Estamos a poucos dias da rentrée política comunista. O PCP acredita que está a fazer uma manifestação de grande força e vitalidade com a realização da Festa do Avante!, juntando milhares de pessoas na Quinta da Atalaia. A insistência cega na realização da festa no contexto pandémico e de crise de saúde pública tem exatamente o efeito contrário: é uma manifestação de profunda e radical fraqueza.
Claro que, para os camaradas, qualquer versão do tudo ao monte e fé em Deus a dançar a Carvalhesa será sempre uma visão apoteótica da soberania popular. Mas para o povo, para o povo que não compra entrada permanente, a festa é mais um indicador da crescente incapacidade de o PCP entender as pessoas, os seus problemas e a realidade para lá de abstrações intelectuais nas quais os comunistas há muito se viciaram.
A pandemia lançou milhares de pessoas no desemprego. Outros tantos na precariedade laboral. As empresas fecham portas dia após dia e as famílias sobrevivem com a corda na garganta. Os direitos dos trabalhadores estão sob pressão como nunca estiveram no último meio século e a incerteza no horizonte é a melhor aliada dos projetos políticos utópicos e extremistas. Quando a crise e as circunstâncias oferecem aos comunistas uma oportunidade única para alargar a sua base de apoio popular e eleitoral, o que faz o PCP? Esfrega na cara dos portugueses um tratamento de exceção e uma sobranceria supralegal de que os comunistas, e mais ninguém além dos comunistas, podem usufruir. “Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros”.
Imbuído de um marialvismo soviético que desafia a saúde pública, o bom senso e (sobretudo) a igualdade, o PCP garante que nessa terra de liberdade que é a Atalaia, a covid-19 não será ama nem passará. Donald Trump, Bolsonaro e populistas do mesmo calibre não têm dito diferente. Não têm, aliás, feito diferente. As suas iniciativas também não podem ser sacrificadas no altar da saúde pública.
Vamos ser claros: fosse o Avante! apenas e só política, e garantidas todas as condições de saúde pública, poucos argumentos contra a sua realização poderiam ser bramidos nesta conjuntura. Mas nada aqui é uma questão política: é de saúde pública. Mais, os comícios são apenas entradas e saídas numa festa em que os pratos fortes são concertos e ajuntamentos em tasquinhas. E é para estas atividades, proibidas há meses por todo o país, que se abriu uma lamentável exceção feita à medida do PCP.
Há meses que, no nosso país, os eventos de massas estão proibidos.
Os arraiais populares foram suspensos. Não houve Santos, nem sardinhas, nem manjericos e martelinhos.
Os festivais de verão foram adiados.
O desporto não tem público.
Os locais de peregrinação foram esvaziados.
Milhares de negócios em suspenso, contratos cancelados, economia em agonia e projetos de vida adiados.
Ao povo exigiu-se que suspendesse as suas tradições.
Ao PCP permite-se tudo em nome das suas convicções.
Fazer o Avante! não tem nada a ver com regresso à normalidade. É apenas a perpetuação da excecionalidade de tratamento de que os comunistas têm beneficiado em boa parte da nossa vida democrática.
Comecei este texto admitindo que só mesmo o PCP pode acreditar que a realização do Avante! neste contexto pandémico é uma manifestação de força e de vitalidade da luta.
Creio que é um sinal de crise e fraqueza profunda em múltiplas dimensões.
Desde logo, a fraqueza do exemplo. O PCP coloca-se num plano superior face aos cidadãos e às organizações. Com a conivência das entidades públicas, criou-se um enquadramento à medida do Avante! – uma inconsistência grave para um partido que rasga as vestes pela igualdade e que se diz antissistema. Quem mais fala pelo povo é quem menos perde uma oportunidade para se colocar acima dele.
É também um sinal de fraqueza da estratégia. Não compreender o preço alto que o PCP vai pagar por esta teimosia é um erro colossal. Como o que se passa no comité central morre no comité central, só muito mais tarde saberemos se esta obstinação foi unânime ou teve dissidências.
Por último, é um sinal de fraqueza moral. O que está em causa não são as liberdades do PCP como partido político. A razão para a realização da festa é dinheiro. O Avante! vale, anualmente, pelo menos dois milhões de euros ao partido. É a sua segunda maior fonte de financiamento, logo atrás da quotização e das contribuições dos militantes. Digo “pelo menos” porque, como é bem sabido, a transparência e a faturação estão para o Avante! como a liberdade e a democracia estão para o estalinismo. São uma coisa da qual só ouvimos falar.
Na sua sempre difícil convivência com o escrutínio e com a liberdade, o PCP considerará que em toda a crítica (incluindo esta) há um anticomunista primário ou um agente de uma “grande operação reacionária”. Podemos acreditar que o mundo conspira contra o PCP. Ou, então, podemos simplesmente ver o óbvio: com esta liderança, o PCP é um partido mais inadaptado às regras do jogo democrático e mais confortável nas zonas cinzentas do sistema.
Quando o Avante! chegar ao fim, o PCP sairá da Atalaia mais fragilizado do que entrou.
Mas não será o único. Os portugueses confiam cada vez menos numa DGS pouco transparente, pouco coerente e pouco capaz de criar regras gerais e uniformes para todos.
Há semanas, neste jornal, pedia que o Governo aproveitasse o período estival para conquistar espaço que nos permitisse combater, com outra folga, o pico pandémico esperado para o outono. Acontece que saímos de agosto como entrámos: com aproximadamente os mesmos números de casos positivos, infetados, internados e mortos.
Demo-nos ao luxo de desperdiçar um mês que não tínhamos no combate à covid-19. E saímos do verão com uma crise de confiança nas entidades das quais dependemos para ganhar a crise.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira