Ainda há poucos meses a Almedina publicou um volume com as suas aulas magistrais dos anos 2011-2016, sob o título Na Oficina do Sociólogo Artesão. Mas Boaventura de Sousa Santos tem aproveitado o confinamento para trabalhar e já entregou à editora o seu novo livro. Chama-se O Século XXI Começa Agora – Da Pandemia à Utopia e defende que a crise sanitária que atravessamos mostrou que existem alternativas ao modelo do capitalismo global. Isso dá-lhe esperança no futuro. Ainda assim, considera-se um “otimista trágico”. Nesta entrevista ao i, concedida por skype a partir do seu escritório numa pequena aldeia próxima de Coimbra, explica porquê.
Como tem vivido estes meses? Está confinado ou não se preocupa muito com isso?
Obviamente que me preocupo. Estou desde março aqui na minha aldeia, a 30 km de Coimbra. É uma casa onde já tinha o meu escritório e onde escrevi muitos livros. De alguma maneira, pertenço àquele grupo dos privilegiados que podem trabalhar em casa. Tinha um grande número de compromissos este ano que me levariam a estar permanentemente em viagem, e muitos deles foram transformados em transmissões ao vivo. Estou agora a enviar para a minha editora um novo livro sobre a pandemia. De modo que tenho aproveitado o tempo para trabalhar.
O confinamento tem tido aspetos positivos ou essa parte de não poder viajar, por exemplo, foi uma grande contrariedade?
Não, não foi. Tive mais tempo para me dedicar à escrita e à leitura. Mas tudo isto assumindo que se trata de uma coisa transitória. Diferente será se o novo normal implicar que as coisas vão ser muito mais difíceis, sendo certo que os meus destinos internacionais, além da Europa, estão muito centrados em dois países: os Estados Unidos, onde tenho vivido metade do ano há 35 anos, em Madison; e o Brasil. E ainda a Colômbia, que é outro país onde também estou muito envolvido. De maneira que as reuniões têm de ser virtuais. Vamos ver o que vai passar-se. Por enquanto eu vivo numa bolha, a minha aldeia são doze famílias.
Então não há risco de contágio.
Aqui na região Centro as coisas estão calmas, vou dar as minhas voltas com os cães, vou ver os meus amigos lavradores ou pastores, conversamos à distância – aqui no campo é assim. Pouca gente vejo, tem essa grande vantagem.
Esses pastores são pessoas para quem a pandemia é uma realidade distante?
Não, não. Estão muito bem informados. Veem televisão, conversam, perguntam-me. ‘Doutor, vai cá chegar? O que é a que a gente deve fazer?’. Estão bastante conscientes e penso que tomam as suas medidas, sobretudo neste período do mês de agosto, que é o mês de grande perigo nas aldeias portuguesas, com a vinda dos emigrantes.
Falou-me da sua ligação ao Brasil e aos Estados Unidos. Neste momento tem uma espécie de relação de amor-ódio com esses países?
Não, é só uma relação de amor. Ódio às condições políticas, tanto num como noutro.
Era a isso que me referia.
Mas eu distingo entre o país e os seus governos, até porque o meu trabalho é na universidade. Desde há 35, entre agosto e dezembro eu ficava nos Estados Unidos, e passava o resto do tempo aqui em Portugal. E continuo obviamente a estar totalmente informado. Para mim, como sociólogo, esta pandemia tem sido uma revelação extraordinária, e servido como confirmação de algumas das coisas de que eu tinha vindo a suspeitar nos últimos tempos. Estou naquela situação em que preferia que as minhas previsões ou análises não se confirmassem.
Pode dar um exemplo?
Fiz o meu doutoramento em Yale [em New Haven, Connecticut, a terceira universidade mais antiga dos EUA], terminei em 73, e partir de 82 ou 83 comecei a ir regularmente para Madison, Wisconsin, onde existe uma excelente universidade. E, portanto, assisti a uma certa degradação progressiva da sociedade norte-americana, em termos democráticos. Tem de ver que quando fui para os Estados Unidos fazer o meu doutoramento ia da ditadura de Salazar. Pode imaginar a minha reação perante uma sociedade onde não só havia uma discussão extraordinariamente viva – a universidade era bem liberal –, como era movimento contra a guerra do Vietname, o movimento pelos direitos cívicos, o Black Panther, enfim, era um meio onde o progresso das sociedades ocidentais se notava fortemente nas agendas políticas e sociais.
Esse ambiente estimulou-o?
Foi extraordinário para mim, vi como nós na Europa estávamos longe do que devia ser a organização social. Mas a pouco e pouco fui começando a aperceber-me dos lados negativos daquela sociedade, fundamentalmente a estratificação social, que era já grande nessa altura. Por outro lado, a luta dos Black Panther mostrava que o racismo era uma das feridas dos Estados Unidos. Nessa altura a ideia era que estávamos com um paradigma de progresso irreversível, e portanto isto iria ser ultrapassado dentro de algum tempo. E foi isso que pensei durante muito tempo. Mas não foi isso que aconteceu. E fui vendo ao longo do tempo como as coisas voltavam para trás. Depois comecei a perceber que era uma sociedade que internacionalmente, independentemente de quem estivesse no poder – fossem os Kennedy, fossem depois os conservadores –, tinha uma conceção do mundo imperialista. A Guerra Fria dominava praticamente tudo. Na minha tese de doutoramento eu tinha um capítulo em que falava da importância do Karl Marx – entre outros – para a teoria social. Um dos meus orientadores, que era um grande sovietólogo, aconselhou-me a tirar essa parte. Não que ele tivesse nada contra Marx, obviamente – mas não era relevante para o meu argumento. Vi que havia uma certa atitude e essa impressão consolidou-se quando fui fazer o meu trabalho de campo no Brasil. Vivi durante alguns meses numa favela do Rio, e vi qual era a participação dos Estados Unidos na ditadura brasileira.