Se a pandemia tiver vindo para ficar


O que aqui, hoje, importa perceber, com base na nossa experiência recente no combate à covid-19, é se já estamos a fazer o que devemos para preparar o imprevisto.


Se o leitor pensa que a covid-19 é um mero período de anormalidade passageira nas nossas vidas, talvez seja melhor pensar outra vez sobre o assunto.
Têm-se intensificado os alertas dos cientistas para a maior frequência, letalidade e dispersão das epidemias.
O séc. xxi, à entrada da sua terceira década, já foi sacudido por grandes surtos. Doenças antigas como a cólera, a peste bubónica e a febre-amarela regressaram em força. E novas doenças, como a MERS, a SARS e o zica, emergiram para causar profundas perturbações no nosso modo de vida. Mas, até agora, nenhuma das anteriores tinha tido o impacto pandémico da covid-19.
Há, sobretudo, duas razões pelas quais as pandemias têm uma probabilidade crescente de impactar recorrentemente as nossas vidas. 
A primeira razão prende-se com o número exponencial de interconexões entre os cidadãos do planeta. A globalização, que agora é posta em causa em termos nunca vistos, tem seguido uma marcha aceleradíssima. Os padrões de mobilidade, o tráfico de animais selvagens e o consumo de produtos exóticos aceleram a dispersão viral.
Por outro lado, a extraordinária densificação demográfica do planeta – de 3 mil milhões de pessoas em 1960 para mais de 7,5 mil milhões em 2020 – acelerou a urbanização de zonas naturais/rurais e implicou a normalização de padrões de consumo insustentáveis. Ou seja, e esta é a segunda razão, habitats naturais até há pouco tempo sem registo de presença humana estão a ser invadidos. A consequência disto é um favorecimento da passagem de vírus dos animais para as pessoas. Como sinalizam os cientistas, dois terços das novas infeções têm origem em spillovers patogénicos de animais para humanos. 
As chamadas doenças zoonóticas são, assim, mais frequentes, e diminui muito rapidamente a distância entre surtos.
Os alertas da ciência em matéria de saúde pública deveriam ser motivo para uma profunda reflexão sobre o nosso modo de vida. Mas isso é tema para outro texto. O que aqui, hoje, importa perceber, com base na nossa experiência recente no combate à covid-19, é se já estamos a fazer o que devemos para preparar o imprevisto. 
Como aqui alertei logo em março, estava escrito que a pandemia traria consigo um rasto de destruição económica e social. Chamei-lhe o ciclo das três pandemias: a de saúde pública, a económica e a social. Tudo isto veio, invariavelmente, a verificar-se – ainda que os efeitos da crise não sejam totalmente sentidos por via do amortecimento feito pelos poderes públicos.
A nossa preparação para a próxima pandemia, ou mesmo para a próxima vaga desta pandemia, que muitos especialistas estimam para este outono, deve compreender a capital importância de uma resposta transversal. 
A equação é simples: sem controlo da saúde pública não há economia; sem economia não há controlo de saúde pública nem emprego; sem economia nem saúde pública não há tecido social que resista. É este o ciclo de infernal reciprocidade que sustenta as três pandemias. Tem sido com base nesta trilogia que temos combatido a covid-19 e os seus efeitos.

Creio que, como comunidade, o país tem ainda muito a fazer para aumentar os graus de resiliência nestes três tabuleiros onde a crise se desenrola. O tempo corre contra nós.

 No campo da saúde pública, precisamos a nível nacional de pelo menos cinco iniciativas urgentes: (1) dados em que possamos confiar; (2) maior capacidade para fazer fechos cirúrgicos de surtos localizados – para evitar males maiores, e porque fechos totais da economia não são sustentáveis, urge ter instrumentos que permitam isolar freguesias, bairros e mesmo habitações; (3) uma app que rapidamente quebre as cadeias de contágio; (4) centros de retaguarda para infetados que não tenham condições de isolamento nas suas habitações; (5) um reforço dramático do nosso SNS, sobretudo para os serviços não covid que sofreram os maiores danos colaterais na pandemia.

