceitar Deus e a religião e todas as coisas que nunca quiseste…e vais gostar…e chorar por mais.»

Estas cento e noventa e duas cartas estão divididas em dois capítulos, Europa e América, mas é na última carta escrita ainda em território europeu que a meu ver, Miller escreve a carta mais comovente de todas a bordo do navio Exochorda a 12 de Janeiro de 1940. Aqui é notório o seu apego à Europa e o seu asco pela América e por tudo o que a América simbolizava para si. É uma carta em vácuo, como o são todas as cartas que conservam vivas e imaculadas as palavras. «A Grécia afundou-se no poço da experiência. Qualquer coisa me aconteceu por lá, mas neste momento não sou capaz de o exprimir. (…) A Grécia morre diante dos meus olhos. A última coisa a desaparecer é a luz, a luz sobre os montes, a luz que antes nunca vira, que nem sequer podia imaginar se não a tivesse visto com os meus próprios olhos. A incrível luz da Ática. (…) E agora, no barco, no meio do cenário americano, sinto-me como se vivesse no meio de um povo que ainda não nasceu, entre monstros que fugiram do útero antes do tempo. Não estou em comunicação com coisa alguma. Estou num mundo de cascas de ovos partidas. A ninhada ainda não nasceu. Os ovos já não servem para nada. É assim como aquele estado do pós-morte de que falam os tibetanos. O que está a acontecer comigo é tão real como se fosse vida, mas não é vida.» (p.216)

Devemos olhar para esta carta e muitas outras suas mais, como andaimes invisíveis daquele que foi o seu edifício narrativo. A meu ver, esta carta em especial, talvez seja sem dúvida a mais esplêndida e dolorosa de todas, mas como o próprio escreveu (p.211) «Arrastamos atrás de nós aquilo que nos persegue.»