No campo da economia, enquanto não há decisão sobre os dinheiros da Europa e com o turismo em estado crítico, o país depende mais do que nunca da dinâmica de um debilitado mercado interno. Isso pode ser feito aliviando fiscalmente as famílias e as empresas – ainda ontem, em Cascais, suspendemos taxas sobre o setor turístico e criámos um plano de incentivos para gerar atratividade no setor. A prioridade à criação de emprego e à captação de investimento nacional e estrangeiro exige um ataque rápido às burocracias, para que quem quer criar prosperidade no nosso país não seja vencido pela lentidão da máquina do Estado.

Por último, no campo social, o Governo tem de vencer preconceitos ideológicos e ser o motor de uma grande coligação de vontades que envolva entidades estatais, autarquias, terceiro setor e os rostos das comunidades mais fragilizadas, sem esquecer as universidades e comunidades científicas. Os recursos são escassos e, por isso, é crítico identificar quem precisa mesmo de ajuda. Em Cascais temos uma presença muito visível nos bairros mais desfavorecidos, num sinal de que o poder político no concelho não deixa ninguém para trás – com apoio alimentar, com cedência gratuita de equipamentos de proteção individual e com acompanhamento de saúde mental, para além de testes serológicos gratuitos e diversas medidas de apoio social.

Por estar a atacar as três pandemias, Cascais tem sido capaz de reduzir o problema de saúde pública, minorar os efeitos da crise económica e manter uma maior coesão social. Não está a salvo, nenhum território está. Mas, pelo menos, temos a convicção de que fazemos tudo o que está ao nosso alcance para sermos mais resilientes, para antevermos os cenários e para minorarmos os riscos.

 O país como um todo precisa de caminhar no mesmo sentido de ataque às três pandemias. Que ninguém facilite. Que ninguém pense que isto vai resolver-se de um dia para o outro. Não vai. Os avisos da ciência são claros. Sejamos responsáveis e atuemos em conformidade, preparando sempre o pior na esperança do melhor.
 
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira

Se a pandemia tiver vindo para ficar


O que aqui, hoje, importa perceber, com base na nossa experiência recente no combate à covid-19, é se já estamos a fazer o que devemos para preparar o imprevisto.


Se o leitor pensa que a covid-19 é um mero período de anormalidade passageira nas nossas vidas, talvez seja melhor pensar outra vez sobre o assunto.
Têm-se intensificado os alertas dos cientistas para a maior frequência, letalidade e dispersão das epidemias.
O séc. xxi, à entrada da sua terceira década, já foi sacudido por grandes surtos. Doenças antigas como a cólera, a peste bubónica e a febre-amarela regressaram em força. E novas doenças, como a MERS, a SARS e o zica, emergiram para causar profundas perturbações no nosso modo de vida. Mas, até agora, nenhuma das anteriores tinha tido o impacto pandémico da covid-19.
Há, sobretudo, duas razões pelas quais as pandemias têm uma probabilidade crescente de impactar recorrentemente as nossas vidas. 
A primeira razão prende-se com o número exponencial de interconexões entre os cidadãos do planeta. A globalização, que agora é posta em causa em termos nunca vistos, tem seguido uma marcha aceleradíssima. Os padrões de mobilidade, o tráfico de animais selvagens e o consumo de produtos exóticos aceleram a dispersão viral.
Por outro lado, a extraordinária densificação demográfica do planeta – de 3 mil milhões de pessoas em 1960 para mais de 7,5 mil milhões em 2020 – acelerou a urbanização de zonas naturais/rurais e implicou a normalização de padrões de consumo insustentáveis. Ou seja, e esta é a segunda razão, habitats naturais até há pouco tempo sem registo de presença humana estão a ser invadidos. A consequência disto é um favorecimento da passagem de vírus dos animais para as pessoas. Como sinalizam os cientistas, dois terços das novas infeções têm origem em spillovers patogénicos de animais para humanos. 
As chamadas doenças zoonóticas são, assim, mais frequentes, e diminui muito rapidamente a distância entre surtos.
Os alertas da ciência em matéria de saúde pública deveriam ser motivo para uma profunda reflexão sobre o nosso modo de vida. Mas isso é tema para outro texto. O que aqui, hoje, importa perceber, com base na nossa experiência recente no combate à covid-19, é se já estamos a fazer o que devemos para preparar o imprevisto. 
Como aqui alertei logo em março, estava escrito que a pandemia traria consigo um rasto de destruição económica e social. Chamei-lhe o ciclo das três pandemias: a de saúde pública, a económica e a social. Tudo isto veio, invariavelmente, a verificar-se – ainda que os efeitos da crise não sejam totalmente sentidos por via do amortecimento feito pelos poderes públicos.
A nossa preparação para a próxima pandemia, ou mesmo para a próxima vaga desta pandemia, que muitos especialistas estimam para este outono, deve compreender a capital importância de uma resposta transversal. 
A equação é simples: sem controlo da saúde pública não há economia; sem economia não há controlo de saúde pública nem emprego; sem economia nem saúde pública não há tecido social que resista. É este o ciclo de infernal reciprocidade que sustenta as três pandemias. Tem sido com base nesta trilogia que temos combatido a covid-19 e os seus efeitos.

Creio que, como comunidade, o país tem ainda muito a fazer para aumentar os graus de resiliência nestes três tabuleiros onde a crise se desenrola. O tempo corre contra nós.

 No campo da saúde pública, precisamos a nível nacional de pelo menos cinco iniciativas urgentes: (1) dados em que possamos confiar; (2) maior capacidade para fazer fechos cirúrgicos de surtos localizados – para evitar males maiores, e porque fechos totais da economia não são sustentáveis, urge ter instrumentos que permitam isolar freguesias, bairros e mesmo habitações; (3) uma app que rapidamente quebre as cadeias de contágio; (4) centros de retaguarda para infetados que não tenham condições de isolamento nas suas habitações; (5) um reforço dramático do nosso SNS, sobretudo para os serviços não covid que sofreram os maiores danos colaterais na pandemia.

No campo da economia, enquanto não há decisão sobre os dinheiros da Europa e com o turismo em estado crítico, o país depende mais do que nunca da dinâmica de um debilitado mercado interno. Isso pode ser feito aliviando fiscalmente as famílias e as empresas – ainda ontem, em Cascais, suspendemos taxas sobre o setor turístico e criámos um plano de incentivos para gerar atratividade no setor. A prioridade à criação de emprego e à captação de investimento nacional e estrangeiro exige um ataque rápido às burocracias, para que quem quer criar prosperidade no nosso país não seja vencido pela lentidão da máquina do Estado.

Por último, no campo social, o Governo tem de vencer preconceitos ideológicos e ser o motor de uma grande coligação de vontades que envolva entidades estatais, autarquias, terceiro setor e os rostos das comunidades mais fragilizadas, sem esquecer as universidades e comunidades científicas. Os recursos são escassos e, por isso, é crítico identificar quem precisa mesmo de ajuda. Em Cascais temos uma presença muito visível nos bairros mais desfavorecidos, num sinal de que o poder político no concelho não deixa ninguém para trás – com apoio alimentar, com cedência gratuita de equipamentos de proteção individual e com acompanhamento de saúde mental, para além de testes serológicos gratuitos e diversas medidas de apoio social.

Por estar a atacar as três pandemias, Cascais tem sido capaz de reduzir o problema de saúde pública, minorar os efeitos da crise económica e manter uma maior coesão social. Não está a salvo, nenhum território está. Mas, pelo menos, temos a convicção de que fazemos tudo o que está ao nosso alcance para sermos mais resilientes, para antevermos os cenários e para minorarmos os riscos.

 O país como um todo precisa de caminhar no mesmo sentido de ataque às três pandemias. Que ninguém facilite. Que ninguém pense que isto vai resolver-se de um dia para o outro. Não vai. Os avisos da ciência são claros. Sejamos responsáveis e atuemos em conformidade, preparando sempre o pior na esperança do melhor.
 
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira